domingo, 18 de janeiro de 2015

TORTURA

A primeira vez que morri usava uma saia longa colorida e lenço preto no cabelo, não recordo da blusa, mas devia ser branca, sempre tive muitas roupas brancas, e eu lembro que por dentro só havia uma sensação imensa de rejeição. A penúltima vez que morri tinha uns 25 anos, usava flor no cabelo e tomava vodca com limonada pra esquecer do amargo da vida, não recordo a roupa que usava, qualquer coisa além do comum, creio.
Por fim cheguei num ponto em que deixei de questionar as coisas, eu as vivia como vive todo bom sobrevivente, devagar e temerosa, tão temerosa que era quase como se não as vivesse. Então finalmente resolvi mudar as coisas de lugar, sentir-se seguro é confortável, mas é também envelhecido como aqueles móveis lindos de madeira, cheios de história, mas sem grandes perspectivas, e então foi assim, colorindo o que não tinha espaço para cores que morri pela última vez. Eu pretendia deixar de fumar, e abandonar de vez o refrigerante e diminuir as guloseimas, mas quando se morre pela última vez, nada do que fazia muito sentido tem algum sentido, levantar da cama é a parte mais difícil do dia.
Olho em volta, são todos sobreviventes, os daquela rua com o esgoto estourado e cheiro fétido e vermes intrusas e os daquela rua de outdoor americanizado, todos sobreviventes. A vida é isso, algumas pessoas te surpreendem e seguram a tua mão nos momentos mais difíceis, é tão tolo e tão triste e tão bonito quando alguém chora por você, igual a moça loira que se embalava numa cadeira e fumava um cigarro e dentre todas as suas dores chorava exatamente pela que não era sua, e isso de alguma maneira deixava o mundo mais bonito. Somos todos sobreviventes, sobrevivemos a dores, fisicas e emocionais, sobrevivemos aos dias nublados e aos ensolarados, sobrevivemos a amores eternos que passam, sobrevivemos a vida, porque não é simples, não vem com o enredo pronto e não é ornamentada por finais felizes e moral da história, a vida não é um romance mexicano e somos todos sobreviventes.
Memórias vão e vem, e eu sorrio na frente dos outros pra fazer de conta que tá tudo bem, ouço dramas alheios pra ficar alheia aos meus, conto piadas que já tiveram graça e não tem mais, porque de alguma forma nos últimos dias nada mais tem graça. Quero gritar, mas tenho medo de alguém me ouvir, cubro o rosto com uma almofada e choro até a minha cabeça doer, então tomo analgésicos até a dor passar e me distraio com o mensageiro dos sonhos a balançar na minha janela.
Acabou, flores não tem cor. Que droga de mundo é esse em que a ignorância maltrata belezas e preconceitos são maiores que virtudes, e vaidades pisoteiam sentimentos? Tá tudo tão grande aqui dentro e tudo tão pequeno lá fora. Quero me esconder, me esconder das lembranças, das paredes brancas de cal, do espelho que me conhecia tão bem e agora parece um estranho, me esconder da minha saliva amarga, da minha pele, de cada célula morta do meu corpo vivo, de atitudes que não consigo compreender.
Não sou do tipo que abraça, que discursa sentimentos, ou se impõe, não lidero motins, eu apenas sinto. E acordo e faço um esforço imenso pra levantar, e sinto uma vez mais. As vezes tudo que preciso é de quem diga... Dane-se que você seja do tipo que não abraça e me force abraços e me obrigue a dizer como eu realmente me sinto, como eu tô ferrada e triste e perdida, ao invés de me deixar fazer como eu sempre faço e dizer que tá tudo bem. Não tá droga, não tá nada bem. Enquanto eu sentir os sentimentos dos subúrbios e ouvir os ruídos dos olhares baixos e me entreter de impressões populares e sentir a dor exata das canções óbvias de tão humildes vou lembrar que um dia o que inteiro me soava belo, (embora nada ali nunca fosse tão bonito aos meus olhos, tão habituados a belezas menos comuns e óbvias do que aquela), foi o que me deixou aos pedaços, mas sempre foi assim, só o enredo da história que mudou, o fim é o mesmo, é comigo de olhos direcionados ao chão catando os meus pedaços. Achei que seria fácil viver como as 7 bilhões de pessoas que povoam o mundo, não é. O fim sempre é o mesmo, e não, não tá nada bem, mas sim, vai ficar, vai ficar tudo bem, sei disso porque não é a primeira vez que morro, e nem será a última. Tiara Sousa.