domingo, 19 de fevereiro de 2017

A TRISTEZA DE VERISSA

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É Sábado, 18 de fevereiro de 2017, e Verissa disse que tá triste, muito triste, triste assim de um vazio imenso, melancólico, profundo, utópico, fantasioso, quase real. Eu disse a ela que tô mais fudida do que ela e comecei a recitar todos os meus problemas, ela nem estranhou a minha reação, me conhece tão bem que já espera esse tipo de coisa, sabe que eu sou presunçosa, pretensiosa, presumida, imodesta, arrogante, metida, esnobe, vaidosa, egocêntrica, enfatuada, afetada, cabotina, todos esses sinônimos, e ela sabe que mesmo na tristeza profunda melancólica vazia e chata dela eu iria dar um jeito de ser a protagonista, nem que pra isso eu tivesse que discursar minutos a fio sobre as mazelas da minha vida.
Perguntei a Verissa o motivo de tamanha tristeza, ela disse que era uma tristeza assim desmoronante, e que ela não conseguia encontrar um motivo pra ela, eu lembrei de um seriado antigo, monótono e infantil que eu assisti há uns anos e depois assisti novamente e provavelmente ainda irei assistir mais algumas vezes, porque ele filosofa e é triste e é inerente aos incomuns, então logo a questionei se não era algum seriado que ela tava assistindo, ela disse que não, e naquele momento detestei o fato de não conseguir explicar a tristeza dela mais do que detestei o fato de ela estar triste, talvez porque na minha mente insana fossem a mesma coisa, então me empenhei na missão infantil e tola de encontrar o motivo daquela tristeza, porque eu gosto de ter as respostas e porque se não as encontrasse, iria ter que admitir que num mundo de tantas guerras e fomes e dores e injustiças e corações partidos ainda existem tristezas sem motivo, e eu não queria pensar assim, porque se eu pensasse assim iria doer em mim, e eu amo detestar dores generosas.
Então depois de muito pensar e refletir longamente por uns 30 segundos, anunciei a ela que eu já sabia o que havia sido, e eram os três dias que ela estava sem me ver, que a minha ausência infame causa esse efeito nos meus amigos, e que ela ficasse melhor que logo iria me encontrar. Mas ela respondeu: kkk, e eu fiquei puta, Verissa poderia ter dito... É mesmo Tiara, deve ser saudade de ti, mas ela tinha que conseguir com três letras dizer que não era a minha ausência e ainda tirar uma onda com a minha cara, e eu pensando que os meus amigos se contorciam de saudade com a falta das minhas infinitas distorções de tudo. Mas eu não desisti tão fácil, Verissa não é de se abrir muito e se ela falou que tava triste, triste assim como uma fotografia démodé de uma artista vintage, era porque tava mesmo, e eu precisava de um porque, talvez mais que ela, afinal se eu ficasse intima da tristeza dela eu poderia sentir com ela, e quem sabe até sentir por ela, e nisso eu não tava sendo egoísta, eu acho.
Então comecei a dar minhas versões mirabolantes do que teria causado aquela tristeza, porque se não era seriado, e não era a minha ausência, tinha que ser alguma coisa. Meus palpites foram, a sociologia, ela disse que não, então falei se não seria falta de guloseimas, ela disse não, comi lasanha mais cedo, fiquei puta novamente, eu tinha comido torrada enquanto ela comia lasanha e não tava triste assim, que porra de tristeza poderia ser essa, nem perguntei se era algum cara, se não tava triste por falta de fast foods não era um homem, por mais gato, inteligente e viril que fosse que iria deixa-la assim. Minha cabeça já tava rodando, então resolvi dar conselhos do que não fazer quando se está triste, porque eu já fiquei triste assim, assim de doer na clavícula e sair nos olhos, assim de 7 a 1 em cima do Brasil em plena Copa do mundo, assim de cheirar a roupa do ex procurando pelo ex, assim de escovar os dentes querendo dormir e dirigir querendo dormir e transar querendo dormir e sorrir querendo dormir e até dormir querendo dormir, então certamente meus conselhos deveriam valer de alguma coisa, e eu comecei... Primeiro, saia, evite ficar em casa, a nossa casa é um lugar tão nosso que lá ser triste é mais fácil do que ser feliz; Segundo, não assista, ouça ou leia nada profundo, nada que te emocione, que te faça refletir; E finalmente... Terceiro, coma doces, o doce engorda, estraga os dentes, causa doenças, mas não existe nada mais eficaz do que eles nessas horas, ela disse então que já tinha feito tudo isso, mas que a tristeza continuava ali, na cabeceira da cama e na cama, na escrivaninha e na TV, no edredom e no furo no vestido velho, na saliva amarga e no amargo de tudo, e como eu tenho o hábito de visualizar todas as coisas que me dizem em cenas esdrúxulas, de repente eu pude ver a tristeza de Verissa, e mesmo eu soando assim tão insensível aos olhos comuns, eu pude senti-la por dois segundos e meio, e foram os dois segundos e meio mais abomináveis desde 1985.
Porque a tristeza de Verissa não deveria ser dela, dela não. Ela vê o mundo cor de rosa, por isso ela tem aquelas tranqueiras rosas espalhadas por todo o quarto, é a bruta mais doce que eu conheço, e ninguém no mundo é encantadora e irritadoramente mais inconstante do que ela, pois só ela sabe ser Caetano Veloso na segunda e Wesley Safadão na terça com a mesma paixão e empenho, sabe detestar gente e amar ir ao bumba meu boi, sabe acordar na sua linda casa no Calhau e dirigir até o Anel Viário pra tomar café da manhã, e quem mais além dessa moça é tão convencida a ponto de citar Freud como se estivesse citando um colega de turma, e tem milhões de partes dela que são só dela e que ela jamais vai dividir com ninguém, e gente assim não deveria ser triste nunca, nem mesmo nos sábados a noite quando todo mundo fica meio triste, nem mesmo sem motivo, nem mesmo assim.

Mas claro que eu não disse nada disso a ela, eu poderia ter dito, mas aí como iria ficar minha velha e boa fama de má, então não disse nada, liguei cinco minutos depois e perguntei se não eram gases, ela sorriu, e certamente me conhecendo como só amigas se conhecem, entendeu que aquela era a minha maneira de dizer... Conta comigo, tô aqui pra ti, eu posso ser presunçosa, pretensiosa, presumida, imodesta, arrogante, metida, esnobe, vaidosa, egocêntrica, enfatuada, afetada, cabotina, todos esses sinônimos, mas na tua tristeza eu serei sempre protagonista pelos motivos nobres, porque ela também é minha, e eu daria tudo (menos meu carro, meu notebook novo, meus vestidos acima de 200 reais, meus livros, meus CD’s, minha TV e principalmente aquela pulseira de palha que tu trouxeste da Colômbia pra mim) pra ser mesmo apenas gases e passar logo. Tiara Sousa

segunda-feira, 6 de fevereiro de 2017

OUTRAS DORES

Imagem do site http://sentimentosdaevinha.tumblr.com/
Tenho uma dor no osso da perna direita desde os meus sete anos, e tenho uma dor ainda pior no osso da perna esquerda desde meus cinco, elas já estão aqui há tantos anos que semana passada quando elas não apareceram, senti que tava faltando alguma coisa muito importante, e não gostei. Me habituei a essas dores, porque quando eu tô sozinha, sozinha mesmo, sozinha de gente, de bicho, de TV, de internet, de livros, de músicas, de vícios, são essas dores que me fazem companhia, e elas me são tão familiares e recorrentes e antigas e espaçosas e incomodas e interessantes, que na semana que elas desapareceram eu jurei que nunca mais ia ficar assim, sozinha de tudo. É claro que era mentira.
A gente se habitua as mais inusitadas coisas, eu por exemplo me habituei a essas dores e a um monte de outras dores, algumas que doíam tanto que eu nunca identifiquei o lugar exato onde elas habitavam. Não faço ideia de como seria a vida sem dor, acho que ninguém faz, é só que as pessoas não tem o hábito de admitir isso.
Na minha infância costumava ir a feira com a minha avó, eu e a minha prima concorríamos pra decidir quem iria em determinado domingo ser a companhia dela na feira, era um programa péssimo, muita gente, muito barulho, muitos cheiros, eu detestava aquilo, mas eu queria ir todos os domingos, porque depois de fazer todas as compras dos alimentos, a minha avó usava os últimos trocados e me deixava escolher alguma coisa do armarinho da feira, geralmente eu escolhia uma presilha de cabelo ou um anel de plástico, voltávamos pra casa caminhando, com aquelas sacolas pesadas, e muito cansadas, mas sempre valia a pena por causa daquelas lembranças. Mais tarde, já adulta, eu fiquei tentando entender porque ganhar aquelas coisas era tão importante, já que dentro das possibilidades da minha família eu tinha tudo, a melhor escola, os melhores brinquedos, as melhores roupas, porque tanto sacrifício por aquelas bobagens baratas, cheguei a conclusão que não eram as lembranças, nunca foram, era o olhar da minha avó enquanto me dava elas. Muita coisa mudou desde aquele tempo, minha avó não vai mais a feira, ela tem 80 anos e sua idade já não lhe permite, eu não sou mais criança, as presilhas de cabelo saíram de moda e consequentemente dos armarinhos das feiras, e os anéis de plásticos já não cabem nos meus dedos, e todos os domingos quando a minha mãe acorda cedo pra ir à feira com a minha tia e fazer as compras da minha avó, ás exatas sete horas, eu sinto a dor de não sermos eu e a minha avó a irmos à feira, mesmo ela ainda me olhando daquele mesmo jeito cada vez que me dá algo. E esse é o tipo de dor que se um dia passasse ia me fazer uma falta imensa.
Soa um tanto destrutivo que dentre tantas coisas no mundo, os seres humanos ainda sintam falta exatamente das dores, de algumas delas pelo menos, não posso falar pelo resto da humanidade, mas as minhas dores são guardadas em caixas imaginárias junto com as suposições do que eu teria sido ou de como estaria hoje sem elas. Por isso elas fazem falta de vez em quando, e por isso gosto de tê-las por perto, é porque sem elas toda a minha formação estaria condenada ao fracasso e eu jamais seria a mesma. Provavelmente pareceria mais sábio dizer aos mais jovens que fujam das dores, das físicas e emocionais e daquelas que de tão emocionais transfiguram-se físicas, mas não é. As dores são pra ser aproveitadas, contempladas, revisitadas, impróprias. A dor do primeiro amor, e do último; Do adeus, e do até mais; A dor de inventar uma dor pra se refazer de uma ainda pior, a dor da ilusão despida e da realidade coberta, a dor de saber que nada nunca volta, e que nada nunca é como deveria ser. A dor é pra ser desfrutada, como a pele que desfruta do sol.
Essa semana a dor no osso da minha perna direita, aquela que tenho desde os sete anos, voltou. E a dor no osso da minha perna esquerda, aquela que tenho desde os cinco e que é ainda pior, também voltou. Poderia estar me lamentando, afinal nada se compara ao desprazer de uma dor reavivada, mas não, eu apenas fico aqui, sentada, usando o gel e o analgésico de sempre, porque a primeira vez que as minhas pernas doeram eu me desesperei, hoje não, hoje elas podem doer a vontade, já sei que passo por elas, que sou maior do que elas. É assim a vida... Depois que a gente passa pelas dores a primeira vez, a gente descobre que quanto maior a dor, maiores nós nos tornamos enquanto passamos por ela. E no fim das contas, nem é da falta da dor nos ossos das minhas pernas que eu tava falando, mas acho que todo mundo que já doeu assim tanto, assim com o cabelo, com os dentes, com os dedos, com a palma da mão, com os olhos, com a nuca, com a alma, já sabe, já percebeu, que definitivamente eram de outras dores que eu falava. De outras dores. Tiara Sousa