A primeira vez que morri usava uma saia longa colorida e lenço preto no
cabelo, não recordo da blusa, mas devia ser branca, sempre tive muitas roupas
brancas, e eu lembro que por dentro só havia uma sensação imensa de rejeição. A
penúltima vez que morri tinha uns 25 anos, usava flor no cabelo e tomava vodca
com limonada pra esquecer do amargo da vida, não recordo a roupa que usava,
qualquer coisa além do comum, creio.
Por fim cheguei num ponto em que deixei de questionar as coisas, eu as
vivia como vive todo bom sobrevivente, devagar e temerosa, tão temerosa que era
quase como se não as vivesse. Então finalmente resolvi mudar as coisas de
lugar, sentir-se seguro é confortável, mas é também envelhecido como aqueles
móveis lindos de madeira, cheios de história, mas sem grandes perspectivas, e
então foi assim, colorindo o que não tinha espaço para cores que morri pela
última vez. Eu pretendia deixar de fumar, e abandonar de vez o refrigerante e
diminuir as guloseimas, mas quando se morre pela última vez, nada do que fazia
muito sentido tem algum sentido, levantar da cama é a parte mais difícil do
dia.
Olho em volta, são todos sobreviventes, os daquela rua com o esgoto
estourado e cheiro fétido e vermes intrusas e os daquela rua de outdoor
americanizado, todos sobreviventes. A vida é isso, algumas pessoas te
surpreendem e seguram a tua mão nos momentos mais difíceis, é tão tolo e tão
triste e tão bonito quando alguém chora por você, igual a moça loira que se
embalava numa cadeira e fumava um cigarro e dentre todas as suas dores chorava exatamente
pela que não era sua, e isso de alguma maneira deixava o mundo mais bonito. Somos
todos sobreviventes, sobrevivemos a dores, fisicas e emocionais, sobrevivemos
aos dias nublados e aos ensolarados, sobrevivemos a amores eternos que passam,
sobrevivemos a vida, porque não é simples, não vem com o enredo pronto e não é
ornamentada por finais felizes e moral da história, a vida não é um romance
mexicano e somos todos sobreviventes.
Memórias vão e vem, e eu sorrio na frente dos outros pra fazer de conta que tá tudo bem, ouço dramas alheios pra ficar alheia aos meus, conto piadas que já tiveram graça e não tem mais, porque de alguma forma nos últimos dias nada mais tem graça. Quero gritar, mas tenho medo de alguém me ouvir, cubro o rosto com uma almofada e choro até a minha cabeça doer, então tomo analgésicos até a dor passar e me distraio com o mensageiro dos sonhos a balançar na minha janela.
Memórias vão e vem, e eu sorrio na frente dos outros pra fazer de conta que tá tudo bem, ouço dramas alheios pra ficar alheia aos meus, conto piadas que já tiveram graça e não tem mais, porque de alguma forma nos últimos dias nada mais tem graça. Quero gritar, mas tenho medo de alguém me ouvir, cubro o rosto com uma almofada e choro até a minha cabeça doer, então tomo analgésicos até a dor passar e me distraio com o mensageiro dos sonhos a balançar na minha janela.
Acabou, flores não tem cor. Que droga de mundo é esse em que a ignorância
maltrata belezas e preconceitos são maiores que virtudes, e vaidades pisoteiam
sentimentos? Tá tudo tão grande aqui dentro e tudo tão pequeno lá fora. Quero
me esconder, me esconder das lembranças, das paredes brancas de cal, do espelho
que me conhecia tão bem e agora parece um estranho, me esconder da minha saliva
amarga, da minha pele, de cada célula morta do meu corpo vivo, de atitudes que
não consigo compreender.
Não sou do tipo que abraça, que discursa sentimentos, ou se impõe, não
lidero motins, eu apenas sinto. E acordo e faço um esforço imenso pra levantar,
e sinto uma vez mais. As vezes tudo que preciso é de quem diga... Dane-se que você
seja do tipo que não abraça e me force abraços e me obrigue a dizer como eu
realmente me sinto, como eu tô ferrada e triste e perdida, ao invés de me
deixar fazer como eu sempre faço e dizer que tá tudo bem. Não tá droga, não tá
nada bem. Enquanto eu sentir
os sentimentos dos subúrbios e ouvir os ruídos dos olhares baixos e me entreter
de impressões populares e sentir a dor exata das canções óbvias de tão humildes
vou lembrar que um dia o que inteiro me soava belo, (embora nada ali nunca
fosse tão bonito aos meus olhos, tão habituados a belezas menos comuns e óbvias
do que aquela), foi o que me deixou aos pedaços, mas sempre foi assim, só o
enredo da história que mudou, o fim é o mesmo, é comigo de olhos direcionados
ao chão catando os meus pedaços. Achei que seria fácil viver como as 7
bilhões de pessoas que povoam o mundo, não é. O fim sempre é o mesmo, e não, não tá
nada bem, mas sim, vai ficar, vai ficar tudo bem, sei disso porque não é a primeira
vez que morro, e nem será a última. Tiara Sousa.