quarta-feira, 28 de março de 2018

COMIGO NÃO


Imagem do Site Alto Astral
O sexo era incrível, ele não. Ele tava tão perdido que haviam momentos em que toda verdade era meio verdade e meio cínica, e então só sobravam mentiras pra ornamentar os espaços que ele não preenchia. E eu me apaixonei pelos problemas dele, pela dor dele, pela incapacidade dele de sair do fundo do poço em que se enfiou. É que sempre achei tão bonito pensar que alguém é mais do que a realidade em que vive, do que as limitações que tem, do que a tristeza que esconde ou tenta esconder, do que as perdas que coleciona. Mas a gente é sempre uma junção de tudo isso, e eu não me sentia especial por estar com ele, eu me sentia especial por me familiarizar com o que ele passava, por já ter passado parecido, e por ter sobrevivido, e isso me fez pensar que estar com ele era certo.
Das 3.672 horas que passei com ele, nenhuma me ensinou a me sentir acompanhada. Ele batia em minha porta, e eu o deixava entrar, na minha casa, no meu quarto, no meu corpo, na minha carteira de cigarros. Eu esperava por aquilo, eu meio que desejava aquilo, eu meio que detestava aquilo. Vez ou outra ele falava de namoro, eu sempre fugia do assunto, eu sempre dizia que não, que ainda não, e não era que eu estivesse certa do que falava, é só que eu mal me aguento, e que às vezes é mais fácil eu ser exclusividade minha, e eu desejo tanto medir as palavras e pensar antes de falar, que isso me esmaga, é como colar uma concha na orelha e não conseguir ouvir o barulho do mar.
Ele aparecia e eu pensava... Isso pode dar certo, eu posso sair por aí catando os pedaços dele até ele ficar inteiro. Ele sumia e eu pensava... Isso não pode dar certo, eu não posso sair por aí catando os pedaços dele até eu ficar em pedaços. Ele falava do passado e eu morria um pouco, porque a presença do passado ocupava todos os espaços e eu ficava oprimida entre a minha lingerie cor de rosa e a incapacidade dele de ver além das rendas que a enfeitavam. E me chamem de louca, mas eu sempre trajei longos e abdiquei de decotes pra ser vista, eu sempre achei que nenhuma das minhas curvas eram páreas para o meu cérebro, mas o problema de se pensar assim é que pensar assim faz do mundo um auto retrato do que você apenas suporta, e eu nem me dava conta de que apenas suportava aquela situação.
É que ele tava perdido em teorias que pra mim não significavam nada, é que eu tava contemplando letras de canções que pra ele não diziam nada, é que ele exaltava lembranças que não cabiam em nenhum dos meus sapatos, nem mesmo na sola dos mais desgastados, é que eu calculava horas que ele não exitava em jogar fora. E eu sou sonhadora demais pra aceitar pedidos de namoro que não façam os músculos do meu braço esquerdo tremerem, sou sonhadora demais pra não ser a protagonista da vida do cara que tiver comigo, e não consigo ser mais ou menos gostada e nem gostar mais ou menos, é que entre o meu estômago e o meu baço tem mais de uma década de experiências constrangedoras publicadas e expostas pra quem quiser ler.
E eu... Que sempre me senti estranha por gostar de músicas que quase ninguém da minha geração gosta, por detestar cós muito baixo e querer que cada uma dessas novas feministas que saem por aí sem blusa e apenas de sutiã vermelho paguem as minhas entradas nas festas em que antes mulher não pagava e que agora “graças” a elas, pagam. E eu... Que sempre me senti extremamente antipática por achar que é foda (no bom sentido) ser politicamente correto ou a favor do meio ambiente ou defensor dos direitos dos animais ou a favor da preservação do boto rosa ou do tipo que economiza água em prol do futuro da humanidade, ou daqueles que detonam glúten, frituras e gordura trans, mas que ser todas essas coisas juntas é ser chato pra caralho e soa um tanto hipócrita. E eu... Que sempre me achei absurdamente difícil por pensar que se for pra fingir orgasmo é melhor nem abrir as pernas, que se for pra aguentar descaso é melhor nem se apegar, que se for pra sofrer por uma paixão que seja pra doer da alma até a vagina.
E eu... Que sempre me senti assim sobre tantas coisas, deitei no chão da sala após o último telefonema dele, após a maneira rude com que ele falou comigo, e tomando consciência do modo displicente como ele vinha me tratando, ali, deitada naquele chão gelado, apenas com a visão inalterada do teto, eu percebi que eram essas tantas coisas sobre mim que davam sentido ao fato de que ele não deve, mas até pode agir desse modo com algumas mulheres por aí, mas comigo não, porque eu posso me sentir e ser estranha e extremamente antipática e absurdamente difícil, mas eu sou incrível, ele não. Tiara Sousa

quarta-feira, 14 de março de 2018

AOS QUE SABERÃO EXATAMENTE DO QUE ESTOU FALANDO


Fios de cabelo caindo pelo rosto incomodam ela. Assim como dias dinâmicos e expectativas frustradas, e o fato de que nem todo mundo sabe lidar com a dor. Ela gosta do obscuro, do inevidente, latente, subentendido, confuso, oculto, encoberto, inacessível, inexplicável, indecifrável, inabordável, intratável, de quem pinta o céu de laranja, as nuvens de amarelo e o sol de lilás, mas ela mesma não é assim. (E os incoerentes saberão exatamente do que estou falando).
Por vezes ela sente-se a coadjuvante de um dos poemas de Sylvia Plath, como a parteira que bate nos pés da protagonista de “Morning Song”, ou o anestesista que recebe as histórias de “Tulip”. Por vezes ela finalmente sente-se a protagonista, mas de um poema que Plath sequer escreveu. É que ela concebe o cotidiano como ácido, é que algumas vezes é tudo ácido, a goteira no terraço, a música no CD, o fim do dia, o inicio da noite, o presságio de um novo amor, os estilhaços de um amor antigo. É que ela quer morar dentro de uma música dos Beatles, de um conto de Osman Lins, de um soneto de Camões, de um roteiro de Almodóvar, e ela quer tanto que fica sem lar, transitando em meio a palavras que nem são suas, que sequer acomodam-na. E tentar, é só tentar, é nunca ter um lar, é ser um andarilho, um itinerante de suposições vagas de alguma coisa amarga, nostálgica e misteriosa. (E os sonhadores saberão exatamente do que estou falando).
Há dias em que tudo se esgota, a enfraquece, e então ela senta numa velha cadeira de madeira reformulando e pensando nos detalhes do rosto do último homem a quem ela se entregou, é que ela ficou olhando ele por horas enquanto ele dormia, tentando decorar cada traço, cada linha de expressão, cada detalhe facial, pra que quando ele partisse, ou ela, nada fosse esquecido, pra que como de costume ela não conseguisse arrebentar os pontos que ele costurou. (E os românticos saberão exatamente do que estou falando).
Ela foi amada por momentos distintos e homens distintos, mas nunca parecia ser amor suficiente, e desde a primeira vez tava tudo ferido, ela sangrava por sentir-se dois e nenhum, mas nunca um, nem quando ele tava dentro dela. Fazer o que, ela tem o péssimo hábito de querer salvar as pessoas delas mesmas, a família, as amigas, os amigos, o padeiro, a arquiteta, o poeta, o mendigo, o burguês, os homens por quem se apaixona. E ás vezes ela chega perto, outras vezes não, e ela sempre conclui a mesma coisa e com a mesma tristeza, que essa história de querer salvar diz mais sobre ela do que sobre qualquer outra coisa e pessoa, e é tão possível que tamanho altruísmo seja um egoísmo fantasiado, e que tentar salvar seja a forma que ela encontrou de confrontar a realidade de um mundo ao qual ela não se adapta, um mundo sem fadas madrinhas e lâmpadas mágicas. (E os inadequados saberão exatamente do que estou falando).
Ela vive para os finais, mas sabe esperar por eles, afinal não lhe agrada saber como as coisas terminam sem o processo, sem o desenvolvimento, pois sem estes, o final, ainda que feliz, não lhe basta, é sempre frustrante. É como enterrar um objeto estimado, é como maldizer teorias atemporais, é como fechar os olhos para a chuva, é como se permitir sentir depois de uma decepção. É corajoso, mas não basta. (E os céticos saberão exatamente do que estou falando).
E eu decidi escrever sobre muitas coisas, ou a escrita me decidiu, já não sei bem... Mas num tempo de 12 minutos, talvez 14, ou 16, ou de horas e dias, eu poderia fazer alguém se reconhecer nas minhas palavras, e pra mim é o que vale, é o que sempre valeu, palavras unidas que chegam a alguéns. E eu decidi escrever sobre ela, não porque ela merecia, ou porque eu precisasse, mas porque a cada momento que passando pelo corredor me deparo com o espelho, é a ela que vejo, feita e ornamentada e consagrada e invariável e tola e enraizada e entranhada e íntima e intrínseca e arraigada e estabelecida e fixa e firme e inveterada e inalterável e sólida, a minha imagem e semelhança. (E os escritores saberão exatamente do que estou falando, exatamente.). Tiara Sousa