quinta-feira, 26 de julho de 2018

SAPATILHA AZUL


Às vezes acho que tem mundo demais. Mas mesmo assim me sinto apertada, como se esse lugar de tantos países, línguas e continentes não me coubesse. Como se esse lugar me oprimisse. É uma sensação entre o meu corpo que dói de saudade de objetos que não tive, pessoas que não conheci, momentos que não vivi, fatos que não presenciei, e a minha vontade de gritar. Mas o pior é quando meu corpo dói e pronto. Apenas dói. Sem saudade de nada. Como se houvesse um deus pra cada parte que dói, doer direito.
Eu não poderia comprar aquela sapatilha, ela era azul, e sempre achei que tudo que é só azul, é azul demais. Nem sei bem como fui parar naquela sapataria, é só que eu não poderia ficar em casa. Não naquele dia. Não tão triste quanto estava. Então peguei a chave do carro e saí, quando dei por mim estava lá, experimentando sapatos, e eu nem gosto de sapatos, ou fica pequeno, ou grande, ou desconfortável, ou simplesmente é azul demais. Mas experimentar sapatos era tudo que eu conseguia fazer, e eu era a única da loja que experimentava sapato chorando, mas eu não via ninguém, logo era como se ninguém me visse. Quando a gente tá muito triste, é só a gente, o mundo, e um monte de sapatos. Que vontade que tive de eu inteira caber dentro de um, mas como não cabia, saí da loja sem um sapato sequer, só com a havaiana de sempre.
Depois fui a praia, sozinha, sentei a beira mar, apenas com um energético e uma carteira de cigarros, pensando sobre todas as coisas que de tão grandes nunca irão caber dentro de um sapato. A tristeza que eu sentia aquele dia por exemplo só caberia em mim, e eu ficava olhando o mar e pensando que nem mesmo ali naquela imensidão, naquele infinito, naquela beleza, naquela solidão, minha dor caberia tão bem quanto em mim.
É que assim como toda gente, cresci numa sociedade em que as pessoas medem palavras a toda hora do dia, mas sempre esquecem de medir as atitudes, e eu nunca aprendi a agir assim, e tentei tanto, durante tanto tempo, agir como os outros, ser mais adaptável, mas fui na contramão, sempre vou na contramão. É que há um amargo entre meu siso e a minha veia aorta que me faz nunca medir as palavras, mas sempre medir as atitudes. É que na infância tive uma boneca cujo a aparência não me agradava, então pintei o cabelo dela, cortei, fiz uma roupa diferente, tatuei ela com cola colorida, costurei uma bota de fiapos pra ela, mas nada adiantava, ela ainda era ela, ainda tinha aquela cabeça imensa típica das bonecas Moranguinho, e foi essa a minha primeira grande lição de vida... A gente muda o tempo inteiro, mas sempre tem uma coisa suficientemente grande que faz a gente ser a gente, e essa coisa irá continuar pelo resto de nossas vidas.
E não importa o quanto eu tente, nunca entenderei certas coisas tão naturais para algumas pessoas. Ainda não entendo o que move a humanidade. Não entendo porque depois de duas horas de culto, os evangélicos da igreja da esquina criticam os boêmios nos bares. Não entendo como se pode ferir gratuitamente quem diz amar, nem o que leva as pessoas a uma cegueira e surdez de consciência, ou porque colocam seus desejos e anseios acima dos sentimentos. Definitivamente não entendo que ambição é mais leve que um abraço, que orgasmo é mais feroz que uma saudade, que tesão é mais digno que um sorriso, que vontade é maior do que um amor, que vaidade pode superar uma história bonita. Não entendo e não quero entender.
Não quero mais aprender a agir como os outros, a ser mais adaptável, a deixar de ir na contramão. Não faço mais questão de ser como a maioria dessas 7,6 bilhões de pessoas que compõe a humanidade, se no fim de cada rua cai um pedaço de mim que jamais recuperarei, se nas dobras da minha saia cor de rosa não tem mais espaço para novas dores, se ás vezes acho que tem mundo demais e mesmo assim me sinto apertada, como se esse lugar de tantos países, línguas e continentes não me coubesse. Como se eu fosse uma sapatilha azul demais e por isso nunca saísse da vitrine da loja.
Depois de duas horas concluindo essas coisas e chorando a beira mar, levantei, entrei no carro, voltei a sapataria e comprei a tal sapatilha. E ela nem parecia mais tão azul. Tiara Sousa

terça-feira, 22 de maio de 2018

PÁGINA 77

Imagem do site Pixabay
A minha pretensão, desde cedo, era passar pela vida intacta, como quem percorre um caminho conhecido ou como quem só viaja com um mapa em mãos. Eu queria saber dos segredos antes, conhecer os limites das dores, as sinuosidades das linhas. Fui atrás dos conceitos, das teorias, observei cada comportamento, cada distração, na esperança que me fosse revelado um algo de constante na humanidade. Mas não consegui, nunca consegui. A vida não é óbvia nem por um segundo, não há roteiro. Ela apenas acontece e dilacera.
Cheguei a pizzaria por volta das 20 hs, já eram 20h12 e nem sinal da minha pizza chegar. Eu estava entediada desde as 17 hs, tinha tentado ficar em casa ao invés de ir enriquecer dono de pizzaria, mas me frustrei com um livro na página 77, porque ali aconteceu algo que eu não suportei. O que mais gosto nos livros é isso, se algo te frustra você fecha e segue a sua existência intolerante, egoísta e mesquinha sem o livro reclamar uma linha sequer.
Os olhos castanhos da garçonete grávida me incomodaram, os olhos castanhos da menina de trança da mesa ao lado me incomodaram, os olhos castanhos do rapaz que fazia as entregas me incomodaram. Olhos castanhos sempre me incomodam. Talvez por isso meu antepenúltimo namorado tivesse os olhos pretos, e o meu penúltimo os olhos verdes e o meu último, azuis. É que passo tanto tempo pensando em tudo e em todos que só penso em mim, e me incomoda o fato de crer que toda a dor do mundo só pode caber na beleza comum e estranha de olhos castanhos. E os meus são tão castanhos que ás vezes ardem.
Eu precisava matar o tempo. Tem gente que coleciona horas, dias, fases, eu prefiro enforcar o tempo em praça publica antes que ele me enforque, antes que eu perceba que enquanto ele passa não são apenas as minhas células que vão morrendo, ou o meu colágeno que vai diminuindo, mas a minha memória toda se despe e me atravessa como uma faca, eu prefiro agarrar a porra da faca. Então fiz algo que sempre faço quando quero matar o tempo, há quem nesses momentos leia Nicholas Sparks, quem fique no celular, quem veja as últimas noticias, eu observo as pessoas em volta, porque acho que ali moram todas as histórias de Sparks, todos os passatempos dos celulares, e cabem ali todas as noticias. E já aconteceu de eu observar as pessoas a minha volta e até me encantar por elas, mas na maioria das vezes eu me arrependo da minha condição humana e saio latindo para as poucas flores que ainda encontram-se pela cidade.
Na mesa a frente da minha rapazes debatiam seus relacionamentos, é tão raro flagrar homens em conversas assim que decidi observá-los, eles falavam de mulheres que passaram pelas suas vidas e enquanto eles falavam eu recordava de experiências vividas, de homens passados, de dores insuportáveis que suportei, e me dei conta que já fui todas essas mulheres pra todos esses caras, já quis mais do que deveria, já odiei tanto que era somente amor, já sumi dos meus olhos, já me entreguei inteira e saí despedaçada,  já lutei por causas perdidas e já fui uma causa perdida, já fui exaustivamente conquistada, já fui extremamente mau amada, já me apaixonei pela ideia de alguém, já gostei tanto que tive medo que ele escorresse pelos meus dedos e por que eu tinha medo todos os meus vazios eram ele. E enquanto me encontrava em cada uma das mulheres daquela conversa, um dos rapazes ali sentados começou a narrar as ousadias românticas que a sua ex fez por ele, enquanto o ouvia me dei conta que nunca, nenhuma ousadia minha jamais foi por homem algum, foi sempre por amor a mim, eu nunca gostei de nenhum deles como gosto de mim, mesmo quando cada objeto insignificante da minha mesa de cabeceira era uma paixão, era porque eu tava completa e perdidamente apaixonada, e se queria muito, era porque a solidão me desconstruía, e se pensava muito era porque estava entediada, e se ansiava muito era porque ardia de desejo e se não era mais, eu não queria mais. Não queria porque ninguém nunca me amou como eu, nunca me desejou, me rejeitou, me decepcionou como eu, o que vinha do outro era sempre insípido comparado ao que vinha de mim e pra mim. Sou eu a pessoa mais capaz de tirar e triturar e exterminar e apanhar e recolher e retirar e tomar e desviar e dissuadir e arrancar e abduzir e arrebatar e desenraizar e expulsar e extrair e puxar e remover e sacar a minha paz. A ex de quem o rapaz da mesa a frente falava não cometeu aqueles atos desesperadamente românticos por ele, ela os cometeu por estar perdida e completamente apaixonada por si mesma.

Gostei, mas detestei gostar da coerência masculina naqueles rapazes, detesto o fato de eles acharem que tudo tá normal, que tá tudo certo e que cada coisa tá no seu devido lugar. Detesto, porque sabia que quando eles chegassem em casa sentariam no sofá, e que eu ao chegar em casa iria mudar o sofá de lugar pela quinta vez só esse mês. Detesto, porque tenho a mania de pensar que a tampa da minha panela sou eu, que a minha outra metade sou eu, que o meu príncipe encantado num cavalo branco sou eu, e porque tenho o que a minha vó chama de “essa mania feia”, pra me amar tem que me suportar um pouco, tem que se ferir um pouco, tem que se pisar um pouco, tem que saber sonhar em horário comercial. Detesto, porque eu só queria uma pizza metade bacon, metade frango com catupiry e não consegui nem por alguns minutos ser a mulher que senta, come uma pizza e vai embora achando tudo natural. Eu tinha que abominar tudo ao meu redor e chegar em casa com o estomago cheio e os olhos castanhos vazios, sem coragem de abrir uma droga de livro e continuar a minha leitura, porque na página 77 percebi que a protagonista não conseguiria passar pela vida intacta, como quem percorre um caminho conhecido ou como quem só viaja com um mapa em mãos. Tiara Sousa

segunda-feira, 7 de maio de 2018

ESTRANHOS COMO EU


Finalmente entendi o que me move, e o que me move não é a Primavera, nem o Verão, nem o Outono, nem o Inverno, o que me move é a promessa de uma Primavera, é a promessa de um Verão, é a promessa de um Outono, é a promessa de um Inverno, é a paixão. Por isso gosto mais da ideia de alguém do que de alguém de fato, e nunca mais ousei desmontar as minhas formas, estou a margem de mim, sorrio das superfícies. Mas nem sempre foi assim...
Aos 9 anos eu fui levada pela primeira vez a psicóloga. As diretoras da escola não me compreendiam. As professoras não me compreendiam. Os meus colegas de turma não me compreendiam. Nem a droga do meu cachorro me compreendia. Tava todo mundo querendo que alguém desse um sinal de como lidar comigo, alguém que falava com os bibelôs bregas e ridículos da estante da sala da minha avó, mas que não olhava nos olhos de ninguém por mais de cinco segundos, e cuja a conversa mais longa que conseguia estabelecer com um ser humano que não fosse do convívio cotidiano era Oi. E não, não tô julgando todo mundo por querer me mandar pra terapia, eu era estranha mesmo, eu gostava de gente comum, de passeios comuns, de filmes comuns e livros comuns, mas mesmo assim eu era estranha pra caralho. Eu andava meio que saltando, meu cabelo não combinava comigo, o meu corpo não combinava comigo, a minha farda amarela de abelhinha era tão exótica que chegava perto, mas ainda assim não combinava comigo.
A equipe pedagógica da escola achava mesmo que eu era retardada, já a minha mãe achava que eu iria mudar o mundo, coitada, eu tava cagando e andando pra o mundo, eu já tinha o meu mundo, ele era só meu e nele não cabia 98% da face da Terra (é que sempre achei tudo tão cruel por aqui). A minha professora passou a dormir depois das onze pensando em diagnósticos pra mim, o meu cachorro meio que me suportava (e eu amava ele), as minhas tias só queriam que eu crescesse logo e honrasse a educação cara e sacrificada que eu recebia ficando rica, bem sucedida e prática, mas no fundo mesmo sem entender muito sobre mim elas sabiam que isso seria difícil (pra dizer o mínimo), e eu, bem, eu queria aquele sorvete self service que vendia na Lobras, e ainda quero, mas a Lobras faliu há mais de uma década.
Eu não era triste, nem doce, nem competitiva, nem parceira, nem altiva, nem prática, eu era estranha, puta merda gente, eu era a criança mais estranha da escola, a mais estranha da rua, a mais estranha da casa, eu conseguia falar sobre paranormalidade e nuances rítmicas enquanto penteava Barbies ridiculamente loiras, altas e magras, como é que alguém com menos de 1,50m (se é que algum dia eu tive menos de 1, 50m) poderia ser tão contraditória, terapia era pouco pra mim.
Depois de um tempo, de muita terapia, e de um monte de teste chato, a tal psicóloga fez um apanhado sobre a minha personalidade (oh mulher tapada, eu não era nada daquilo que ela dizia, eu só era estranha mesmo), e entregou um papel a minha mãe com resultados de testes afirmando que eu tinha um Q.I bem alto, a minha mãe deu saltos de alegria e passou aquele papel na cara de meia escola, de meia rua, de meia casa, de meia São Luís, tadinha, como quem dizia... - Eu sempre soube, minha filha é genial. O problema é que pra minha mãe toda criança que sabia falar paralelepípedo era um gênio, e como eu não sabia resolver uma expressão numérica sequer, mas tinha um vocabulário digno de gente grande, lia muito e escrevia sobre os fusos horários sem horários e sem fusos e toda essa baboseira poética desde os 5 anos, e claro, tinha o DNA dela, ela realmente acreditava nisso. Ela jamais, jamais admitiria que no fundo da minha inteligência, da minha solidão, da minha mania de me desfazer de realidades a todo segundo, da minha incapacidade de lidar com a praticidade das coisas, da minha insociabilidade e nata falta de simpatia só tinha uma pessoinha, um “serumaninho”, uma coisinha estranha pra caralho, que mesmo sendo intelectualmente extravagante, sempre foi emocionalmente limitada, sempre soube amar, mas nunca soube dizer que amava sem combinar as palavras quase que misticamente de forma genérica e literária.
Vinte e quatro anos depois de ter pisado pela primeira vez no consultório daquela psicóloga eu me aprendi, assimilo a confusão que sou, mais do que isso, eu quero a confusão. Sou disforme não porque calo, mas porque as minhas formas gritam.
E a cada estranho no mundo, desejo que se aprendam assim, que liguem um foda-se pra essa moda toda, pra todo esse caos e existam onde se sentirem mais confortáveis, seja num ritual, num mal, num conto, numa crônica, num poema, num orgasmo, num ato, num método, numa canção, num amor, numa igreja ou de quatro num quarto de motel, pois a sua estranheza há de caber em algum lugar. E eu ainda sou a mais estranha da escola, a mais estranha da rua, a mais estranha da casa, puta merda gente, continuo estranha pra caralho, só que hoje tenho a consciência de que a minha estranheza é compacta e sempre foi, cabe num documento de Word, numa pagina de um site, na última crônica que publiquei, cabe aqui e cabe em mim, afinal, não trata-se de como estou, trata-se de quem sou. E eu sempre fui estranha porque o mundo sempre me estranhou, o problema nunca foi eu ser quem sou, o problema sempre foi quem sou não caber no entendimento limitado e ignorante de boa parte das pessoas. E é por isso que espero que estranhos como eu me leiam, se leiam e permitam-se serem lidos. Tiara Sousa

quarta-feira, 18 de abril de 2018

A BAINHA DA SAIA AMARELA


Ele queria que eu o amasse como amo as peças de Shakespeare. Sem meias conversas, sem ressalvas, sem teorias, sem pudores. Assim... Só amando. Mas eu não pude. Eu nunca soube como ser flor dentro de um jardim.
Ele dizia que eu deveria usar batom de vez em quando, que iria ficar mais bela; Dizia que eu deveria usar saltos e pintar os olhos, e vestir aqueles vestidos colados que segundo ele valorizam o corpo; Dizia que escrevo bem, e que poderia escrever sobre qualquer coisa, até sobre o atual cenário político, que isso seria oportuno e me traria ganhos. Ele dizia essas coisas enquanto franzia a testa e passava o dedo médio na sobrancelha esquerda ou enquanto olhava as minhas curvas com ar de propriedade. Mas cada vez que ele tentava me mudar, eu perdia um pouco da respiração, é que eu queria tanto que ele fizesse ideia do quanto era importante ser eu, porque eu era tudo que eu tinha quando não tinha mais nada, e sair por aí maquiada, de salto e com uma roupa provocante, e escrever sobre atualidades seria me fantasiar pra um mundo que assim como ele não compreendia a minha face limpa, os meus vestidos largos, as minhas sandálias rasteiras, os meus contos e crônicas sobre coisas não palpáveis, ainda que palpáveis.
Eu ficava esperando ele sentada na garagem, mas quando ele chegava e me olhava com aquele olhar crítico de quem esperava alguém mais comum, mais presa a tradições, hábitos e costumes, uma mulher mais lapidada, de formas e modos e sonhos mais delineados pela sociedade, eu pensava que enquanto esperava por ele, ele buscava alguém que supunha que eu poderia ser, mas que não era.
Ele não entendia porque no fim da tarde eu dirigia minutos e mais minutos até a praia só pra sentar a beira mar, nem porque eu preferia batata frita e Milk Shake a Sushi, nem porque todas as noites eu esperava pelas noites seguintes, nem mesmo o que eu via nele, não entendia e não queria entender, e eu passava a maior parte do tempo entendendo por nós, e quando cansava, escrevia sobre a bainha de uma saia amarela que ele detestava, porque nela tinha umas miçangas que ele sempre dizia que eram meio bregas e que não me favoreciam, e essas miçangas que ornamentavam a bainha de repende se tornaram a tradução perfeita do abismo que éramos nós, porque eram essas miçangas a minha parte favorita daquela saia.
Eu não queria que ele gostasse de mim exatamente como eu sou, eu queria era dizer a ele que eu sentava a beira mar nos fins de tarde porque há um mar para cada tarde, e que o meu paladar infantil é que sustenta a minha alma quando ela tá ferida, e que esperar todas as noites pelas noites seguintes é meu modo torto e desajeitado de saber sonhar e que o que via nele era o que ele nunca tinha ousado enxergar em mim, eu via o mais tarde. Mas eu calava, porque o olhar dele quase que exigia o meu silencio, e me entregava a ele como se cada célula do corpo dele fossem sagradas enquanto profanas, me entregava porque de tudo que ele não entendia, a minha pele implorava.
Ele queria que eu o amasse como amo as peças de Shakeaspeare, sem meias conversas, sem ressalvas, sem teorias. Assim... Só amando. Mas ele não compreendia que amar uma tragédia era menos trágico que amá-lo, porque eu só queria que ele amasse a bainha da saia amarela. E ele não pôde. Tiara Sousa

quarta-feira, 28 de março de 2018

COMIGO NÃO


Imagem do Site Alto Astral
O sexo era incrível, ele não. Ele tava tão perdido que haviam momentos em que toda verdade era meio verdade e meio cínica, e então só sobravam mentiras pra ornamentar os espaços que ele não preenchia. E eu me apaixonei pelos problemas dele, pela dor dele, pela incapacidade dele de sair do fundo do poço em que se enfiou. É que sempre achei tão bonito pensar que alguém é mais do que a realidade em que vive, do que as limitações que tem, do que a tristeza que esconde ou tenta esconder, do que as perdas que coleciona. Mas a gente é sempre uma junção de tudo isso, e eu não me sentia especial por estar com ele, eu me sentia especial por me familiarizar com o que ele passava, por já ter passado parecido, e por ter sobrevivido, e isso me fez pensar que estar com ele era certo.
Das 3.672 horas que passei com ele, nenhuma me ensinou a me sentir acompanhada. Ele batia em minha porta, e eu o deixava entrar, na minha casa, no meu quarto, no meu corpo, na minha carteira de cigarros. Eu esperava por aquilo, eu meio que desejava aquilo, eu meio que detestava aquilo. Vez ou outra ele falava de namoro, eu sempre fugia do assunto, eu sempre dizia que não, que ainda não, e não era que eu estivesse certa do que falava, é só que eu mal me aguento, e que às vezes é mais fácil eu ser exclusividade minha, e eu desejo tanto medir as palavras e pensar antes de falar, que isso me esmaga, é como colar uma concha na orelha e não conseguir ouvir o barulho do mar.
Ele aparecia e eu pensava... Isso pode dar certo, eu posso sair por aí catando os pedaços dele até ele ficar inteiro. Ele sumia e eu pensava... Isso não pode dar certo, eu não posso sair por aí catando os pedaços dele até eu ficar em pedaços. Ele falava do passado e eu morria um pouco, porque a presença do passado ocupava todos os espaços e eu ficava oprimida entre a minha lingerie cor de rosa e a incapacidade dele de ver além das rendas que a enfeitavam. E me chamem de louca, mas eu sempre trajei longos e abdiquei de decotes pra ser vista, eu sempre achei que nenhuma das minhas curvas eram páreas para o meu cérebro, mas o problema de se pensar assim é que pensar assim faz do mundo um auto retrato do que você apenas suporta, e eu nem me dava conta de que apenas suportava aquela situação.
É que ele tava perdido em teorias que pra mim não significavam nada, é que eu tava contemplando letras de canções que pra ele não diziam nada, é que ele exaltava lembranças que não cabiam em nenhum dos meus sapatos, nem mesmo na sola dos mais desgastados, é que eu calculava horas que ele não exitava em jogar fora. E eu sou sonhadora demais pra aceitar pedidos de namoro que não façam os músculos do meu braço esquerdo tremerem, sou sonhadora demais pra não ser a protagonista da vida do cara que tiver comigo, e não consigo ser mais ou menos gostada e nem gostar mais ou menos, é que entre o meu estômago e o meu baço tem mais de uma década de experiências constrangedoras publicadas e expostas pra quem quiser ler.
E eu... Que sempre me senti estranha por gostar de músicas que quase ninguém da minha geração gosta, por detestar cós muito baixo e querer que cada uma dessas novas feministas que saem por aí sem blusa e apenas de sutiã vermelho paguem as minhas entradas nas festas em que antes mulher não pagava e que agora “graças” a elas, pagam. E eu... Que sempre me senti extremamente antipática por achar que é foda (no bom sentido) ser politicamente correto ou a favor do meio ambiente ou defensor dos direitos dos animais ou a favor da preservação do boto rosa ou do tipo que economiza água em prol do futuro da humanidade, ou daqueles que detonam glúten, frituras e gordura trans, mas que ser todas essas coisas juntas é ser chato pra caralho e soa um tanto hipócrita. E eu... Que sempre me achei absurdamente difícil por pensar que se for pra fingir orgasmo é melhor nem abrir as pernas, que se for pra aguentar descaso é melhor nem se apegar, que se for pra sofrer por uma paixão que seja pra doer da alma até a vagina.
E eu... Que sempre me senti assim sobre tantas coisas, deitei no chão da sala após o último telefonema dele, após a maneira rude com que ele falou comigo, e tomando consciência do modo displicente como ele vinha me tratando, ali, deitada naquele chão gelado, apenas com a visão inalterada do teto, eu percebi que eram essas tantas coisas sobre mim que davam sentido ao fato de que ele não deve, mas até pode agir desse modo com algumas mulheres por aí, mas comigo não, porque eu posso me sentir e ser estranha e extremamente antipática e absurdamente difícil, mas eu sou incrível, ele não. Tiara Sousa

quarta-feira, 14 de março de 2018

AOS QUE SABERÃO EXATAMENTE DO QUE ESTOU FALANDO


Fios de cabelo caindo pelo rosto incomodam ela. Assim como dias dinâmicos e expectativas frustradas, e o fato de que nem todo mundo sabe lidar com a dor. Ela gosta do obscuro, do inevidente, latente, subentendido, confuso, oculto, encoberto, inacessível, inexplicável, indecifrável, inabordável, intratável, de quem pinta o céu de laranja, as nuvens de amarelo e o sol de lilás, mas ela mesma não é assim. (E os incoerentes saberão exatamente do que estou falando).
Por vezes ela sente-se a coadjuvante de um dos poemas de Sylvia Plath, como a parteira que bate nos pés da protagonista de “Morning Song”, ou o anestesista que recebe as histórias de “Tulip”. Por vezes ela finalmente sente-se a protagonista, mas de um poema que Plath sequer escreveu. É que ela concebe o cotidiano como ácido, é que algumas vezes é tudo ácido, a goteira no terraço, a música no CD, o fim do dia, o inicio da noite, o presságio de um novo amor, os estilhaços de um amor antigo. É que ela quer morar dentro de uma música dos Beatles, de um conto de Osman Lins, de um soneto de Camões, de um roteiro de Almodóvar, e ela quer tanto que fica sem lar, transitando em meio a palavras que nem são suas, que sequer acomodam-na. E tentar, é só tentar, é nunca ter um lar, é ser um andarilho, um itinerante de suposições vagas de alguma coisa amarga, nostálgica e misteriosa. (E os sonhadores saberão exatamente do que estou falando).
Há dias em que tudo se esgota, a enfraquece, e então ela senta numa velha cadeira de madeira reformulando e pensando nos detalhes do rosto do último homem a quem ela se entregou, é que ela ficou olhando ele por horas enquanto ele dormia, tentando decorar cada traço, cada linha de expressão, cada detalhe facial, pra que quando ele partisse, ou ela, nada fosse esquecido, pra que como de costume ela não conseguisse arrebentar os pontos que ele costurou. (E os românticos saberão exatamente do que estou falando).
Ela foi amada por momentos distintos e homens distintos, mas nunca parecia ser amor suficiente, e desde a primeira vez tava tudo ferido, ela sangrava por sentir-se dois e nenhum, mas nunca um, nem quando ele tava dentro dela. Fazer o que, ela tem o péssimo hábito de querer salvar as pessoas delas mesmas, a família, as amigas, os amigos, o padeiro, a arquiteta, o poeta, o mendigo, o burguês, os homens por quem se apaixona. E ás vezes ela chega perto, outras vezes não, e ela sempre conclui a mesma coisa e com a mesma tristeza, que essa história de querer salvar diz mais sobre ela do que sobre qualquer outra coisa e pessoa, e é tão possível que tamanho altruísmo seja um egoísmo fantasiado, e que tentar salvar seja a forma que ela encontrou de confrontar a realidade de um mundo ao qual ela não se adapta, um mundo sem fadas madrinhas e lâmpadas mágicas. (E os inadequados saberão exatamente do que estou falando).
Ela vive para os finais, mas sabe esperar por eles, afinal não lhe agrada saber como as coisas terminam sem o processo, sem o desenvolvimento, pois sem estes, o final, ainda que feliz, não lhe basta, é sempre frustrante. É como enterrar um objeto estimado, é como maldizer teorias atemporais, é como fechar os olhos para a chuva, é como se permitir sentir depois de uma decepção. É corajoso, mas não basta. (E os céticos saberão exatamente do que estou falando).
E eu decidi escrever sobre muitas coisas, ou a escrita me decidiu, já não sei bem... Mas num tempo de 12 minutos, talvez 14, ou 16, ou de horas e dias, eu poderia fazer alguém se reconhecer nas minhas palavras, e pra mim é o que vale, é o que sempre valeu, palavras unidas que chegam a alguéns. E eu decidi escrever sobre ela, não porque ela merecia, ou porque eu precisasse, mas porque a cada momento que passando pelo corredor me deparo com o espelho, é a ela que vejo, feita e ornamentada e consagrada e invariável e tola e enraizada e entranhada e íntima e intrínseca e arraigada e estabelecida e fixa e firme e inveterada e inalterável e sólida, a minha imagem e semelhança. (E os escritores saberão exatamente do que estou falando, exatamente.). Tiara Sousa

quarta-feira, 3 de janeiro de 2018

LIVRE

Imagem do site Correio Brasiliense
Era um lugar tão cheio, mas tão cheio, que eu conseguia sentir a linha do vazio que passava pela clavícula do homem de terno e ia até o cotovelo rosado da garota de All Star. Lembro de sorrir pra disfarçar o meu incomodo pequeno burguês por gente pequeno burguesa, e por gente burguesa, e por gente quase burguesa, e por gente que combinava sapato com bolsa e tênis com relógio. É que eu preferia gente descolada, o que era no mínimo preocupante, pois preferir gente descolada quando na realidade nem mesmo eu era descolada é como começar a amar a chuva no fim da chuva, é tardio, infantil e inapropriado. Eu usava sandálias rasteiras e saias coloridas e achava que o mundo inteiro tinha que cair aos meus pés, mas não tinha, eu era só uma garotinha tola com medo de altura e de infinitos, que tinha duas unhas encravadas, meia dúzia de acnes e tendência a Transtorno Obsessivo Compulsivo. Eu tinha só 14 anos e era a primeira vez que passava o Réveillon longe de casa, tava na casa da avó de uma amiga da escola, uma casa tão grande e tão bonita e tão cheia de móveis caros que fazia o mundo parecer muito mais superficial do que realmente é. Nunca esqueci desse Réveillon, era a chegada do tão esperado século XXI, e a única coisa que eu queria era um analgésico.
Agora é tudo diferente, exceto o meu cabelo crespo cacheado, que continua demorando a crescer e dando o maior trabalho pra desembaraçar, é que entre o cacho número 2 e o cacho 5.325 tem a exata dor da primeira vez em que eu não consegui chorar um fim, aquele dia foi estranho, porque eu pensava que sempre seria fácil lamentar como uma menina a perda que só cabe a uma mulher. Eu moro numa casa que não é de campo, que não tem um banco suspenso de madeira de lei, que não tem uma sala cheia de “livros e discos e nada mais”, eu conserto a minha alma sozinha entre um trecho Hamlet e um capítulo de Dawson’s Creek, e vez ou outra as rãs vem me visitar, parece que elas sabem que eu tenho mais medo delas do que de altura, de portas abertas e de cadeiras viradas no sentido contrário da rua.
Agora é tudo diferente, exceto o asfalto da rua detrás da casa da minha avó, que continua esburacado e excessivamente quente, mesmo na época de chuva ainda dá pra fritar um ovo nele, se aquele asfalto falasse, creio que falaria do mundo com uma propriedade que nunca coube em jornais e na literatura. O século XXI chegou a maior idade, seus dezoito anos já proclamados de regras e utopias desfeitas, já eu, tô com trinta e dois, e o meu Alter Ego tem milhares de visualizações semanais, os meus pais passaram dos sessenta e eu resolvo os meus problemas com cigarro, coca cola e relaxante muscular. Meu coração continua insólito, se contrapõe ao gosto impreciso das precisões, paredes e sinônimos me oprimem, eu nunca cancelo compromissos, mas também não os assumo, sou hipócrita ao falar de amor, porque o que amo nunca coube em palavras.
Agora é tudo diferente, exceto os meus olhos que insistem em flanar pelos dias tortos de dúvidas e alvoroços, é que desde o inicio achei o Século XXI invulgar, porque nele parece que o amor está sempre entre o ultrajante e o démodé, há muita formalidade nas informalidades e eu me atrevo entre mesmo assim amar as folhas secas das arvores velhas que esqueceram de derrubar. Vivi a maior parte da minha vida no século XXI, mas ainda não me acostumei com ele, ainda não entendi porque tem grades na minha casa, na escola em que meu filho estuda, na Universidade que frequento, ainda não entendi porque tem grades no tesão das mulheres, no modo como elas se sentam, como elas cuidam da casa e da família, ainda não entendi porque tem grades nos sentimentos, nas letras das músicas, nos Best Sellers, ainda não entendi as grades das mentes das pessoas, ainda não entendi as prisões de máxima segurança e invisíveis que povoam as mais diversas realidades. Não entendi, porque só sei sorrir enquanto sou livre, grades me amputam, são como o esgoto estourado na rua mais alegre da periferia, como o menino morto por um bala perdida num confronto entre policia e traficante em alguma comunidade do Rio de Janeiro, como o meu povo preto que em sua maioria não teve as mesmas oportunidades que eu, como as mulheres abusadas e estupradas e agredidas e sós, mesmo acompanhadas, como os desfalques públicos e os privados, como a realidade assustadora e a ilusão incoerente. São como se auto abortar. São como a dor.

Agora é Janeiro de 2018 e eu continuo esperando Janeiro de 2001. Continuo sentindo a linha do vazio que passa pela clavícula do homem de terno e vai até o cotovelo rosado da garota de All Star. Continuo sentindo todas as linhas de todos os vazios. Continuo sentindo... Feliz 2018 a todos os meus leitores, gente que assim como eu continua esperando 2001, esperando que finalmente esse século comece e que permita a todos serem livres, ainda que livres para escolherem as suas prisões. Tiara Sousa