segunda-feira, 21 de outubro de 2019

VALSA PARA DANÇAR SÓ

Direitos da imagem: wallhere.com

E eu, que sou tão errada, distraio as flores pelo caminho, porque sentimentos me assustam...
É que sentir é como ser mãe ou pai, é grande e é pra sempre, mesmo que dure apenas alguns minutos. Mesmo que dure o tempo de um Hollywood vermelho sentada no chão de uma lavanderia que nem é sua, pensando... E se mais tarde doer, como é que a gente para? Como é que eu fecho uma porta se jogar a chave fora? E se eu esquecer de mim? E se eu não puder parar e conter e nivelar? O que é que eu faço com o amanhã se ele ficar vazio? Onde eu me guardo se fizer muito frio ou muito calor ou se nunca mais eu puder deixar o coração em casa e alma no centro da mesa. E eu sinto tanto medo que quase pego a chave do carro e saio correndo, porque sentir é muita coisa pra quem só sabe sonhar de olhos abertos. E eu tento disfarçar o medo.
É que sentir é como apunhalar vaidades, é se esquecer um pouco. É deixar o mar ser infinito sozinho. É posar pra uma foto que nunca será revelada e que nunca vai chegar perto de revelar quem você é. É toda a verdade do mundo te ferindo, são as histórias que deixamos de contar pra não chorar, é o adeus disfarçado de até logo, é um poema na parede do quarto, são os erros que cometemos, é o tempo que a gente demora pra se perdoar por esses erros, é tudo o que a gente pensa que não tem perdão, é toda merda e toda luz e toda ferida aberta do passado, é a porra do passado carimbado em cada medo, é cicatriz e cura e curativo e pele e alma e corpo. É o fim. É o início. E eu tento disfarçar o medo.
É que sentir é a última música que a gente escuta antes de começar a se esconder da vida, é a primeira música que a gente escuta antes de ter medo da vida. É a vida. É o conselho sempre dramático dos nossos pais, é o cobertor dividido, é o sonho compartilhado, é o primeiro ciúme, e o antepenúltimo. É a última página do livro, é melancólico. São todos os orgasmos e toda a insensatez, é a primeira vez que você fica chateado com alguma tolice, é a esquina feia que dá pra rua mais bonita da cidade, é a esquina que não dá pra lugar nenhum, é um consolo e um abraço. São todos os traumas no chão da sala, na pia da cozinha, no fundo dos olhos, no desvio do olhar, no ralo do banheiro. É como vestir preto e amar amarelo. É como vestir amarelo e não amar. E eu tento disfarçar o medo.
O medo da poesia, da métrica, da sensação de estar acompanhada. Aprendi há muito tempo a evitar abraços aos quais serão difíceis de escapar, a fazer de conta que sou feita de aço, de pedra bruta, de cimento. Não sou. É só que sentimentos me assustam, então prefiro a segurança que é me sentir só... já que nunca aprendi a me compartilhar.
E eu, que sou tão errada, que sempre vivi num mundo ao qual não participo, nunca deixei de ser a menina de óculos no fundo da sala esperando alguém perceber que não estava à vontade atrás daquelas lentes e nem naquela sala fria em que tentava ser invisível pra não sentir, porque sentir não é raro, não é exclusivo, não é coerente, não é maduro, nem mesmo nobre. É humano. Sentir é só sentir. É sempre arriscado, é sempre ébrio, é sempre íntimo, é sempre solitário. É como compor uma valsa para dançar só. Tiara Sousa

segunda-feira, 14 de outubro de 2019

O AMOR

Fonte da imagem: Site Vix

Sempre me procurei nos olhos dos outros. Nunca encontrei. Até procurar nos olhos certos. Nos olhos do meu filho.
Foram neles, naqueles olhos tão lindos, que entendi que nunca serei muito adulta, que sempre vou ser meio desastrada e lenta e tola e injusta e desorganizada, que nunca irei lidar muito bem com os sentimentos, que sempre vou ter medo do novo, vou atrasar, vou teimar, que serei meio orgulhosa e meio dramática e muito estranha, que sempre vou achar que o mundo pode ser um lugar melhor, que sempre serei meio maluca e um pouco sozinha, e que tudo bem, tudo bem eu ser assim, porque naqueles olhos eu sou perfeita em cada uma das minhas imperfeições e pra mim aqueles olhos são todos os contos de fadas, são todas as esperanças, são todos os lugares de todos os continentes de todos os povos, são o que há de mais bonito e mais verdadeiro na humanidade... Aqueles olhos são o amor.
E hoje, mais cedo, Viviane, uma amiga que tá grávida e tá tendo umas complicações e que tá tomando remédios e insulina e tendo que comer direito e se cuidar muito, me disse que passou a tarde meio deprimida, com medo de acontecer alguma coisa com ela ou com o bebê. E eu fiquei meio sem saber o que falar, é meio louco quando a sua amiga de infância engravida com o dobro da idade que você tinha quando engravidou. Eu fui mãe aos 18, ela será aos 36 e eu passei por coisas que ela não vai passar, tive medos que ela não vai ter, perdi fases que ela não perdeu, e em contrapartida ela tá passando por coisas que eu não passei, tá tendo medos que eu não tive e irá perder fases que eu não irei perder, e é difícil falar de um lugar em que você esteve num tempo tão diferente, mas como eu sou metida, saliente e amiga dela, decidi falar assim mesmo e ainda tornar isso público, pra que daqui a um tempo o filho ou filha que ela espera e que eu espero que tenha um nome decente, (porque vamos combinar que Viviane vai precisar de muito conselho pra escolher esse nome), mas retomando, que essa criança leia, saia correndo e diga... “Mamãe, a tia Tiara é uma gênia, ela adivinhou que iria dar tudo certo.” Porque vai dar tudo muito certo. Como eu sei? Meu Q.I é altíssimo Viviane, isso faz de mim praticamente uma vidente, então fica fria, toma esse tanto de remédio aí, aplica essa insulina, come como adulta e escolhe um nome lindo pra essa criança, ah e vai falando já na barriga que a tia Tiara é demais.
E daqui há uns meses, quando esse bebê nascer, lindo e saudável, lembra de te procurar nos olhos dele, é ali que você irá se encontrar, naqueles olhos tão lindos, que você irá entender (como um dia Verissa, outra amiga nossa de infância, falou pra ti, depois de um porre homérico), que tu é chata, mas é chata, mas chata pra caralho Viviane, e também generosa e solicita e divertida e louca e prática e mandona e assanhada e atrevida e fã do Continente Africano e a porra da rainha do drama, linda por dentro e por fora, e que tudo bem, tudo bem você ser assim, porque naqueles olhos você será perfeita em cada uma das suas imperfeições. E pra ti, os olhos desse bebê serão todos os contos de fadas, todas as esperanças, todos os lugares de todos os continentes de todos os povos, serão o que há de mais bonito e mais verdadeiro na humanidade... O amor. Tiara Sousa

segunda-feira, 30 de setembro de 2019

TORTA


Imagem do site https://pt.wahooart.com/
Outro dia uma amiga me ligou querendo conversar, marcamos em 15 minutos na padaria do João Paulo. É, eu sei, rápido, mas é que quando uma amiga te liga do nada, no meio da tarde e diz preciso conversar, você vai, porque a merda tá feita, tá tudo um caos, é o fim do mundo, ela não tá legal. Entrei no carro e saí, estacionei na porta da Padaria, já ela colocou o carro dentro do estacionamento e ao sair e se deparar comigo ainda dentro do carro, fez sinal pra eu descer. Eu ia descer, ia mesmo, eu fui lá pra isso né, mas aí eu me dei conta que esqueci um pequeno detalhe, pequeno mesmo, quase insignificante, esqueci que estava descalça e que dentro do carro não tinha um sapato sequer, uma havaiana, nem mesmo uma Ipanema, nem aquele chinelo de 10 contos que tá vendendo como água na Rua Grande. Fiz sinal pra ela vir até o carro e quando ela chegou e eu contei caímos na gargalhada... Afinal, que mulher de 34 anos, com um filho adolescente, com contas a pagar e cheia de plano de aula pra fazer e de coreografia pra criar sai de casa descalça? Eu né. Resolvemos o problema indo conversar num barzinho lá perto, lá dava pra descer descalça sem ser o assunto do lugar.
Ela contou o que estava passando, conversamos, tomamos uma coca cola, na realidade eu tomei, fumamos uns cigarros, tá bom vai, na realidade só eu fumei, e depois da conversa cheguei em casa pensando sobre umas coisas que fazia um tempão que eu não pensava. Lembrei que ás vezes acho que o mundo inteiro é o meu quintal, e tenho o hábito de chegar nos lugares inventando que são todos meus. Eu gosto de sair pelo mundo fazendo de conta que toda rua é a minha casa, só que isso sempre me dá a impressão de que toda agonia é minha e de que toda dor é minha e de que todo medo é meu. E eu sempre me sinto sozinha, eu sempre me sinto sozinha nas minhas fantasias.
Lembrei que quando olho em volta, vejo um lugar repleto de pessoas e vazio de tanta coisa importante, então eu danço, eu danço sozinha pelas mulheres nas esquinas, pelas crianças nos semáforos, pelos olhos que parecem me ver sem me enxergar, e ás vezes eu fico com medo da luz do sol, e da minha própria ingratidão diante das árvores no parque ao fundo da rua em que moro. Desfalecendo a minha própria margem, navegando onde nem tem mais mares, esperando a Amazônia sumir com todos nós. E eu me sinto sozinha, eu sempre me sinto sozinha nas minhas formas. É que ao chegar num lugar cheio observo as pessoas, e me parece que pra elas é fácil viver em seus corpos, em suas mentes, com aquela empatia, simpatia, extroversão, popularidade, adaptação, e isso me dá a impressão que ninguém pode me ler, que eu fui escrita numa língua velha e esquecida e que não existem traduções para as palavras que me formam. E eu sempre me sinto sozinha, eu sempre me sinto sozinha em lugares cheios.
Vocês já se sentiram assim? Deslocados? Como se não soubessem viver no século 21? Desamparados pelas suas próprias sedes, brutalmente presos as suas próprias fomes? Cercados por 8 bilhões de pessoas e solitários em seus modos equivocados e suas linhas sinuosas? Olhando um mundo que ninguém parece ver? Contidos em movimentos que nem fizeram ainda? Amedrontados pela possibilidade de serem vocês pelo resto da vida, tão incompletos e inacabados? Eu já. Enquanto dançava sozinha no meu quintal.
Às vezes penso que tá todo mundo tão perdido que até me sinto acompanhada. Como se nem sempre tudo fosse tão caótico e sublime. As pessoas só acordam e tomam banho e escovam os dentes e saem pra trabalhar... As pessoas só chegam em casa e leem ou assistem algo e fazem sexo e vão dormir... E no dia seguinte tudo se repete e ninguém mais se interessa se tá tudo bem mesmo com as pessoas para as quais perguntam se tá tudo bem. E os muros estão cada vez mais altos. E ninguém mais se olha nos olhos. Falta a gente se enxergar, se encontrar, se perceber, falta a gente aceitar a subversão que é ser... Humano, entender que a poesia de existir está no fato de muitas vezes a pele implorar o que a alma rejeita. Falta olhar para o lado e ver que tudo é construção, porque vendo isso desse modo nós não iremos mais nos sentir tão sozinhos. Falta a gente ver que tá todo mundo um pouco torto, mesmo aqueles que só saem de casa calçados.
É assim que eu me sinto a maior parte do tempo... Torta. E eu lembrei disso depois daquela conversa com a minha amiga. Lembrei disso, porque se ninguém chegar e se ninguém reparar no quanto eu sou incrível, no quanto as minhas dores me construíram, no quanto eu cresci enquanto escrevia crônicas no meu quarto, eu sei que vou ficar bem, que tudo bem eu me sentir torta ás vezes, tudo bem se uma das suas melhores amigas se sentir torta ás vezes. Torta foi como a crítica classificou a obra mais famosa, fascinante e de uma beleza ímpar e nada óbvia de Picasso, aquela que todo mundo demorou um tempão pra entender que era um recesso do que a gente não aguenta mais ser e do que a gente quer ser, na minha opinião esse recesso é quem realmente a gente é.
Quanto a minha amiga... Não se preocupem, ela vai ficar bem... Sonhei a noite passada que ela vai morar num lugar que tem quintal e quando tiver tudo um caos, ela vai fazer de conta que o mundo inteiro é o quintal dela e vai dançar sozinha pelas mulheres nas esquinas, pelas crianças nos semáforos e pelos olhos que parecem vê-la sem enxergá-la. Tiara Sousa

terça-feira, 3 de setembro de 2019

CÉU DA MADRE DEUS

Imagem do site Youtube

Da porta pra dentro, éramos uma ciência exata. Do lado de fora, uma ciência humana. E era como matar o tempo, gostar de você, era como me procurar na multidão, como explicar a chuva. Nunca era.
Ainda assim permiti que você atravessasse os meus sentimentos e conceitos e laços e crenças, que me virasse do avesso, quando eu sempre fui o avesso.  E você nunca me perguntou porque dentre tantos caras que tem por aí e que poderiam me oferecer mais, mais do que o caos, eu fiquei logo com você. Você também nunca me perguntou... Porque Esquerda e não Direita? Porque noite e não dia? Porque vestido e não calça? Porque mar e não montanha? Porque escrita e não falada? Porque Arte? Você nunca me perguntou nada e eu também nunca disse, e mesmo assim eu me entreguei aos nossos silêncios. É que eu achava que você entendia que eu sou livre sem ser óbvia, tão diferente das muitas mulheres que povoaram a tua cama. É que eu achava que você sabia quem eu era, mas você não sabia, não fazia ideia, e nunca realmente quis saber.
É que você não estava aqui quando ladrões invadiram a minha casa, quando um trovão me assustou no meio da noite, quando eu percebi que as pessoas mais importantes poderiam me ferir, quando eu estava tão cansada que dormi com a roupa que cheguei do trabalho, quando eu comemorei por um texto meu bater recorde de visualizações. E agora, que as nossas cordas vocais não se entendem, que as nossas dores saem na mão no meio da rua, que as nossas vontades tem vontades diferentes, e a tua ideia de “nós” pra mim é um bueiro descoberto na maior favela da cidade... Você diz que quer o meu melhor, diz que sente a minha falta, que me ama, que precisa me ver... Mas é tarde, o céu da Madre Deus já ficou cinza.
É que você não estava aqui quando eu fiquei triste com alguma bobagem cotidiana, quando eu não fazia ideia de como resolver um problema, quando senti alegria, quando senti medo, quando fiquei puta da vida com a vida, quando meu filho foi ficando mais independente e senti saudade de quando ele precisava de mim pra tudo. E agora, que você dá meia volta e eu volta e meia, que o asfalto esquenta enquanto a gente esfria, e chove de novembro a novembro enquanto te esqueço, você me procura, corre atrás de mim, toca a minha campainha ansioso, liga pra todos os nossos conhecidos a minha procura... Mas é tarde, o céu da Madre Deus já ficou cinza.
É que você não estava aqui quando eu tive dor de cólica, quando eu tive crise alérgica e fui parar no hospital, quando assisti um filme que achei o máximo e quis passar horas falando sobre isso, quando terminei de ler um livro que me deixou uma semana me sentindo estranha, quando eu não sabia como ser adulta e tive que saber porque o tempo não para. E agora, que as tuas mentiras não me cabem mais e a tua verdade me fere profundamente, e eu desconfio que te fira ainda mais e você só esconda e finja pra si mesmo que se acostumou com essa merda toda, você diz que pensa em mim, que sempre me respeitou, envia mensagens, grita meu nome no meio da rua... Mas é tarde, o céu da Madre Deus já ficou cinza.
É que você não estava aqui na noite em que saí e o céu da Madre Deus era o céu mais lindo do mundo todo e eu queria que você olhasse pra entender que ainda dava tempo de consertar os erros da vida, pra entender que ainda dava pra ser forte e lutar por um amanhã mais digno e melhor. E doeu, a presença da tua ausência maquiada pelas tuas palavras falsas e tuas aparições vazias, e eu não quero mais. Não sou mais uma peça no teu jogo de tabuleiro, não espero mais ansiosamente a tua visita, não tenho mais curiosidade sobre a tua vida, não sobra mais nenhum tipo de admiração em relação a você. Tudo o que era estampa, desbotou. E até murcharam as rosas que você nunca me deu. Mas é tarde, muito tarde... Porque uma noite dessas fui a Madre Deus e ao olhar pra cima, estava ali apenas eu e o céu mais lindo da cidade, tão azul e triste e iluminado que eu podia sentir a vida passear pela minha pele, e eu lembrei da pergunta que você nunca me fez... Afinal, porque dentre tantos caras que tem por aí e que poderiam me oferecer mais, mais do que o caos, eu fiquei logo com você. E eu quis tanto que você estivesse ali e pudesse sentir a vida como eu estava sentindo, porque então você teria a resposta sem que eu precisasse dizer uma palavra, você entenderia que eu via em você o que nem mesmo você via, eu via aquele momento em que o mar acalma e só se pode escutar os barulhos das ondas se houver silencio e atenção, eu via o mais tarde, o daqui pouco, o amanhã, só que mais uma vez você não estava lá, porque você nunca estava lá pra mim, e agora nem mesmo eu vejo o que via. É realmente tarde, o céu da Madre Deus já ficou cinza. Tiara Sousa

terça-feira, 12 de março de 2019

TRINTA E QUATRO

Direitos da imagem: followthecolours

Eu podia ver os ponteiros do relógio passeando, podia ver as datas dos calendários desaparecendo, podia ver o sol se pondo e nascendo e se pondo outra vez. Eu podia enxergar as mudanças na minha pele, podia ouvir os sons dos meus ossos ficarem mais óbvios, e a minha volta os móveis envelhecendo, as roupas ficando gastas, os fios de cabelo branco da minha avó ficando cada vez mais brancos, e os momentos se tornarem cada vez mais previsíveis. Eu podia sentir mesmo em completo silencio, mesmo sem movimentar uma parte do meu corpo, eu podia sentir todos os meus 34 anos existindo pela primeira vez. Sempre pela primeira vez.
Os calendários, os relógios e até mesmo a luz do sol entrando pela janela, e toda e qualquer maneira de medir o tempo já não fazem mais sentido, porque os dias não terminam mais, eles se esvaem, se esvaziam como balões de festa, se desconstroem.
Hoje chove, e talvez por ser o dia do meu aniversário, talvez por nem todos esses anos terem sido capazes de curar meu egocentrismo, eu observo a chuva e acho que ela só existe pra mim, pra me lembrar que há uma tímida elegância em comemorar um nascimento. Não que algum dia a minha relação com o tempo tenha sido o que pode se chamar de cordial, mas é que enquanto observo a chuva travo dilemas...
Afinal, quando deixamos de crescer e passamos a envelhecer? Quando nos conformamos com a realidade? Quando aceitamos o trágico? Quando nos adaptamos? Quando as páginas desse romance épico que chamamos de vida deixam de ser devastadoras e sublimes, numa mesma dose? Quando tudo em volta dos nossos corpos desacelera e a gente passa a sentir as nossas próprias pulsações? Será que algum dia, será que realmente algum dia a gente deixou de ter 8, 11, 15, 17, 23, 28 anos? Até quando, até que idade, até qual tempo, semana, mês, ano, década século ou milênio a gente vai continuar sentindo e amando e odiando e doendo pela primeira vez? Quando haverá uma segunda vez? Se enquanto células morrem, linhas de expressão surgem, fios de cabelo embranquecem, colágenos se limitam, nenhuma dor é igual a outra, nenhum orgasmo é igual ao outro, nenhum beijo, nenhum toque, nem mesmo o branco de uma folha de papel é igual ao outro, se por mais previsíveis que as coisas se tornem nós sempre vivenciamos elas de um modo único e pela primeira vez.
É dia 12 de março de 2019, o dia amanhece, eu me levanto, vou até a cômoda em busca de uma toalha, e as gavetas rangem sons que desconheço, como se a lembrança fosse uma velha conhecida, como se todas as almas estivessem condenadas a existir na madeira de lei utilizada na construção daquela cômoda, como se eu enganasse os espaços vazios da casa para permanecerem vazios, como se toda falta de alguma coisa não concreta durasse o tempo íntimo de uma eternidade. É dia 12 de março de 2019, eu completo 34 anos, e tudo o que sei é que amanhã as gavetas da cômoda irão ranger sons que desconheço, que por mais que se pareçam, nunca haverá sons exatamente iguais, nunca haverá outro 12 de março de 2019, nunca haverá uma segunda vez. Tiara Sousa

terça-feira, 19 de fevereiro de 2019

TENTE GOSTAR DE MIM


Direitos da Imagem: 
Não sou delicada como uma louça. Não tenho o hábito de cruzar as pernas como as moças consideradas socialmente aceitáveis. Nunca em toda a minha existência cheguei num restaurante pra pedir um prato de salada, e me recuso a ficar duas horas no salão fazendo as unhas.
Não sei decoradas falas de grandes antropólogos, filósofos e cientistas políticos, costumo decorar poemas e números de Dellivery de Fast Food. Eu babo dormindo, e a minha barriga ronca mais que o normal, e pra completar, definitivamente acordo péssima, inchada, horrorosa, terrível, desfigurada. Acho academia um saco, e na boa, entre ter uma bunda malhada e um trio do Bob’s, eu fico com o trio. Uma bunda malhada vai satisfazer os olhares libidinosos de homens superficiais, o trio do Bob’s vai me satisfazer.
Acho fofo quem pega gatinhos abandonados pra cuidar, e de verdade, detesto vê-los sofrendo e sendo maltratados, mas eu particularmente não simpatizo com gatinhos, eles são tão carinhosos que é de dar agonia, gatões são mais a minha praia, se é que me entendem. Penso que os bois, as galinhas e os porquinhos deveriam poder ter uma vida longa e bonita, mas esqueço que penso isso quando chego num rodízio de churrasco e me deparo com uma picanha.
Sou fã da natureza, e mais do que isso a favor da conscientização das pessoas acerca da importância da preservação do meio ambiente, mas não se enganem, se ameaçarem cortar com uma serra uma árvore de 200 anos, eu não vou ser aquela moça massa que fica abraçada na árvore esperando a serra atingi-la, entre eu e árvore velha, sou eu né.
Quando busco meu filho na escola e ele me diz que tá morrendo de fome, logo me imagino na cozinha, ele provando o delicioso prato que preparei e elogiando a comida, mas só fica na imaginação mesmo, porque imediatamente me dou conta que comigo como cozinheira não tem como a comida ficar deliciosa, além do trabalho que vai dar pra preparar, então acabo parando no restaurante mais próximo ou indo a casa da minha vó, onde sempre tem um almoço legal esperando pela gente.
Sou uma romântica, do tipo que vê príncipes em sapos e assiste comedia americana emocionada. Gosto das histórias, dos olhares, das mensagens, dos beijos que de tão ansiosamente esperados, são inesperados, do sexo invasivo e genuinamente ébrio, que eleva a linguagem sem necessariamente precisar de uma palavra. Gosto da liberdade de querer estar presa sem estar presa de fato. Gosto da paixão, do encanto do início, do despudor do meio, e até da dor do fim, mas temo e sempre temi que o “pra sempre” seja um saco, real demais, que ele furte a possibilidade de lembrar de um romance com uma certa fantasia.
Gosto de gente, das complicadas relações humanas, do gosto amargo da humanidade, mas tem dias que acordo detestando gente e tudo que vem junto, e prefiro ler romances, assistir comedias, ouvir canções, escrever crônicas, mas ao fim do dia concluo que era tudo sobre gente, e me sinto limitada, porque são nesses dias que sou mais gente.
Tenho déficit de atenção, nunca sei onde estão minhas chaves, meu relógio, minha cabeça, minha sanidade, minha capacidade de me interessar por homens que prestem. Não sou do tipo que abraça, meiguice me dá enjoo. Já fiz terapia e conclui que ver o mar era mais eficaz, porque o mar é o lugar mais lindo e mais triste do mundo, e acho de verdade que a minha terapeuta precisava de terapia.
Quanto mais dirijo, mais detesto dirigir, sou viciada em nicotina, em analgésico, em antialérgico, em coca cola. Não sou de dizer muita coisa, me sinto confortável mantendo sempre uma distância segura do resto do mundo, sou ateia desde a primeira vez que cochilei numa aula de catequese, aos 9 anos. 
Não sou a mulher descolada que assiste futebol e fala palavrões, não sou a florzinha que diz que ama com os olhos marejados, não sou a exótica que senta embaixo de uma árvore e fuma um com a galera, não sou a gostosona que para o trânsito com suas formas cheias e curvas delineadas, e também não sou a que impressiona com discursos de assuntos em alta.
Já transei no primeiro encontro, já tive crise de ciúmes, já pré-julguei quem não merecia, já tive o coração partido e já parti corações. Sou mimada, individualista e adoro estar certa. Mas se apesar do óbvio, porque tudo isso é só o óbvio, vocês tentarem gostar de mim e chegarem mais perto, talvez acabem descobrindo porque uma vez por ano eu releio “O estrangeiro” de Albert Camus, porque gosto de vestidos e camisas, porque aprecio a solidão, porque todo fim de ano dirijo pela cidade a noite procurando pelas luzes de natal, ou a razão de eu ouvir tanto Chico Buarque, de usar o relógio com o mostrador virado pra parte de baixo do pulso, ou o que me encanta no Teatro, porque tenho tanto medo de portas abertas e me sinto mais à vontade entre livros, filmes e músicas do que entre pessoas, porque escrevo.
E aí, se vocês entenderem tudo isso e superarem o fato de eu preferir eu a uma árvore velha e esquecer da preciosa existência dos bois quando me deparo com uma picanha, talvez assim, vocês não precisem mais tentar e acabem realmente gostando de mim, pois nem mesmo o melhor dramaturgo, roteirista, escritor já criou um personagem que alcançasse a complexidade de um ser humano, então eu sou mais que isso, todo mundo é, e tá tudo certo, ninguém tem que fazer sentido. Tiara Sousa

segunda-feira, 11 de fevereiro de 2019

O FIM DO SILÊNCIO


Direitos da imagem: 
Ela costumava ler Silvia Plath quando ficava muito triste, pra lembrar que existiram saudades maiores, tristezas maiores, gente mais triste. E quando estava alegre se entregava a Fernando Pessoa e seus heterônimos, porque ele tinha o dom de descobrir estampas em tecidos beges, e ela gostava disso, mas fazia meses que ela não lia nada deles. E era a pele que doía.
Era menos difícil quando ele partia, não era fácil, mas era menos difícil, ela só precisava sentar na cama, pegar o notebook, abrir um energético e acender um cigarro, e as palavras vinham... pois ainda que lhe tirassem tudo, no fim ela ainda tinha as histórias, os sentimentos, o dom de ler o mundo como poucos, as linearidades, os comportamentos, as sugestões, as dores, o que estava trancado em cadeado. Ela entendia do ser humano mesmo conservando uma certa ingenuidade sobre o mesmo, e por isso se sentia solitária. Era como ser uma bailarina que não tinha pra quem dançar. Ela podia ler tanta gente, mas quase ninguém podia ler ela, porque havia em cada poro de seu corpo uma dor escondida, e ainda assim ela quase nunca se desesperava. 
Mas ele sempre voltava, como os pássaros ao fim do inverno, ele sempre voltava, e no fim do dia ela não entendia se isso era só a vida seguindo seu curso, ou se isso era ela permitindo que ele lhe tirasse mais um pouco. Então um dia, ela já havia perdido tantas partes, que dessa vez foi ela a mandá-lo partir, e quando ele tentava voltar, ela o mandava partir mais um pouco, deixando entre eles uma distância segura, onde só caberia mesmo o silêncio. 
Pra ela manter-se distante dele era como a fome. Ou a sede. Doía tanto, mas tanto, até ela esquecer que doía, porque sem a pele dele ali ela esquecia que tinha pele, e sem o corpo dele ali ela esquecia que tinha corpo, e sem o cheiro dele ali ela esquecia que tinha cheiro, e sem o som da voz dele ali ela esquecia que tinha voz. E doía a ponto de viver dentro dela torna-se inóspito, só que pra ela viver fora dela era como deixar de ser ela, era perder a identidade. Era como calar um grito. Não era calar, era sufocar. E isso bastou pra ela deixar de acreditar nas coisas que escrevia e perder as palavras, a ponto de não conseguir escrever mais nada, tropeçando na própria afronta, no próprio ego. Tornando-se um livro de capa magnífica cheio de páginas em branco, pois sem as palavras não lhe sobrava nada de inconsistente, além da saudade.
E a saudade é como o silêncio, porque não há saudade sem apreço pelo que está distante ou se perdeu, e ainda que a perda soe como uma escolha, nunca é. Afinal, pra que preencher um espaço vazio se o vazio ainda estiver ali? E não, não deveria haver nada de errado com o silencio. Não deveria. E só que ela já tinha perdido demais.
Ela deixou de observar a mágica entre os olhares, trabalhou, cumpriu horários, datas, compromissos, deixou de julgar superficialidades porque passou a se comportar superficialmente, chegou tão perto de se adequar a multidão que por fora estava tudo bem e por dentro quase morria de dor sem sequer se dar conta que estava doendo. Olhou em volta e de repente soava igual a todo mundo, mas ser diferente era e sempre foi o que a manteve sã. E então desabou. Fugiu pra onde sempre fugia quando nada sobrava, pra clausura, porque pra viver, ah, pra viver tem que ter coragem, e ela que sempre apreciou o silêncio, teve medo dele, porque sem as palavras ele não lhe servia de nada.
Até que numa quarta-feira qualquer, enquanto ela dobrava os seus shorts jeans, o barulho dos ensaios de uma escola de samba cujo a sede localiza-se na rua do fundo de sua casa invadiram, assediaram, corromperam o silêncio do seu closed, lhe parecia um barulho insuportável. Tentou ler, ver um filme, ouvir uma música, mas não dava pra fazer nada com o som daquela bateria por toda a casa, ela xingou, esbravejou, mas o barulho ainda estava ali, então se deu conta que se ela gritasse em meio aquele som estridente ninguém poderia ouvir. Deitou no chão do seu closed e gritou, gritou pelo fim do romance, pelo fim da inocência, pelo fim da paz, pelo fim da ilusão, por todos os desejos e medos e ausências e tons. Gritou pelo fim do silêncio, pelo fim do silêncio, PELO FIM DO SILÊNCIO! E tendo o grito abafado pelo som da bateria da escola de samba, ela começou a sentir um alivio imenso, e finalmente, chorou. Chorou voltando a se sentir aquela que é inadequada, que lê o mundo e a humanidade como poucos, que sente-se desconfortável na multidão, que nunca está completamente à vontade em lugar algum que não numa folha de papel ou documento de word, e que julga superficialidades, pois é estranha, insociável e solitária como uma bailarina que não tem pra quem dançar.
Sentou na cama, pegou o notebook, abriu um energético, acendeu um cigarro e as palavras vieram. E depois de meses de silêncio, escreveu. Ela escreveu sobre uma mulher que ao fazer o certo e pedir para alguém partir se partiu ao meio, tornando-se um livro de capa magnifica que se desaprendeu pra reaprender a preencher as suas páginas. Ela escreveu sobre ela e sobre como era o fim do silêncio. Feliz 2019 a todos os leitores, o Alternativo voltou! Tiara Sousa