Ele reclamava do meu
jeito, dizia que eu era inalcançável, mas eu não era, e no fundo ele sabia
disso. Eu queria explicar alguma coisa, mas não sabia como dizer a ele que
gosto de solidão, que assim me sinto protegida. Como é que se diz... Eu tenho
um mundo particular, ninguém corresponde as minhas expectativas, ninguém é
estranho o suficiente pra ser a minha metade, eu não tenho metade. Então
olhando no fundo de seus olhos castanhos, meu ponto fraco, me senti
estranhamente à vontade e falei...
As ruas
estão todas lotadas de intermináveis vazios, e por aqui ninguém tem se
interessado pelos sentimentos escusos, as ferrugens tomaram conta dos portões e
temos estado inseguros.... Todos os gritos cessaram, e todos os olhos
lacrimejam. Na entrada de cada esquina onde anos antes as prostitutas se
ofereciam para os homens vazios e/ou indiferentes, hoje não há nada além de uma
imensa tristeza sem explicação. Se eu adormecesse hoje e só despertasse antes,
antes das ultimas dores, dos últimos soluços, dos últimos noticiários, jamais
acreditaria que sobreviveria aos últimos anos.
A lama
que tomou conta das periferias me afetou e os meus últimos pesadelos incluem um
menino do sinal, de calças e alma rasgadas, ele limpa o vidro do meu carro, o
vidro que já estava limpo, o menino que continua sujo, ele tem os cabelos
pretos como os meus, e os olhos pretos como os meus, e a pele preta como a
minha, e a última coisa que observo antes de arrancar o carro do lugar é o modo
como ele agradece as moedas que ponho em suas mãos, um modo subserviente, que
conta a história do Brasil sem nenhuma palavra, eu saio dali convicta de que
deveria me sentir bem, mas tudo o que sobrou em mim é a sensação de que por
aqui pelo meu peito é sempre anteontem, que lá fora os sorrisos são sempre
amarelos e que as crianças crescem ao invés de serem felizes para sempre, então
chego até o condomínio onde moro, observo as árvores que deveriam dar sentido
as coisas e sinto dó de cada uma delas, subo as escadas, entro no apartamento,
vou rapidamente tomar um banho, mas todas as impurezas permanecem, o mundo me afeta e só por isso parece até que todos os móveis
estão cansados de mim.
Quero que
todas as bocas de fumo apodreçam, não sei da poesia da miséria, detesto as
peles cobertas de fome, não sei apreciar a tristeza descarada das roupas
rasgadas e não remendadas. Estou não imune demais pra não pensar nos
olhos pretos do menino preto como eu, porque os olhos pretos do menino preto
ainda fazem latejar em mim periferias, eu devia estar feliz por não ser o
menino preto do sinal, mas não sei como ser feliz por esse motivo, pra algumas pessoas ser
adulto é simples, parte de um processo, parte da vida, para pessoas como eu ser
adulto é como atravessar uma avenida de decepções.
Ele
sorriu, um
sorriso assim triste, de quem entendia exatamente do que eu estava falando, de
quem como eu conhecia os espaços despovoados, e então disse... que eu
tenho mania de mexer no cabelo, que passo gradativamente dezoito segundos para
jogá-lo para o lado esquerdo e mais dezoito segundos para jogá-lo para o lado
direito, que eu sorrio sempre que fico nervosa e sempre que fico sonolenta e
sempre que fico apaixonada e sempre que fico tímida, e até quando tô muito
triste, menos de TPM, que eu não sei sorrir de TPM, que eu caminho devagar e
como devagar e amo devagar e ajo devagar e sonho rápido e não perco uma piada.
Disse
também que sou diferente das mulheres com quem já saiu, pois gosto de coca cola
e sorvete e filmes de suspense e massas, fiquei imaginando que ele estava habituado
a um tipo de mulher que jamais serei, de voz doce, que cruza as pernas e pede
salada num restaurante cujo menu tem filé. Disse ainda que eu mantinha sempre uma distancia segura, falava menos do que devia
e era orgulhosa demais pra declarar sentimentos, ou ao menos admiti-los, e ali
parada entre as intrusas palavras dele e seus olhos encantadoramente castanhos,
achei que ele era o homem mais lindo do mundo. Ele se aproximou, e eu já sabia
exatamente onde aquilo iria acabar, mas não o impedi, abri os braços e as
pernas e todos as células do meu corpo, mesmo as que já estavam mortas e deixei
que ele ficasse, antes que o verão acabasse e ele percebesse o óbvio, que sou
generosa o suficiente pra querer mudar o mundo e egoísta ao extremo de ter
preguiça de começar, que sou um risco pra saúde mental e emocional de
qualquer um, que tudo de sacro por aqui é profano e que escrevo pra não gritar,
e é tudo isso que faz de mim uma flor com pétalas de aço inoxidável, e que tudo
em mim é ferido, é ultrajante, é infame.
E ali em
seus braços, perdida em sensações tão estranhamente familiares, eu já sabia
exatamente como as coisas acontecem e que ele não ficaria para os próximos
verões; E por isso espero que esse verão dure, afinal, eu já aprendi... Os
melhores verões são utópicos como essas minhas palavras e ninguém é estranho o suficiente pra ser a minha metade, eu não
tenho metade. Tiara Sousa