quinta-feira, 20 de novembro de 2014

ÚLTIMOS DIAS ou CARTA DO TEU INCONSCIENTE

Parecia um dia como qualquer outro, se não fosse doer no fim. Acho que a gente nunca sabe do último dia, o último dia em que vamos caminhar por aquela rua tão familiar, o último dia em que iremos comer no restaurante de sempre, ou fazer compras naquela botique de paredes cor de rosa, que parecem acalmar a gente. O último dia em que tudo será como sempre foi, porque antes o mundo inteiro podia estar um caos, tudo em nossa volta podia estar um caos, a gente podia estar um caos, mas bastava nossas vozes se encontrarem em algum telefonema que todos os furacões e ventanias e tornados e vulcões cessavam, porque nós nos  entendíamos como ninguém, como ninguém mais no mundo se entendia, como ninguém mais no mundo pudesse entender, éramos um para o outro a fuga de toda fatigante realidade, perto de nós tudo ficava tranquilo, e ninguém tinha a chave da nossa porta.
Eu queria saber o que mudou? Quando foi que a gente começou a ter brigas bobas e a permitir que os outros entrassem pela nossa porta? Qual foi o último dia que nos entendemos como ninguém mais no mundo se entende? Qual foi o último dia que nossas vozes se encontraram e cessaram os tornados e vulcões? Qual foi o último dia? Se eu tivesse previsto que seria assim, talvez eu tivesse aproveitado melhor aquele dia, talvez recordasse o clima ou atentasse para aqueles detalhes bobos e significantes. Talvez eu soubesse se foi uma quarta ou um sábado, talvez eu o tivesse prolongado.
A vida acontece enquanto o tempo passa, e mudamos, todos mudamos. Não falo das linhas que surgem na face, nem dos quilos a mais ou a menos, nem de calvice ou flacidez, eu falo de conhecimento, de auto conhecimento, de virtudes e caminhos, de sonhos e concepções. Não éramos a dupla perfeita, nem mesmo os inseparáveis como alguns sempre gostaram de falar, éramos a dupla imperfeita e sabíamos que todo espaço que precisávamos nos dar era entre o telefonema da tarde e o da noite, e tanto fazia que pra todos esse espaço fosse pouco, pra nós era o tempo certo.
Eu falava menos, você mais, não sei se porque eu precisava menos ou aconteciam menos coisas na minha vida do que na tua, ou se éramos assim e pronto, mas do pouco que eu falava eu sabia que só você podia ouvir com os ouvidos de soneto, e isso me bastava. Você dava detalhes do seu dia, eu nem lembrava há quanto tempo eu estava a par de todos os seus conflitos, as vezes eu quase confundia a tua vida com a minha, depois passava, chegavam as minhas contas, os meus problemas, os meus sentimentos, e eu lembrava de mim.
Eu não sei dizer qual foi último dia em que eu tive certeza que sempre ia escutar a tua voz, tão familiar. Não sei qual foi o último dia em que você teve certeza que não importava o quão cruel o mundo fosse, ia ter uma “pequena” do outro lado da linha pra te ouvir e torcer por você. E não sei o que mudou além de tudo a nossa volta, mas não era pra ser assim. As experiencias foram cruéis comigo e sei, não parece, mas há tanto tempo já deixei de acreditar em principes e fadas e finais felizes e pra sempre. Mas mesmo não crendo em nada disso, eu acreditava que a gente era pra sempre, mesmo que nada mais no mundo fosse, a gente era. Acho que eu ainda acredito, acho que nisso sempre vou crer. Que droga! Qual foi o último dia em que ser nós era simples como sentar a beira-mar no dia 31 de um mês qualquer e ver o pôr do Sol? Quando é que vamos voltar a fazer isso? Da sua amiga, do seu inconsciente... Tiara Sousa

segunda-feira, 10 de novembro de 2014

CORAÇÃO GELADO

Ela fez mar. A estante de Madeira velha na sala. A dor no quarto. E todos os dias estavam noturnos. Quem já amou o vazio conhece a tristeza do até mais. O até mais é o fim da pureza, é o começo da canção que evitamos ouvir, é a escova de dentes que ele comprou pra deixar na casa dela, é o quanto essa escova ficou importante, mais do que o lustre de Cristal e o livro de capa preta na última gaveta da cômoda, a gaveta de memórias, que de repente tornou-se tão insignificante perto da última vez que ele escovou os dentes na pia do banheiro dela.
Ela desenhou crianças no papel reciclável.  Ela queria era reciclar a vida. Ela queria era atravessar Avenidas diferentes. Ela queria era querer alguém que não caminhasse como ele, alguém que não beijasse como ele, que não fizesse amor como ele, que não tocasse como ele, tocando o mundo inteiro enquanto tocava o corpo dela.
Ela desistiu de tentar construir conformidades, quem se conforma não conhece o frio que é o fim. O fim é o último sorriso de uma vida. Quem formata imagens não se concentra, não se agarra na perna de alguém pedindo pra não partir. Como se pede amor? Como se mendiga carinho? Como virtudes vão embora?
Ela voltou numa praça, e se lamentos lamentam, lembrou que ali foi feliz. Eram os mesmos bancos, e as mesmas árvores, e a mesma incredulidade dos mais velhos a passar por ali, só ela não era a mesma. Afinal, quem é a mesma depois do depois do depois? Quem é a mesma de antes do antes do antes?
Ela teceu sozinha um tecido de virtudes que foram dela. Ela lembrou de um conto de Drummond em que ele falava de amor sem citar o amor. Ela pediu o fim da guerra a própria guerra. Ela pediu paz ao seu próprio anseio por paz. Ela quis se virar em um dúzia pra tentar ser meia dúzia dentre as dúzias de coisas que ela foi um dia. Ela lembrou que nunca disse a ele porque precisava dele, não era pra trocar as lâmpadas, nem pra consertar o encanamento, ela precisava dele de um jeito bobo, de um jeito velho, de um jeito assim meio inconseqüente e meio firme. Ela precisava dele pra levantar todos os dias, abrir as janelas e dizer-lhe bom dia, era só isso. Finalmente depois de tanto tempo ela pôde entender o que sentia quando não sentia mais nada que não se materializasse em dor. Sem ele ali, com o seu sorriso sério, e seus hábitos irritantes e seu cabelo despenteado, o dia não começava, o dia não começava nunca. E o que ela ia fazer sem o dia? E foi aí que ela fez mar... Fabricou ondas e ventos e sal e água dentro do peito onde ela pensava que ele iria viver pra sempre.
Ela importou sentimentos e se permitiu errar erros dela e por ela. E o coração dela nunca mais foi o mesmo, nunca mais fez voos tão altos, nem se jogou pelo chão, nem se entregou aos momentos. Ela tinha medo, não de sofrer novamente, nem de perder mais uma vez, ela tinha medo era de gostar tanto e com todas unhas, e com todos os fios de cabelo, e com todos os poros, e com todas as zonas erógenas do corpo e da mente. Ela tinha medo de que novamente necessitase de alguém pra que o dia começasse. Mas isso não era amor, nunca foi. O amor não é assim, o amor é começar o dia juntos ainda que separados por quilometros de distancia. O amor é generoso e recíproco, ele não te enlouquece, te acalma. Então ela fez mar, congelou todas as águas de todos os oceanos e guardou dentro do peito, na espera e na esperança do dia em que alguém chegasse e descongelasse seu coração gelado, pra que enfim pudessem começar dias juntos e de mãos dadas reciclar a vida, e de mãos dadas atravessar Avenidas diferentes, e de mãos dadas descobrirem o amor. Tiara Sousa

segunda-feira, 3 de novembro de 2014

A MUSA DOS SONHOS ERÓTICOS

Quis ser a musa dos poetas, aqueles amores não correspondidos, aquele andar sinuoso em misto comportado, aqueles cabelos ondulados e leves no meio da costa. Aquela que sorria com o vento e paralisava os homens nos bares no fim de tarde, e provocava os idosos nas praças a jogar dominó. Pensei em ser a musa dos poetas, libidinosa de tanta pureza, pura de tanto libido. Mas de tão poetisa, nunca fui.
Fui a garota dos bares a sorrir dos próprios destemperos e cantarolar pela boemia, fui o discurso dos padres sem sol, sem lar, sem gosto e com todos os apelos do mundo na pele ressecada de desejos contidos. Eu fui cada coisa que escrevi, só por gostar da dor alheia.
Fui o travesti na esquina, seminu, semicru, semideus, a espera de nada, nada de carinho, nada de humano, nada de fé. Fui a pele marcada pelo sol, pela lida, pelo descaso. Fui a barriga d’água da criança que não sabe sorrir. Fui o preto da favela, os olhos pretos, cabelos pretos, sonhos pretos. Fui a senhora lavando roupas na beira do rio, contando histórias de mãe d’água pros netos esquecerem a fome, mas não se esquece a fome, e ela finge não saber. Fui o flanelinha que esqueceu de vigiar os carros porque viu uma mulher bonita e bem vestida atravessar a rua sozinha e se perdeu na visão do que nunca será dele. Fui o esgoto estourado na rua mais alegre da cidade, porque alegria é poder ouvir e respirar. Fui o gordo de duzentos quilos que a todo instante é criticado por quem tem o peso da maledicência, fui a espera do telefonema do dia seguinte do sexo vazio. Fui o nordestino retratado e insultado nas redes sociais por quem .não aprendeu a perder, e só por isso nunca, nunca fui a musa de nenhum poeta.
Sonhos são tolos, pensei, mas retrucaram-me que não, sonhos não são tolos, e por fim acabei aceitando, sonhos são conscientes. Mas, afinal, onde mora a consciência diante de tudo?
Acabei sendo a musa dos sonhos eróticos do rapaz mais lírico da cidade, aquela que cheirava a flores mesmo quando suava agonias, aquela que sangrava romantismo mesmo quando praticava travessuras.
Aceitei por fim a minha condição de musa dos sonhos eróticos, porque talvez e só talvez nos sonhos eróticos eu não seja essa moça tímida de sorriso aberto, nem carregue tantas dores alheias pelas células vivas do meu corpo, nem construa frases remoendo feridas como seria nos poemas. Nos sonhos eróticos, talvez o meu calor defina e sobressaia os meus olhos tristes, e a minha boca envie recados alegres para o mundo inteiro, talvez ali eu ainda seja a menina que nunca sofreu uma decepção na vida e que creia em príncipes tal qual os das histórias bonitas. Talvez em toda a ação erótica dos sonhos eróticos eu apresente as virtudes e as virtudes me apresentem enquanto um, finalmente, ser livre.
Mas quem diria ainda deixaria por dizer, sentimentos se confundem e sonhos são somente sonhos, porque aqui, no mundo real é a mesma coisa de ontem, o mesmo sol e o mesmo acaso, os mesmos telefonemas e os mesmos amigos, o mesmo calor e simbioses. Só que algumas coisas se perderam, e tem muita gente vazia por aí, muita gente que não sabe saber de tudo sempre e fala o que não devia por que pensa que sabe de tudo e usa uma sinceridade vazia só pra magoar os outros, gente que me faz acordar com medo todos os dias. E eu aqui, entre o céu e o infinito, caminhando de pantufas por esses chãos de vidro enquanto sozinha povôo os sonhos eróticos do rapaz mais lírico da cidade e erotizo a realidade turva de rapazes que nunca serão líricos como ele, porque só ele se conhece tão pouco a ponto de necessitar de mim como seu inconsciente e porque só ele me conhece tanto a ponto de saber que mesmo quando sou a musa sensual dos seus sonhos mais físicos eu não deixo de ser cada coisa que escrevi, só por gostar da dor alheia. Tiara Sousa