segunda-feira, 22 de dezembro de 2014

CARTA PARA DEUS

“És um senhor tão bonito;
Quanto a cara do meu filho.
Tempo, tempo, tempo... Vou te fazer um pedido.”
Caetano Veloso

Verissa muda as flores de lugar, as flores que ela não tem. Caminha pela sala, tá pensando em não pensar em nada, ela odeia pensar demais sobre pensar demais, ela queria era que a casa engolisse ela e tenta decidir se está de mau humor ou bom humor, se usa o batom cor de rosa ou o vermelho berrante, se pinta as unhas de verde ou de lilás. Acaba percebendo que não tá nem aí pras unhas, nem pra cor do batom, nem pro tom azul acinzentado do céu. Senta á mesa e come alguma sobra de comida natureba que a irmã fez, é um daqueles dias em que ela sente culpa até de ser alguém que come carne, o celular chama, devem ser uma das amigas loucas e tristes e alegres e tolas e fortes que nem ela procurando algum motivo na rua pra conseguir dormir depois, ou então deve ser um daqueles carinhas meio bonitos, meio inteligentes, e cheio de defeitos que ela mesma faz questão de colocar em seus indevidos lugares. Ela queria era que a casa engolisse ela, e que as crianças na África sorrissem como os seus sobrinhos, ela não vai atender o celular, ela vai é cantarolar aquela música estranha de Marisa Monte enquanto chora e sorri por algum motivo óbvio que não vai querer compartilhar com ninguém.
Viviane dirigi, ela sempre dirigi pra onde tem companhias, esse negócio de silencio faz muito barulho, esse negócio de clausura é coisa de quem se ama pouco, essa história de solidão é pra quem é pouco realista. Ela quer é ficar fora de casa, porque em casa é tudo muito normal e ela não aguenta mais isso, ela já foi a menina do interior, ela já foi a esposa, ainda é comum, mas gosta mesmo é de gente incomum, ela quer é fazer amor a beira mar e amar amores impossíveis e usar saias curtas e fazer de conta que tá tudo bem do jeito que está. Aprendeu mesmo a fazer de conta, passou tanto tempo fazendo de conta que estava tudo bem que hoje até ela acredita, menos quando fica só, por isso ela não gosta de ficar só, por isso ela prefere que a casa esteja arrumada e limpa e vazia dela, porque já tem um tempo que tá tão cheia que sente o vazio de tudo. E só ela sabe que felicidade é encontrar a blusa certa pra sua altura e corpo, a música errada pro seu momento e algum texto curto que diga tudo o que ela tá sentindo e não se pareça nada com o que ela vive. Ela tem medo, medo de tudo voltar a ser como era, medo de tudo nunca voltar a ser como era, medo de ser tão ela que nunca mais seja ela, e dividida entre dois mundos publica fotos nas redes sociais onde ela tá sempre sorrindo, porque as maiores dores são impublicáveis e efêmeras e não merecem atenção.
Verissa fala do rapaz que usa palavras bonitas com ela, ele nunca tá por perto, mas ela sempre esbarra com ele, e ninguém tem que entender isso, só ela. Viviane fala do homem do presente, porque passado é coisa de quem não tem consciência que o tempo tá passando, ela nunca teve tanto apreço e nem tanto medo do tempo.
Eu viro os olhos, eu sempre viro os olhos, e finjo não perceber a dor delas, preciso transparecer uma certa frieza e uma certa distancia pra poder dormir em paz ainda que seja as 4 da manhã e com o cinzeiro cheio de pontas de cigarro.
Viviane é uma realista que sabe sonhar. Verissa queria sentir como a menina do filme. Eu queria tomar um porre, mas não posso. E só por isso acho que elas são mais livres do que eu, porque elas nem fazem isso, mas podem, elas podem sair numa sexta feira e beber todas, e essa coisa pequena é a diferença entre a prisão e a liberdade, e tem um monte de grades a minha volta, invisíveis aos olhos mais atentos, e eu tô sempre presa. Eu sou a sonhadora, assisto filmes e leio livros não apenas por passatempo ou prazer ou exercício intelectual, mas somente porque a vida me assusta e os dias mais alegres me soam entediantes.
Verissa muda as flores de lugar, as flores que ela não tem. Viviane dirigi, ela sempre dirigi pra onde tem companhias. Eu queria mesmo era encher a cara e falar besteiras e fazer amizades e sorrir e dançar e cantar e existir uma existência extrovertida e simpática até às 5 da manhã, mas eu não posso, e só por isso acho que elas são mais alegres do que eu, eu que tenho lapsos de memória, atenção altamente prejudicada, pouca agilidade em resolver coisas simples, e tenho elas, as moças que caminharam comigo o ano inteiro e que podem tomar um porre quando quiserem, mas ao invés disso, sentam comigo no chão da casa de Verissa e falam tolices e não tolices até ás 2 da madrugada, e embora eu saiba que elas se entretenham e se divirtam e se curem de dores e mazelas tanto quanto eu nesses momentos, ainda acho (mesmo quando quero tritura-las e esgana-las e discutimos) que elas são as moças mais lindas do mundo só por estarem ali, e fico bem por pensar que elas sejam mais livres e mais alegres que eu. Se eu acreditasse em Deus, enviaria uma carta a ele dizendo essas coisas e pedindo que ele guardasse um lugar bem bonito no céu pra cada uma delas, um lugar onde Verissa pudesse ter todos os tipos de flores imaginárias que quisesse e onde Viviane nunca ficasse só, nem quando estivesse só. Mas como a minha fé se resume ao tempo... “um senhor tão bonito quanto a cara do meu filho”, ofereço apenas um sóbrio brinde ás meninas por tantos anos de amizade, mas sobretudo pelos últimos quatro anos, e pelos últimos 365 dias, e pelas últimas horas, e pelo último segundo, em que não pude tomar um porre, mas tive companhia pra sonhar. Tiara Sousa