terça-feira, 4 de fevereiro de 2020

FREDERICO

Quase gosto do caos que sou enquanto almejo a paz, quase gosto das pessoas correndo desesperadas para a porta ao ouvir o som do carro de lixo, quase gosto das senhoras curiosas e fofoqueiras sentadas em suas portas procurando qualquer coisa que as distraia da sua enfadonha realidade, quase gosto dos enfeites de natal por todo lado, um mais colorido que o outro, um mais brilhante que o outro, um mais encatadoramente brega que o outro. O que eu nunca gostei foi de realidade, nunca realmente gostei de realidade, como as atrizes que ao fim do espetáculo, saem solitárias caminhando pela rua, esperando que o silencio da noite guarde os aplausos pra quando tudo for dor.
Antes de ontem falei isso a uma amiga de uma amiga minha, não lembro como chegamos nesse ponto da conversa, mas ela revirou os olhos, torceu o nariz, fez algum comentário utilizando-se de metáforas, agindo como se não houvesse entendido, e saiu solitária caminhando pela rua. Era um fim de tarde e todas as rosas murchavam enquanto eu passava, elas sabiam mais de mim do que eu. Os dias antes tão simples, pareciam os móveis velhos da sala de estar de uma senhora que conheci por acaso, e que divide o lar com um cachorro chamado Frederico, ela nem gosta dele, mas nem é preciso gostar pra amar, é o que concluí enquanto observava o modo lento com que ela caminhava até a porta em busca dele, nessa idade ela já aprendeu que gostar é uma causa perdida, é como assistir a uma novela pela segunda vez, sabendo que o fim nunca irá se parecer com a vida, nessa idade ela já aprendeu que nunca se ama pela segunda vez, que todo amor é pela primeira vez, e que toda primeira vez dói.
Antes de antes de ontem eu sabia sorrir, antes de ontem não, então depois dessa conversa com essa amiga de uma amiga, dirigi pensativa, apenas eu e minha mochila preta, acabei parando numa praça em que as crianças não corriam, os idosos não sentavam nos bancos a observar as jovens que jamais poderiam ser suas, os adolescentes não namoravam, uma praça velha e abandonada, em que nenhum dia nascia em tons azuis, achei que ela se parecia com todos os meus medos, com todas as minhas revoltas, com o barulho de todos os meus silencios, então resolvi descer do carro e sentar num dos bancos, achava que estava fazendo companhia aquela praça, mas era ela que me acompanhava, porque só um ser humano é capaz de se entreter com o vazio, e ás vezes está tudo vazio, meu quarto cheio de livros e eu vazia, minhas horas cheias de obrigações e eu vazia, minha mente cheia de ideias e eu vazia, meu coração lotado de sentimentos e eu... vazia, intima dos silencios, me esvaindo nos meus próprios bons modos, representando um papel que na realidade sou eu, doendo dores alheias como se fossem minhas, doendo dores minhas como se fossem alheias, e era pra ser fácil ser eu, mas todo dia um dia é antes de ontem, e antes de ontem é sempre tudo real e eu nunca gostei de realidade, nunca realmente gostei de realidade, como os palhaços dos circos após seus números, fingindo que suas graças podem curar tudo de ruim no mundo, fingindo que todo mundo pode ser criança pra sempre e que o pra sempre existe.
Após um tempo naquela praça, fui pra casa, ao chegar senti vontade de sair, como se chegar sempre me partisse um pouco, sempre me deixasse menor, mas estava cansada, então acendi um cigarro, tomei um resto de suco que tinha na geladeira, abri um livro e por fim adormeci... Sonhei que gostava de realidade, que finalmente me sentia á vontade nesse mundo e que alguma coisa me completava, acordei assustada, sabendo que seria mais fácil se tudo fosse assim, mas que no fundo eu não queria, não é que eu goste de ser aquela que nunca gostou de realidade, que nunca realmente gostou de realidade, mesmo que isso signifique que pra mim todos os dias sempre serão apenas estranhos e suportáveis como antes de ontem, em que tenho que imaginar aplausos e números de circo e eternas infancias e palhaços capazes de curar o mundo de tudo de ruim e dias nascendo em tons de azuis. Nem mesmo é que eu goste de ser aquela que ouve o barulho do silencio e observa a complexa euforia do amor de uma senhora idosa, de passos lentos, com uma sala cheia de móveis velhos, por seu cachorro Frederico, é só que ás vezes eu sei, é só que ás vezes estou cansada de saber... Não é preciso mesmo gostar pra amar, e nunca se ama pela segunda vez, todo amor é pela primeira vez, e toda primeira vez dói. Tiara Sousa