segunda-feira, 22 de dezembro de 2014

CARTA PARA DEUS

“És um senhor tão bonito;
Quanto a cara do meu filho.
Tempo, tempo, tempo... Vou te fazer um pedido.”
Caetano Veloso

Verissa muda as flores de lugar, as flores que ela não tem. Caminha pela sala, tá pensando em não pensar em nada, ela odeia pensar demais sobre pensar demais, ela queria era que a casa engolisse ela e tenta decidir se está de mau humor ou bom humor, se usa o batom cor de rosa ou o vermelho berrante, se pinta as unhas de verde ou de lilás. Acaba percebendo que não tá nem aí pras unhas, nem pra cor do batom, nem pro tom azul acinzentado do céu. Senta á mesa e come alguma sobra de comida natureba que a irmã fez, é um daqueles dias em que ela sente culpa até de ser alguém que come carne, o celular chama, devem ser uma das amigas loucas e tristes e alegres e tolas e fortes que nem ela procurando algum motivo na rua pra conseguir dormir depois, ou então deve ser um daqueles carinhas meio bonitos, meio inteligentes, e cheio de defeitos que ela mesma faz questão de colocar em seus indevidos lugares. Ela queria era que a casa engolisse ela, e que as crianças na África sorrissem como os seus sobrinhos, ela não vai atender o celular, ela vai é cantarolar aquela música estranha de Marisa Monte enquanto chora e sorri por algum motivo óbvio que não vai querer compartilhar com ninguém.
Viviane dirigi, ela sempre dirigi pra onde tem companhias, esse negócio de silencio faz muito barulho, esse negócio de clausura é coisa de quem se ama pouco, essa história de solidão é pra quem é pouco realista. Ela quer é ficar fora de casa, porque em casa é tudo muito normal e ela não aguenta mais isso, ela já foi a menina do interior, ela já foi a esposa, ainda é comum, mas gosta mesmo é de gente incomum, ela quer é fazer amor a beira mar e amar amores impossíveis e usar saias curtas e fazer de conta que tá tudo bem do jeito que está. Aprendeu mesmo a fazer de conta, passou tanto tempo fazendo de conta que estava tudo bem que hoje até ela acredita, menos quando fica só, por isso ela não gosta de ficar só, por isso ela prefere que a casa esteja arrumada e limpa e vazia dela, porque já tem um tempo que tá tão cheia que sente o vazio de tudo. E só ela sabe que felicidade é encontrar a blusa certa pra sua altura e corpo, a música errada pro seu momento e algum texto curto que diga tudo o que ela tá sentindo e não se pareça nada com o que ela vive. Ela tem medo, medo de tudo voltar a ser como era, medo de tudo nunca voltar a ser como era, medo de ser tão ela que nunca mais seja ela, e dividida entre dois mundos publica fotos nas redes sociais onde ela tá sempre sorrindo, porque as maiores dores são impublicáveis e efêmeras e não merecem atenção.
Verissa fala do rapaz que usa palavras bonitas com ela, ele nunca tá por perto, mas ela sempre esbarra com ele, e ninguém tem que entender isso, só ela. Viviane fala do homem do presente, porque passado é coisa de quem não tem consciência que o tempo tá passando, ela nunca teve tanto apreço e nem tanto medo do tempo.
Eu viro os olhos, eu sempre viro os olhos, e finjo não perceber a dor delas, preciso transparecer uma certa frieza e uma certa distancia pra poder dormir em paz ainda que seja as 4 da manhã e com o cinzeiro cheio de pontas de cigarro.
Viviane é uma realista que sabe sonhar. Verissa queria sentir como a menina do filme. Eu queria tomar um porre, mas não posso. E só por isso acho que elas são mais livres do que eu, porque elas nem fazem isso, mas podem, elas podem sair numa sexta feira e beber todas, e essa coisa pequena é a diferença entre a prisão e a liberdade, e tem um monte de grades a minha volta, invisíveis aos olhos mais atentos, e eu tô sempre presa. Eu sou a sonhadora, assisto filmes e leio livros não apenas por passatempo ou prazer ou exercício intelectual, mas somente porque a vida me assusta e os dias mais alegres me soam entediantes.
Verissa muda as flores de lugar, as flores que ela não tem. Viviane dirigi, ela sempre dirigi pra onde tem companhias. Eu queria mesmo era encher a cara e falar besteiras e fazer amizades e sorrir e dançar e cantar e existir uma existência extrovertida e simpática até às 5 da manhã, mas eu não posso, e só por isso acho que elas são mais alegres do que eu, eu que tenho lapsos de memória, atenção altamente prejudicada, pouca agilidade em resolver coisas simples, e tenho elas, as moças que caminharam comigo o ano inteiro e que podem tomar um porre quando quiserem, mas ao invés disso, sentam comigo no chão da casa de Verissa e falam tolices e não tolices até ás 2 da madrugada, e embora eu saiba que elas se entretenham e se divirtam e se curem de dores e mazelas tanto quanto eu nesses momentos, ainda acho (mesmo quando quero tritura-las e esgana-las e discutimos) que elas são as moças mais lindas do mundo só por estarem ali, e fico bem por pensar que elas sejam mais livres e mais alegres que eu. Se eu acreditasse em Deus, enviaria uma carta a ele dizendo essas coisas e pedindo que ele guardasse um lugar bem bonito no céu pra cada uma delas, um lugar onde Verissa pudesse ter todos os tipos de flores imaginárias que quisesse e onde Viviane nunca ficasse só, nem quando estivesse só. Mas como a minha fé se resume ao tempo... “um senhor tão bonito quanto a cara do meu filho”, ofereço apenas um sóbrio brinde ás meninas por tantos anos de amizade, mas sobretudo pelos últimos quatro anos, e pelos últimos 365 dias, e pelas últimas horas, e pelo último segundo, em que não pude tomar um porre, mas tive companhia pra sonhar. Tiara Sousa

quinta-feira, 20 de novembro de 2014

ÚLTIMOS DIAS ou CARTA DO TEU INCONSCIENTE

Parecia um dia como qualquer outro, se não fosse doer no fim. Acho que a gente nunca sabe do último dia, o último dia em que vamos caminhar por aquela rua tão familiar, o último dia em que iremos comer no restaurante de sempre, ou fazer compras naquela botique de paredes cor de rosa, que parecem acalmar a gente. O último dia em que tudo será como sempre foi, porque antes o mundo inteiro podia estar um caos, tudo em nossa volta podia estar um caos, a gente podia estar um caos, mas bastava nossas vozes se encontrarem em algum telefonema que todos os furacões e ventanias e tornados e vulcões cessavam, porque nós nos  entendíamos como ninguém, como ninguém mais no mundo se entendia, como ninguém mais no mundo pudesse entender, éramos um para o outro a fuga de toda fatigante realidade, perto de nós tudo ficava tranquilo, e ninguém tinha a chave da nossa porta.
Eu queria saber o que mudou? Quando foi que a gente começou a ter brigas bobas e a permitir que os outros entrassem pela nossa porta? Qual foi o último dia que nos entendemos como ninguém mais no mundo se entende? Qual foi o último dia que nossas vozes se encontraram e cessaram os tornados e vulcões? Qual foi o último dia? Se eu tivesse previsto que seria assim, talvez eu tivesse aproveitado melhor aquele dia, talvez recordasse o clima ou atentasse para aqueles detalhes bobos e significantes. Talvez eu soubesse se foi uma quarta ou um sábado, talvez eu o tivesse prolongado.
A vida acontece enquanto o tempo passa, e mudamos, todos mudamos. Não falo das linhas que surgem na face, nem dos quilos a mais ou a menos, nem de calvice ou flacidez, eu falo de conhecimento, de auto conhecimento, de virtudes e caminhos, de sonhos e concepções. Não éramos a dupla perfeita, nem mesmo os inseparáveis como alguns sempre gostaram de falar, éramos a dupla imperfeita e sabíamos que todo espaço que precisávamos nos dar era entre o telefonema da tarde e o da noite, e tanto fazia que pra todos esse espaço fosse pouco, pra nós era o tempo certo.
Eu falava menos, você mais, não sei se porque eu precisava menos ou aconteciam menos coisas na minha vida do que na tua, ou se éramos assim e pronto, mas do pouco que eu falava eu sabia que só você podia ouvir com os ouvidos de soneto, e isso me bastava. Você dava detalhes do seu dia, eu nem lembrava há quanto tempo eu estava a par de todos os seus conflitos, as vezes eu quase confundia a tua vida com a minha, depois passava, chegavam as minhas contas, os meus problemas, os meus sentimentos, e eu lembrava de mim.
Eu não sei dizer qual foi último dia em que eu tive certeza que sempre ia escutar a tua voz, tão familiar. Não sei qual foi o último dia em que você teve certeza que não importava o quão cruel o mundo fosse, ia ter uma “pequena” do outro lado da linha pra te ouvir e torcer por você. E não sei o que mudou além de tudo a nossa volta, mas não era pra ser assim. As experiencias foram cruéis comigo e sei, não parece, mas há tanto tempo já deixei de acreditar em principes e fadas e finais felizes e pra sempre. Mas mesmo não crendo em nada disso, eu acreditava que a gente era pra sempre, mesmo que nada mais no mundo fosse, a gente era. Acho que eu ainda acredito, acho que nisso sempre vou crer. Que droga! Qual foi o último dia em que ser nós era simples como sentar a beira-mar no dia 31 de um mês qualquer e ver o pôr do Sol? Quando é que vamos voltar a fazer isso? Da sua amiga, do seu inconsciente... Tiara Sousa

segunda-feira, 10 de novembro de 2014

CORAÇÃO GELADO

Ela fez mar. A estante de Madeira velha na sala. A dor no quarto. E todos os dias estavam noturnos. Quem já amou o vazio conhece a tristeza do até mais. O até mais é o fim da pureza, é o começo da canção que evitamos ouvir, é a escova de dentes que ele comprou pra deixar na casa dela, é o quanto essa escova ficou importante, mais do que o lustre de Cristal e o livro de capa preta na última gaveta da cômoda, a gaveta de memórias, que de repente tornou-se tão insignificante perto da última vez que ele escovou os dentes na pia do banheiro dela.
Ela desenhou crianças no papel reciclável.  Ela queria era reciclar a vida. Ela queria era atravessar Avenidas diferentes. Ela queria era querer alguém que não caminhasse como ele, alguém que não beijasse como ele, que não fizesse amor como ele, que não tocasse como ele, tocando o mundo inteiro enquanto tocava o corpo dela.
Ela desistiu de tentar construir conformidades, quem se conforma não conhece o frio que é o fim. O fim é o último sorriso de uma vida. Quem formata imagens não se concentra, não se agarra na perna de alguém pedindo pra não partir. Como se pede amor? Como se mendiga carinho? Como virtudes vão embora?
Ela voltou numa praça, e se lamentos lamentam, lembrou que ali foi feliz. Eram os mesmos bancos, e as mesmas árvores, e a mesma incredulidade dos mais velhos a passar por ali, só ela não era a mesma. Afinal, quem é a mesma depois do depois do depois? Quem é a mesma de antes do antes do antes?
Ela teceu sozinha um tecido de virtudes que foram dela. Ela lembrou de um conto de Drummond em que ele falava de amor sem citar o amor. Ela pediu o fim da guerra a própria guerra. Ela pediu paz ao seu próprio anseio por paz. Ela quis se virar em um dúzia pra tentar ser meia dúzia dentre as dúzias de coisas que ela foi um dia. Ela lembrou que nunca disse a ele porque precisava dele, não era pra trocar as lâmpadas, nem pra consertar o encanamento, ela precisava dele de um jeito bobo, de um jeito velho, de um jeito assim meio inconseqüente e meio firme. Ela precisava dele pra levantar todos os dias, abrir as janelas e dizer-lhe bom dia, era só isso. Finalmente depois de tanto tempo ela pôde entender o que sentia quando não sentia mais nada que não se materializasse em dor. Sem ele ali, com o seu sorriso sério, e seus hábitos irritantes e seu cabelo despenteado, o dia não começava, o dia não começava nunca. E o que ela ia fazer sem o dia? E foi aí que ela fez mar... Fabricou ondas e ventos e sal e água dentro do peito onde ela pensava que ele iria viver pra sempre.
Ela importou sentimentos e se permitiu errar erros dela e por ela. E o coração dela nunca mais foi o mesmo, nunca mais fez voos tão altos, nem se jogou pelo chão, nem se entregou aos momentos. Ela tinha medo, não de sofrer novamente, nem de perder mais uma vez, ela tinha medo era de gostar tanto e com todas unhas, e com todos os fios de cabelo, e com todos os poros, e com todas as zonas erógenas do corpo e da mente. Ela tinha medo de que novamente necessitase de alguém pra que o dia começasse. Mas isso não era amor, nunca foi. O amor não é assim, o amor é começar o dia juntos ainda que separados por quilometros de distancia. O amor é generoso e recíproco, ele não te enlouquece, te acalma. Então ela fez mar, congelou todas as águas de todos os oceanos e guardou dentro do peito, na espera e na esperança do dia em que alguém chegasse e descongelasse seu coração gelado, pra que enfim pudessem começar dias juntos e de mãos dadas reciclar a vida, e de mãos dadas atravessar Avenidas diferentes, e de mãos dadas descobrirem o amor. Tiara Sousa

segunda-feira, 3 de novembro de 2014

A MUSA DOS SONHOS ERÓTICOS

Quis ser a musa dos poetas, aqueles amores não correspondidos, aquele andar sinuoso em misto comportado, aqueles cabelos ondulados e leves no meio da costa. Aquela que sorria com o vento e paralisava os homens nos bares no fim de tarde, e provocava os idosos nas praças a jogar dominó. Pensei em ser a musa dos poetas, libidinosa de tanta pureza, pura de tanto libido. Mas de tão poetisa, nunca fui.
Fui a garota dos bares a sorrir dos próprios destemperos e cantarolar pela boemia, fui o discurso dos padres sem sol, sem lar, sem gosto e com todos os apelos do mundo na pele ressecada de desejos contidos. Eu fui cada coisa que escrevi, só por gostar da dor alheia.
Fui o travesti na esquina, seminu, semicru, semideus, a espera de nada, nada de carinho, nada de humano, nada de fé. Fui a pele marcada pelo sol, pela lida, pelo descaso. Fui a barriga d’água da criança que não sabe sorrir. Fui o preto da favela, os olhos pretos, cabelos pretos, sonhos pretos. Fui a senhora lavando roupas na beira do rio, contando histórias de mãe d’água pros netos esquecerem a fome, mas não se esquece a fome, e ela finge não saber. Fui o flanelinha que esqueceu de vigiar os carros porque viu uma mulher bonita e bem vestida atravessar a rua sozinha e se perdeu na visão do que nunca será dele. Fui o esgoto estourado na rua mais alegre da cidade, porque alegria é poder ouvir e respirar. Fui o gordo de duzentos quilos que a todo instante é criticado por quem tem o peso da maledicência, fui a espera do telefonema do dia seguinte do sexo vazio. Fui o nordestino retratado e insultado nas redes sociais por quem .não aprendeu a perder, e só por isso nunca, nunca fui a musa de nenhum poeta.
Sonhos são tolos, pensei, mas retrucaram-me que não, sonhos não são tolos, e por fim acabei aceitando, sonhos são conscientes. Mas, afinal, onde mora a consciência diante de tudo?
Acabei sendo a musa dos sonhos eróticos do rapaz mais lírico da cidade, aquela que cheirava a flores mesmo quando suava agonias, aquela que sangrava romantismo mesmo quando praticava travessuras.
Aceitei por fim a minha condição de musa dos sonhos eróticos, porque talvez e só talvez nos sonhos eróticos eu não seja essa moça tímida de sorriso aberto, nem carregue tantas dores alheias pelas células vivas do meu corpo, nem construa frases remoendo feridas como seria nos poemas. Nos sonhos eróticos, talvez o meu calor defina e sobressaia os meus olhos tristes, e a minha boca envie recados alegres para o mundo inteiro, talvez ali eu ainda seja a menina que nunca sofreu uma decepção na vida e que creia em príncipes tal qual os das histórias bonitas. Talvez em toda a ação erótica dos sonhos eróticos eu apresente as virtudes e as virtudes me apresentem enquanto um, finalmente, ser livre.
Mas quem diria ainda deixaria por dizer, sentimentos se confundem e sonhos são somente sonhos, porque aqui, no mundo real é a mesma coisa de ontem, o mesmo sol e o mesmo acaso, os mesmos telefonemas e os mesmos amigos, o mesmo calor e simbioses. Só que algumas coisas se perderam, e tem muita gente vazia por aí, muita gente que não sabe saber de tudo sempre e fala o que não devia por que pensa que sabe de tudo e usa uma sinceridade vazia só pra magoar os outros, gente que me faz acordar com medo todos os dias. E eu aqui, entre o céu e o infinito, caminhando de pantufas por esses chãos de vidro enquanto sozinha povôo os sonhos eróticos do rapaz mais lírico da cidade e erotizo a realidade turva de rapazes que nunca serão líricos como ele, porque só ele se conhece tão pouco a ponto de necessitar de mim como seu inconsciente e porque só ele me conhece tanto a ponto de saber que mesmo quando sou a musa sensual dos seus sonhos mais físicos eu não deixo de ser cada coisa que escrevi, só por gostar da dor alheia. Tiara Sousa

terça-feira, 28 de outubro de 2014

AS ATUAIS DOS NOSSOS EX

Ex devia sumir, sumir das baladas, das ruas, da cidade, do mapa. Ex só é ex porque no meio de tudo alguma coisa deu muito errada, alguma coisa que começou com nuvens imaginárias na cabeça e telefonemas melosos e encontros ansiosamente aguardados e dias lindos e beijos demorados e sexo impressionantemente bom.
Só que se acaba, quando acaba, não dá pra fingir, fingir que não aconteceu, que não foi bonito, que não nos fez suspirar, que eles já não nos viram nuas e tiveram o controle de todas as nossas sensações, que seus olhos já não foram labirintos para os nossos e seus braços uma extensão do nosso corpo, que já não trocamos salivas e palavras, que já não passeamos e ficamos sem fazer nada, por que fazer nada com quem se gosta é muita coisa, e quando muita coisa vira nada a ausência caminha pela sala, deita na nossa cama, beija os nossos lábios, é de sentir inteiramente e no corpo inteiro.
E quando acaba dói, não uma dor qualquer, mas uma dor profunda. Decepção é dor, saudade é dor, vontade é muita dor, e dores não tem fim até o fim, elas ocupam os lugares, transitam entre o braço e antebraço, entre os dedos das mãos e coração, entre os fios de cabelo e os olhos, entre o tudo e o nada, e no absoluto.
Daí nos resguardamos, entramos num baú de proteção fazendo o possível e torcendo pra encontrar, e torcendo pra não encontrar aqueles ex, provocando e evitando lugares e pessoas, prosas e suspiros, como se desse pra evitar suspiros, como se dores não fossem onipresentes, como se fosse doer menos ou num ritmo mais fraco.
Mas o tempo passa, e que bom, pois esse sim é Senhor de todos os sentimentos, e então a dor se transforma, finalmente está tudo ficando bem, já podemos encontrar os ex na rua e cumprimentá-los e sair de lá inteiras exatamente como entramos, exatamente como somos. Estamos livres, libertas da nossa própria impressão, do nosso próprio maldizer das coisas, da nossa experiência.
E daí olhamos eles, aquele mesmo sorriso que usavam pra seduzir, aquela bermuda que sempre os deixavam lindos, aquelas mãos que passeavam pelos nossos corpos, que eram ou pareciam ser tão deles, tudo para aquelas moças do lado, aquelas moças que devem estar fazendo tudo melhor  e diferente do que fizemos, que não devem ligar pra discutir relação, nem dar uma crise de ciúme sequer, que usam maquiagem de acordo com o clima do dia, e usam roupas que eles aprovam e acham decentes, porem belas, aquelas em que tudo cai bem, e que sorriem como as princesas dos filmes da Disney, elas que tem curvas perfeitas, e olhos bonitos e peles impecáveis, e que se bobear são até mais novas, e se não, aparentam. E pra elas, eles irão dar flores, e pagar a conta do jantar sozinhos, vão leva-las pra viajar e dizer sempre o quanto as amam e o quanto elas são importantes pra eles; Pra elas, as moças perfeitas, eles serão fieis, e as levarão pra dançar e exibirão para os amigos mais críticos, por que elas brilharão.
Mas acontece que tudo é sempre tão diferente do que imaginamos, na imaginação elas não chegavam aos nossos pés, éramos mais bonitas, mais inteligentes, mais divertidas, e daí olhávamos bem pra elas e pra eles e soltávamos um sorriso de vitória e saiamos deixando ambos com as caras no chão. Mas na realidade, elas brilham tanto que nos ofuscam, então fingimos que não os vemos e saímos dali desanimadas procurando nossos pedaços pelo chão. Vamos em busca das amigas, que certamente irão buscá-las nas redes sociais e analisá-las minunciosamente até encontrarem algum cravo ou espinha ou flacidez ou erro ortográfico, então iremos detoná-las, e elas irão concordar com a gente, porque não importa o quanto as atuais brilhem, nós somos as amigas delas. Elas são as atuais dos nossos ex.
E mais tarde, em casa, sozinhas, iremos olhar nossas fotos antigas e concluir que não importa o quanto elas sejam lindas, que eles ainda sentem ou irão sentir a nossa falta, por que cozinhávamos mal, temos estria e gordura localizada, seios imperfeitos e celulite, cabelo ressecado e uma pele oleosa, mas nós os amavamos, mesmo eles nunca tendo nos dado flores, nem pago a conta do nosso jantar sozinhos, nem nos levado pra viajar, ou dito várias vezes o quanto nos amavam, gostavamos deles tanto assim, sem eles precisarem fazer muito esforço, e isso era pra ser suficiente pra fazer de nós as mais belas, inteligentes e divertidas aos olhos deles, e se não foi, só nos resta esperar que eles sejam felizes em suas preferencias a superficialidades. Vai ver que eles nunca nos mereceram, que há alguéns por aí que nos enviem flores e nos dê bombons e nos leve pra passear, mesmo sabendo que o amaríamos sem nada disso. Tiara Sousa.

domingo, 19 de outubro de 2014

EMOCIONALMENTE INSTÁVEL

Não me leve a mal. Eu não tô bem. Há algo no desenho do livro. Aquele buraco na parede sempre esteve ali ou é só que agora ele tá me incomodando? Porque meu estômago dá tantas voltas em torno de mim? O que eu preciso é não lavar a roupa suja; Quero jogar todas as roupas sujas no lixo e seguir nua e descalça numa realidade paralela e imperfeita, mas ao meu gosto. Por que só o meu gosto é amargo e agridoce e doce e azedo, porque somente eu tenho me aguentado.
Nada demais. São só as tolices de sempre. É só a minha generosidade brigando com o meu egoísmo, eles saem na rua e brigam de faca, são milhares de investidas divididas em milésimos de segundos, mas nenhum deles se corta, só eu saio ferida, com sangue espalhado pelo corpo e escorrendo pelos olhos. Só eu realmente me machuco. Porque se há uma semana eu era pouco pra mim, agora eu sou demais.
Uma hora risos e saudade, noutra choros e acusações, e a eterna dúvida se eu tô errada. Será que é isso mesmo? Eu tô sempre errada. Eu sou tão mau assim. Será que o mundo melhor com que sonhei a vida inteira não me cabe? Ou será que isso tudo é só dor e dor não tem medida. E dor é pra doer.
Oscilações de humor. Doses de mim espalhadas pela casa. Da janela observo... O cara atravessa a rua e não vê que a rua é só uma passagem, temos contas a acertar com os dias nublados e perdão para cada dia ensolarado em que saímos trancados dentro de nós. Em que humor isso encaixa?
Quem somos no meio de tudo isso? Adultos que cortejam fantasias? Pessoas com pressa e pudor? Algozes de súbitas consciências? Somos os personagens mais profundos dos nossos próprios contos, protagonistas num palco vazio, uma plateia de dúvidas travestidas de certezas, ou a lembrança das crianças que corriam pela casa.
É uma mala pesada o passado, por que o que passa fica, se impregna no nosso corpo e se enjaula em nós. Lembranças de beijos nos assombram e tudo desmorona por aqui. Tenho algumas ressalvas entre a loucura e a dor. Prefiro a loucura. Mas cavo a dor.
E esses tempos andam estranhos, talvez porque eu sempre tenha sido como os poetas sem potencial lírico, ou como os românticos vazios caminhando por esquinas escuras em busca de dores maiores que as deles.
Necessito de sentido. Mas tudo é tão estranho depois que descobrimos algumas coisas. Os namorados nas praças no fim de tarde já me parecem tão tolos. Será que é assim mesmo? Que a medida que os anos vão passando tudo vai perdendo a graça?
Abro o meu e-mail... Mais alguém pra me dizer que não entendeu nada do meu último texto. Que as minhas palavras mais comuns soaram estranhas e que as mais cultas se popularizaram demais dentro das frases. Eu então respondo, sem humor nenhum e com todo o humor do mundo: Cada um se carrega, é assim que a gente segue, é assim que aguentamos as coisas que supomos que não íamos aguentar, é assim que levantamos e percorremos os caminhos escuros, é assim que compomos canções pra alguém ouvir exatamente como ouvimos, ou sentir do modo como sentimos. Mas sempre vai ter um pra dizer que não, não sentiu dessa forma. Espero que também não compreenda dessa vez, mas que sinta, exatamente como senti, se for possível. E não me leve a mal. Eu não tô bem. Tenho andado emocionalmente instável. Tiara Sousa

domingo, 5 de outubro de 2014

VOTEI POR ME RECUSAR A DEIXAR DE SONHAR...

Votei pelo Mago do arame, um cara que conheci por acaso em uma lanchonete, ele vendia sua arte e acabou confidenciando que estava no Narcóticos Anônimos (NA), e que vinha conseguindo vencer uma luta injusta contra as drogas. Outro dia o vi recaído, é como chamam os membros do NA que voltam para o vicio, eu mal o conheço, mas me doeu.
Votei pelos meninos das favelas do Rio de Janeiro, pelos meninos de todas as favelas, que são vítimas do tráfico e da realidade da fome, que conhecem a miséria com intimidade e são revistados só por serem pretos, só por serem pobres, só por morarem ali.
Votei pelos poetas que se embriagam todos os dias, porque a poesia diante de tudo só sobrevive na fantasia, e porque a realidade massacra e desconforto é coisa de quem sente demais.
Votei pelas mulheres que lavam, passam e cozinham, que cuidam das suas crianças, que trabalham, que vivem pros seus maridos; Pelas mulheres que se apaixonam por idiotas, que nunca se encaixam nesse padrão de beleza injusto ditado pela mídia.
Votei pelos muito altos, pelos muito baixos, pelos muito gordos, pelos muito magros, pelos índios e negros e brancos e orientais, pelos gays e heteros e sonhadores e realistas, pelos deficientes, votei pelos otimistas e pelos pessimistas, e pelos que mesmo julgados conseguem sorrir.
Votei pelo órfão, pelo playboy babaca, pelo egoísta, pelo mentiroso, pelo sábio, pelo culto, pelo morto de fome, pelos mortos de guerra, por quem não faz ideia do que é a fome e a guerra.
Votei pelas vítimas desse tempo, pelos interesseiros, pelos hipócritas, pelos infames, pelos bonzinhos, pelos maldosos, por todos aqueles que não cabem em si de tanta dor.
Votei pelas paisagens mortas, pelas vivas, pelos indignos, pelos dignos, votei pelos famosos e pelos anônimos e pela menina que puxou o meu cabelo quando eu tinha dez anos.
Votei pelo sacana do meu ex professor que se utilizava do poder de ensinar e era pernóstico e autoritário, votei pela minha ex professora que faltou uma semana de aula por causa do fim do casamento dela, ela sabe a dor que sentiu enquanto eu só tento imaginar.
Votei pela cultura de massa, e pela cultura de poucos, pelos compositores de merda e pelos geniais compositores. Votei por quem me ama e por quem me suporta, e por aquela vaca que me tratava bem enquanto dormia com o meu ex namorado enquanto ele ainda era meu namorado.
Votei pelas quebradeiras de coco e pelos ambientalistas, pelos supostos alternativos que criticam tudo o que é comum e pregam a paz e o amor; Votei por aqueles jogam lixo no chão o ano inteiro e detonam os políticos pelas sujeiras das cidades.
Votei pelos homens de farda e armas na cintura que deveriam me proteger sempre e que sempre me dão medo; Votei pelos amores que não me foram correspondidos, e pelos amores que não correspondi.
Votei pelo instruído que fez pós-doutorado em Harvard e que mora na Europa e agora fala do Brasil como uma selva, votei pelos analfabetos que não conhecem letras mas que oram os povos e os sentimentos melhor que muitos.
Votei pelo roqueiro de cabelo preto grande que me olhou com raiva na Praia Grande e disse que não gostava de pretos; Votei pelo outro roqueiro, um que se encantou por mim mesmo eu nunca tendo sido merecedora do seu encanto.
Votei pelo homem com câncer no seu leito de morte no hospital mais renomado e caro da cidade; Votei pelo homem baleado que está há horas esperando um leito e atendimento no hospital público.
Votei com a pele e com a retina, com o suor e com o delírio, com a fé e com o sangue. Votei com as lágrimas contidas por anos de caos e desigualdade. Votei acreditando em sorrisos e costurando as feridas de um povo que se recusa a desaprender a sonhar. Votei por me recusar a deixar de sonhar... Tiara Sousa

domingo, 28 de setembro de 2014

TENTE NÃO ME AMAR

Não importa o quanto o eu me esforce, a alça dos meus vestidos e blusas sempre acaba caindo, e você não era suficientemente ciumento para levantá-las, então eu ficava assim, meio sensual, meio jogada, e daí você me olhava com aqueles olhos curiosos de quem pensava, vou desvendar esse corpo em breve.
Nunca falei detalhes de você pra ninguém, porque você era a linha mais exata dos meus dias mais estranhos, porque você sabia saber o que eu queria saber e não podia, e daí me mostrava tudo, e eu gostei de você. Era como ter uma cereja no bolo, ou um chantili no chocolate, doce, enjoativo e bonito, e eu odiava tanto isso, que acabei gostando.
Sempre que me olhava dizia: - Por que você não me encara? Ah se você soubesse, eu te encarava tanto quando os seus olhos estavam noutros olhos e o seu desejo concentrado em outras mulheres, mais gostosas, extrovertidas e autossuficientes que eu.
Daí finalmente passou aqueles primeiros encontros, não me leve a mal, eu amo o primeiro beijo e a primeira transa e a primeira conversa sincera, mais tudo isso me dá uma agonia doida, então quando chegamos a sua casa, pensei, vou terminar logo com isso, quero saber como ele me pega, como ele me vira, como ele me deixa, como ele me faz sentir.
Louca eu! Depois dessa noite constatei, era só isso, nada demais, você era mediano, tolo e convencido, pela sua cama, não sei, mas pela minha já tinham passado homens melhores, mais sábios e mais generosos, mais loucos e mais impulsivos, você era só bom, e eu nem gosto de admitir, mas esse bom era um bom cansativo.
Passou um tempo e parecia que era só brincadeira, você me queria pela metade, eu já era metade desde o primeiro cara, então, nenhum esforço. Mas de repente o que era só bom se tornou o meu dia, a minha noite, todos os meus pensamentos, droga, odeio e adoro quando isso acontece.
Então eu usei todo o meu charme, isso incluía o meu sorriso tímido, as minhas vesgas viradas de olhos, o meu cabelo ressecado, o meu corpo bonitinho e imperfeito. E contrariando todas as expectativas, você caiu, começou a me tratar melhor, me comprou bombons, me levou ao cinema, me pagou um jantar, transou comigo abandonando o “só bom” e aderindo o “extremamente ótimo”, daí disse, deitado em cima de mim, com aqueles olhos lindos: - Fazia tempo que eu tava procurando uma mulher assim, como você. E eu perguntei: - Assim como? E você respondeu: - Assim tonta, assim linda, assim triste, assim alegre, assim pura, assim sábia. Droga, você me leu inteira, e eu achei que tava disfarçando bem quem eu era, mas que nada, você me viu, e gostou, e eu me assustei.
Então no dia seguinte meu celular descarregou, e eu o deixei ali, desligado, e avisei em casa que eu não tava pra ninguém, e me escondi de mim. Daí dias depois eu fui beijar outra boca pra esquecer o gosto da tua. Desculpa pelo sumiço, pela fuga, por ter ferrado com tudo, espero que tenha compreendido... É um latifúndio meu coração, sempre a espera do fim. Perdoa se as estrelas da noite furtaram o meu brilho e a imagem meiga e sincera que você tinha de mim, mas é que é tão estranho alguém gostar da gente do jeito que a gente é, todos os caras de antes tentaram me mudar, você não, você me quis assim, assim tonta, assim linda, assim triste, assim alegre, assim pura, assim sábia. E eu quis te querer do mesmo jeito, mas acho que ainda não tô preparada, ainda preciso esquecer que todos os caras de antes tentaram me mudar, ainda preciso esquecer que todos os caras de antes me partiram o coração, ainda preciso lembrar que ser eu não é tão mau assim. Mas valeu te conhecer, foi melhor que bolo com cereja em cima e chocolate com chantili. Foi como sorvete de flocos com brigadeiro, meu favorito. Cê lembra né? Tiara Sousa

domingo, 21 de setembro de 2014

MOÇAS

Direitos da imagem: Blog Maaxpaiin
Certas palavras nos matam. Certos olhares nos partem ao meio. Certos desejos nos constrangem. Somos assim... Moças, em essência.
Aprendemos a fingir, fingir que estamos bem pra não incomodar, fingir alegria pra não entorpecer os ambientes, fingir orgasmos pra não insultar egos. Aprendemos a fingir pra parecer menos humanas pra humanidade, sempre tão desumana em seus julgamentos. E enquanto a lua desfila pelo céu, entregamos nossos corações.
Brigamos por nada, mas é que nada também sabe doer, nada é coisa demais. Nos habituamos a ser conduzidas, nos realizamos com olhares puros que não nos foram concedidos. A nossa cor é rosa, porque é assim que vemos o mundo. Cheio de borboletas e luzes e corações e flores... E duendes e fadas.
Sofremos, porque carregamos a força de todas as rochas e a fragilidade de todos os vasos de flores. Somos assim... Moças, em essência.
Choramos nos filmes românticos, caminhamos pelos poemas de Camões, nos inflamamos nos romances de Nicholas Sparks, nos envolvemos nas canções de Chico. Não temos meio termo, entramos inteiras nas histórias, nos despedaçamos nas desilusões.
Sabemos ser doces, e ter pele. Sabemos usar nossas curvas, e ter sonhos. Conhecemos o idealismo e tememos a realidade. Sabemos ter pureza fazendo amor e ter sede simulando infinitos.
Entendemos da dor, a dor é como um retrato em preto e branco, eternizado por um sorriso ou uma pose forçados, insuperável imagem, e depois dela a constatação triste e cínica de que nunca mais aquela pose, aquele sorriso forçado, aqueles traços e linhas e luzes. Somos assim... Moças, em essência.
Superamos os fins dos pra sempre. Superamos o adeus e o até logo. Mas guardamos as cicatrizes, relembramos as histórias, nos tornamos maiores depois das lágrimas. Porque enquanto choramos e sangramos decepções, arcamos com as fomes do mundo. Arcamos com o mundo. Arcamos com a fantasia.
Devolvemos em cuidados e recatos e graça toda a dor que recebemos. Porque somos sensíveis como as rebeldes cores de Frida Kahlo, e sentimos tanto, que conseguimos abrir os olhos e ver o mundo de um jeito que nem se vê mais, como um dia já viram as mulheres de Atenas.
Desacatamos o recato com bons modos, nos conformamos com menos do que sonhamos, sempre menos, nos perdemos em libidos sentidas no corpo e na alma. Mais na alma. Exageramos sempre ao amanhecer, reclusas a sorrisos que nunca são completos. Somos assim... Moças, em essência.
Rosas de aço, bonecas de vidro, paisagens vivas, tão vivas. E no fundo, por dentro do aço, além do encanto e do mistério, dos papos reveladores e feministas, das danças e da leveza, dos sussurros, insanidades, atos impensados, punições e gemidos, ainda somos, ainda sempre seremos aquelas meninas, aquelas belas e tolas e tontas meninas dos olhos dos nossos pais.
Mas nunca esqueçam rapazes, que mesmo quando já conhecemos o sofrimento, quando já estamos intimas da dor, quando já aceitamos a realidade, quando já fomos feridas em graus incomparáveis, quando já aprendemos a contestar os olhares julgadores. Mesmo assim, ainda somos moças, as quais certas palavras matam, certos olhares partem ao meio, certos desejos constrangem. E seremos assim, aos 8 ou aos 80... Moças. Em essência. Tiara Sousa.

segunda-feira, 15 de setembro de 2014

O QUE AINDA NÃO FALEI...

Não falei que tive catapora quando criança, que não importa quantos defeitos tenham, os meus amigos ainda são escolhidos a dedo, e portanto as melhores pessoas que já conheci. Não falei que o meu primeiro beijo foi horrível e que nunca recebi uma carta de amor, mas já recebi alguns e-mails românticos, nunca tive a coragem de imprimi-los, nunca tive o desprendimento de apaga-los, e por vezes ainda os releio, não pelo que dizem, nem pelas histórias que passaram (sim, aprendi que tudo passa), os releio apenas pra lembrar de quem eu era quando eles me foram enviados.
Não falei da minha vizinha que casou há alguns anos, eu a vi em sua porta vestida de noiva com a felicidade estampada nos olhos, hoje ela anda de mãos dadas com as suas crianças e nunca mais a vi sorrir, não é assim a história que contam nos contos de fadas, e eu odeio admitir que sempre tive medo de ser como ela, o que por vezes é um sentimento contraditório, pois ser como eu ás vezes não me basta.
Não falei do senhor que vendia bombons na frente do prédio que a minha mãe trabalhava quando eu era criança, que ele ficava ali naquele sol torrencial, já idoso, e que eu sonhava um dia poder mudar a vida dele, que eu sonhava poder mudar muitas das coisas que via, tenho saudade daquela menina que sonhava sonhos assim, mas dela ainda tenho o bastante, mesmo o bastante sendo tão pouco quando a realidade está em toda a parte.
Não falei que na casa da minha avó todos gostam de conversar na cozinha, e que não importa aonde eu vá, ou por onde já passei, que lugares bonitos já conheci, ou ainda irei conhecer, é pra aquela cozinha que volto, sempre volto, sempre quero voltar, é ali que eu encontro a melhor parte de mim.
Não falei dos romances que li e que me devastaram só por serem romances, nem dos contos de Drummond que já tentei fugir. Acho que quando o tempo passa eu passo com o tempo e ninguém tem nada a ver com isso, infelizmente.
Não falei das flores que murcharam, dos amores que não amei, nem de nenhum dos meus caprichos. Não falei que já me apaixonei algumas vezes e já passei por todas aquelas fases pós romances traumáticos, o encantamento, a insanidade, a loucura, o ódio, a mágoa, a tristeza, o estranhamento, o nada, o desejo de que fosse feliz e de que eu fosse feliz.
Não falei que enquanto estranhos se cumprimentam pelas ruas, e meninos de onze anos consomem crack de madrugada nos bairro do subúrbio, e a ganancia está estampada nas manchetes de jornais, e os playboys e as patricinhas estão enchendo a cara nos barzinhos de ar condicionado forte, eu fico aqui, preocupada com a droga da minha dor de cólica, consumida pela minha TPM, pensando em como ser eu mais tarde, ou amanhã pela manhã.
Não falei que nunca disse “Eu te amo” a nenhum dos meus antigos e recentes, e efêmeros, e longevos, e simples e complicados romances, e que esperei a vida inteira pra falar isso a um homem que me olhasse com o mesmo olhar com que o meu avô olhava para a minha avó. Um olhar de encantamento e ternura, e desejo e alegria. Um olhar puro, como hoje em dia se vê pouco por aí. Tiara Sousa

domingo, 7 de setembro de 2014

BLUES DA ILUSÂO

Cresci entre marxistas, poetas, jornalistas, escritores, artistas, apreciadores da boa música e da boa literatura, e a minha família materna, gente comum, que escuta as rádios populares, assiste ao programa do Silvio Santos e faz Churrasco nas datas comemorativas.
Enquanto todas as crianças, influenciadas pelos discursos capitalistas queriam ser, ou eram levadas a pensar que queriam ser médicos, advogados, economistas ou qualquer coisa com status e grana no final do mês, eu quis ser muitas coisas... Na Alfabetização queria ser cantora de rock, depois quis ser hippie, depois Antropóloga (e na época eu nem sabia o que significava isso, só achava a palavra muito bonita). Já na adolescência eu quis ser artista plástica, depois pensei em ser letrista, depois queria ser Chico Buarque (como era ingênua, ninguém pode ser Chico Buarque), depois minha mãe atrasou a mensalidade da minha escola por problemas financeiros e então pela primeira vez eu pensei como todo mundo, quis ser médica, ou advogada, ou economista, ou qualquer coisa com status e grana no final do mês, só pra não passar por essas tais dificuldades.
Até que um dia peguei meus inúmeros cadernos, agendas e diários de uma vida inteira, pensei no porque de eu escrever tanto, era porque escrevendo eu era tudo isso, tudo o que queria ser, até eu mesma. Então depois de tantos poemas e textos e matérias e colunas e até algumas peças, eu finalmente consegui ser tudo o que quis ser, agora só me sobrou o mundo real, virei cronista. Mas confesso que fora desses cadernos, documentos de Word, letras de canções e diálogos românticos me sinto uma estranha no ninho, ou melhor, uma estranha sem ninho, ser ou fazer parte desse mundo é muito difícil pra algumas pessoas, pessoas que como eu preferem os finais felizes, onde tudo sempre termina como nos sonhos, pois na realidade só as pessoas que realmente o conhecem e gostam de você esperam que você seja você, o resto do mundo só quer que você seja simpático, educado, atencioso e descomplicado.
Então outro dia, na festa de aniversário da simpática amiga da minha amiga, olhei em volta, aquela gente legal e desencanada, que curtia diversos estilos de música e dizia boa noite com uma naturalidade ímpar, e falava do cotidiano com uma superficialidade cativante, e eu ali, no meio daquilo tudo sem saber o que falar, ou como sentar, ou como cumprimentar, ou como existir. Pela primeira vez em muito tempo, quis ser simpática, descomplicada e igual. Daí perguntei as minhas amigas como ser assim, e elas me ensinaram um sorriso estranho e amarelo e bobo e brilhante e tosco e programado, disseram que sempre dá certo, que todo mundo acredita mesmo quando olha aquele sorriso que a gente tá bem, achando tudo lindo e que pensa igual aos outros. Foram doze tentativas até eu conseguir dar um sorriso parecido, o problema é que junto com o sorriso veio também um tique nervoso, como um tremor na face, de quem tenta se encaixar, mas psicologicamente é lembrado o quão difícil é.
Agora, só pra variar eu virei a piada do mês entre os meus amigos com essa tal cara simpática, eu podia desanimar, fazer como sempre fiz e voltar correndo pro mundo da ilusão, onde eu sou a moça simpática, que curte blues e cita Nietzsche e ama os gatinhos desamparados, ao invés de ser a moça insociável, que curte reggae e cita Didi Mocó e sempre acaba se apaixonando pelos gatões desamparados, eu devia me convencer que essa tal realidade não é coisa pra quem carrega a poesia dos românticos e a esperança do povão dentro do mesmo peito. Mas não, não desanimo, por que no meio de todas as coisas que eu pensei em fazer e em ser, e que escrevendo transformei em fantasia, nenhuma é mais bonita do que a realidade de ver as pessoas que gosto e que gostam de mim sorrindo verdadeiramente da minha artificial cara de simpática. Eu dou o tal sorriso falso acompanhado do tique nervoso, eles sorriem e se divertem de verdade, e vendo o sorriso deles eu sorrio novamente, mas dessa vez um genuíno sorriso.
Acho que finalmente entendi porque a minha família materna, que escuta as rádios populares, assiste ao programa do Silvio Santos e faz Churrasco nas datas comemorativas sempre pareceu ser mais feliz do que os marxistas, poetas, jornalistas, escritores, artistas, apreciadores da boa música e da boa literatura; é porque antes de qualquer coisa, eles aprenderam a selecionar os mais simples e singelos e alegres e puros momentos da realidade, que por vezes é tão massacrante e dispendiosa, mas que em outras tem umas coisas assim tão bonitas, como as coisas da ilusão. Tiara Sousa

sábado, 30 de agosto de 2014

PORQUE QUANDO CHAMAM UM PRETO DE MACACO, “DÓI, DÓI MUITO”...

(Aranha, goleiro do Santos, deixou o gramado indignado com parte dos torcedores do Grêmio que o chamaram de macaco. Durante o jogo, o goleiro chegou a parar a partida e avisar o árbitro. Mas não deu em nada. “Estava no gol e começaram com palavras racistas. Me chamaram de preto fedido, seu preto. Depois fizeram coro de macaco. Pedi para o câmera filmar os torcedores, mas não filmaram. Fico puto de acontecer essas coisas aqui. Dói, dói muito”, lamentou o goleiro.) Notícia do Correio do Estado

Tinha outro texto pra postar aqui nessa semana, mas mudei de ideia, porque quando chamam um preto de macaco, “dói, dói muito”. Me utilizo das palavras do goleiro Aranha, do Santos, que no jogo da quinta-feira foi xingado por alguns gremistas de macaco, me utilizo delas porque são breves e simplificam tudo, e porque quando dói, dói nele e dói em mim, e dói no negro bonito que eu vi no reggae anteontem, e no advogado negro que estava namorando a minha amiga, e no menino negro que vende bombom no sinal, e no meu filho de dez anos que entende e sabe tão pouco da vida, mas agora já sabe que dói, e ele nem precisava saber tão cedo, e dói na minha mãe e na minha avó, que mesmo de peles tão claras carregam a minha pele escura no peito. Tinha outro texto pra essa semana, mas quando gritam que um preto é macaco, não há um preto que não se doa, ainda que esse preto esteja do lado e no coro ignorante de quem tá gritando. E “dói, dói muito”.
Ah mas é futebol, e podem dizer que qualquer xingamento é válido, e que o macaco, aquele animal fofo que todos conhecem e gostam é só mais um, que se ofender ou fazer um escarcéu é coisa demais pra uma palavrinha dita e redita no calor de uma partida. Mas é que, na boa sabe, desculpa a todos que acham isso coisa pouca pra tanto bafafá, mas é que esse povo preto, esse povo escuro, esse povo já sofreu demais, esse povo já lutou demais, esse povo já rezou demais diante da imagem do loiro de olhos azuis que chamam de Jesus, pra regredir logo agora, pra serem obrigados a verem esses mesmos xingamentos que doeram neles a vida inteira doerem também nas suas crianças. E quanto a esse animal, o macaco, convenhamos, representa bem mais que apenas um animal. Ele é em muitas teorias o principio do homem, o homem ainda não evoluído e intelectualizado, que ri e come banana e pula de galho em galho, ah e é preto, em sua maioria de espécie, disso eu até tinha esquecido, porque se fosse só a cor pra relacionar, talvez eu tivesse postado o outro texto, e talvez nem doesse, mas dói, dói muito.
O que desejo a alguns dos torcedores gremistas que orquestraram essas ofensas racistas ao goleiro é muito menos do que o meu povo negro sofreu, não lhes desejo a dor das chicotadas, nem que sejam presos a correntes de ferro, nem amarrados a troncos de árvores, nem obrigados a trabalhar muito e em péssimas condições sem receber por isso, nem que sejam reduzidos a escória social, nem mesmo que sejam tratados como animais e vendidos como produtos, ou que durmam no chão duro e comam lavagens, não de maneira alguma, isso eu não desejo a ninguém. O que desejo é apenas justiça, que sirvam de exemplo pra esse futebol ainda tão racista e essa sociedade ainda tão hipócrita, e compreendam que a dor do goleiro Aranha, nunca será somente dele, que ele tem um povo, independente de time, de cidade, de país, de tipo físico, de classe, de atributos, e pasmem só, da cor da pele, porque nem é preciso ser preto pra saber que dói, dói muito.
Admito, eu já chamei juiz de futebol de “filho da puta”, desculpem por isso, mas é que no calor do jogo ás vezes me escapa um xingamento ou outro, não que isso justifique o meu ato impróprio, mas a diferença é que milhões de “filhos da puta” não foram escravizados por mais de 400 anos, nem obrigados a trabalhar quatorze a dezesseis horas por dia, nem castigados das mais cruéis maneiras, nem receberam trapos de roupa e uma alimentação de péssima qualidade, nem passaram as noites nas senzalas acorrentados como animais selvagens, senão doeria, doeria muito, e eu, nem no calor da emoção, falaria dessa maneira.
Peço que perdoem se extrapolo nos discursos e manifestos contra o racismo nesse texto, mas é meus caros leitores, que quando chamam um preto de macaco, “dói, dói muito” e dói em todos os pretos..., e brancos, e índios, e miscigenados com intelecto, ética, sonho, luta, suor, sentimentos, dignidade, necessidade e humanidade. E vai doer até o dia em que eu não precisar mais substituir o texto já programado pra ser publicado na semana porque chamaram mais um preto de macaco, e doeu. Tiara Sousa

domingo, 24 de agosto de 2014

POLTRONA FORA DO LUGAR

Direitos da imagem: Janela de cima
Eu estava terminando uma matéria e ainda tinha que preparar a aula da semana, não tomo café, então decidi fazer um chocolate quente, que também não é algo que eu tenha o hábito de tomar em casa, mas é bom se surpreender, ainda que com coisas pequenas e que soam até como insignificantes. Fiquei ali, tomando aquele chocolate e pensando em alguma coisa boa pra escrever, mas eu havia tido um sonho tão estranho na noite passada, era como uma recordação, nele eu era beijada por um homem do passado, com quem vivi uma dessas histórias românticas e trágicas, difíceis e dolorosas, tristes e bonitas, das quais a gente nunca sai inteira, ou nobre como entrou, e há muito não pensava nele desse modo. Não conseguia me concentrar, alguns sonhos te levam para um lugar melhor e você desperta penoso da realidade, outros trazem de volta coisas que preferia esquecer, e que já julgava ter esquecido há tempos, são como visitas indesejadas. Comecei a olhar em volta, eu tirei a poltrona amarela com detalhes pretos do meu quarto, e pela primeira vez em um mês senti falta daquele móvel, não uma falta qualquer, do tipo que se sente de um momento alegre, de um livro ou de um filme, uma falta maior e inesperada, do tipo que invade cada pensamento e torna a ansiedade uma intimidade com o tempo. Acho que sentir falta de certas coisas não é muito saudável, mentalmente saudável, tanta coisa pra sentir falta, um passado inteiro de sentimentalismo caro, meia dúzia de rapazes encantadores e tragicomédias pra recordar e tudo que me causa transtorno e melancolia é um sonho e a droga daquela poltrona onde há anos eu não sentava nem pra fumar um cigarro.
Terminei o chocolate, finalmente terminei a matéria, comecei a preparar a aula e dei uma pausa, lembrei do tal sonho e a lembrança me causou inquietação, peguei a chave do carro e saí, saí pra chegar a algum lugar, eu não fazia ideia. Quando dei por mim, estava estacionando na praia, estava sentando na areia, estava esperando o pôr do sol, esperar pelo nascer do sol é quase poético, quase lírico, quase alegre, no entanto esperar ele se pôr é como celebrar uma paisagem sabendo que no fim ela morrerá, é sepultar uma beleza.  E por isso, eu sempre lamento quando o sol se põe, mas não ali, nem naquele dia, o mar ficou comigo e me fez companhia, olhei para o lado, um rapaz vestia uma camisa listrada e olhava para o mar, e nos olhos dele não tinha nenhuma paixão, ele notou que eu estava olhando e sorriu, tentando disfarçar, tentando não disfarçar, pensei em fazer uma feição séria e virar o rosto, mas não fiz, sorri também, ele estava se sentindo desejado e estava gostando, quem sou eu pra acabar com o que ele sentia, já acabaram tantas vezes com o que eu sentia, e eram sentimentos mais nobres, e eu nem sei se me recuperei. Levantei depressa, antes da situação ficar intima ou constrangedora ou bela demais que eu não esquecesse no próximo semáforo no caminho de volta. Sentei num barzinho, pedi uma água de coco, lembrei de um outro tempo, em que teria pedido vodka com limonada e teria ligado pra alguém me fazer companhia, só pra eu não sentir a dor do meu silencio. Me senti feliz pelo tempo presente, por ter aprendido e superado algumas coisas na vida, por ser mais eu agora do que jamais fora antes. Paguei a água de coco, entrei no carro e parti, não me partir em pedaços, não pensei nos meus medos, não lembrei dos sorrisos efêmeros que já foram meus, não lamentei o tempo perdido, não me julguei, nem julguei as paisagens que já deixei de contemplar, apenas voltei pra casa, arrastei a poltrona de volta para o meu quarto, sentei nela, acendi um cigarro e terminei de preparar a minha aula.
Algumas coisas tem que mudar, tem que sair do lugar e serem substituídas, outras não, tem que ser iguais para sempre, que nos causar as mesmas sensações e nos proporcionar o mesmo comodismo, incomodo e necessário, porque o tempo passa, nós não, nós mudamos e transformamos algumas coisas, mas a essência é sempre a mesma, naquele dia ou dez anos antes, eu ainda não viraria o rosto para o rapaz que sorria se sentindo desejado, eu ainda gostaria que ele fosse pra casa achando que encantou alguém.
Por fim, terminei o cigarro, terminei a aula, levantei da poltrona e a arrastei de volta para fora do meu quarto, eu só precisava me despedir, saber se despedir é tão importante e relevante quanto deixar certas coisas e sentimentos irem. Finalmente entendi o sonho, era como uma despedida que nunca aconteceu como deveria, com a missão de eliminar qualquer trauma, ou mágoa, ou medo que essa história tivesse deixado. Era um beijo de adeus. Espero que ele também esteja bem, que ele também seja feliz, que também tenha aprendido a se despedir dos móveis antigos esquecidos pelos cômodos da casa. Tiara Sousa 

domingo, 17 de agosto de 2014

ESTÚPIDO CÚPIDO

A todos os leitores que enviaram mensagens e e-mails ou falaram da ausência de novos textos, peço que perdoem essa autora, que por problemas pessoais perdeu a inspiração por uns meses e aviso que o Blog Alternativo está de volta! Mais romântico, mais ousado e mais sínico, se é que me entendem. Aproveitem!


No começo era assim, ele me olhava com aquela cara desconfiada, de quem não sabia como ficar sério, eu o olhava com aquela cara safada, de mulher apaixonada, de quem tava doida pra dar, e como era o começo, era bonito, e tudo de incompatível acabava se encaixando e encantando, de um jeito ou de outro.
Mas o tempo passou, e se o tempo fosse um deus, seria o deus da realidade, aquele que torna o desnecessário, fundamental, e o fundamental, irrelevante. E então, o sexo deixou de ser novidade, ainda era muito bom, mas já tava longe de ser tudo, o meu guarda roupas intimo deixou de surpreendê-lo, assim como a minha língua e as minhas mãos curiosas e desacatadas, então ele passou a me ver como eu realmente era, alguém que precisava de mais que alimentos, água e ar pra sobreviver, de mais que roupas coloridas e livros de poetas mortos pra se alegrar, de mais que beijos mornos e cotidianos frustrantes e óbvios pra se inspirar. Só a minha cara de mulher apaixonada continuava a mesma, logo numa altura daquelas, em que ele já tinha percebido que eu não era pra ele, que eu tinha um passado, maus modos, péssimos hábitos e que a minha única lingerie vermelha tava ficando velha.
Era inevitável, ele foi ficando cada vez mais ciumento e inseguro, passou a vida inteira escutando do pai e tios e primos e amigos idiotas e machistas que mulheres como eu não eram confiáveis, então por fim, ele me enviou um SMS marcando um encontro, ninguém com a cabeça no lugar e que me conheça minimamente marca nada comigo por SMS, todo mundo sabe que eu não sou boa com tecnologias e que acho fria esse tipo de comunicação. Foi só eu ler aquela mensagem, tão inapropriadamente impessoal pra saber que ele pretendia terminar comigo naquele jantar.
Respondi por SMS: - Ok, nos vemos lá, até! E então comecei a pensar no que poderia fazer pra que ele desistisse. Fui até uma dessas lojas que só vendem roupas que eu não usaria e comprei um vestido brega e angelical, combinei sapato e bolsa, coisa que nunca faço, penteei o cabelo, fiz as unhas, passei batom, coisas que nunca faço, e fui ao encontro dele.
Enquanto ia até o tal restaurante, pensei no que iria dizer, ia dizer que não tinha como apagar os babacas encantadores por quem já fui apaixonada, nem os porres que tomei ao som de Wando nos botecos da cidade, mas que eles eram passado, que pretendia escrever coisas mais sérias, ir ao salão de beleza de vez em quando, usar pen drive ao invés de CDs, cruzar as pernas como fazem as boas moças, comer salada, me vestir melhor, pentear o cabelo e deixar que ele tomasse a iniciativa ao invés de me jogar em cima dele sempre que desse na telha. E assim fui por todo o caminho, ensaiando as minhas falas, compondo a minha personagem.
Quando finalmente cheguei ao restaurante, ele já estava sentado, lindo, sério, encantador, sexy como sempre. Percebi nos olhos dele a surpresa e o encantamento ao me ver fantasiada de mulher comportada e requintada, com aquela roupa e cabelo e maquiagem e unhas e sorriso. Beijei o rosto dele, e disse que iria até o banheiro e que por enquanto ele poderia ir escolhendo os nossos pratos, ele ficou ainda mais surpreso, num dia normal eu jamais deixaria um homem escolher a minha comida.
Na volta do banheiro, olhei bem pra ele, minha nossa, pensei, não posso perder um homem desse. Ele parecia mudo, perdido em pensamentos, supus estar estático diante da dúvida do que fazer ao me ver tão diferente, tão empenhada em me encaixar no ideal dele de mulher. Ficamos lá, ele perdido entre a vontade de fugir e de ficar, eu perdida entre a minha produção e os olhos dele. O garçom trouxe os pratos, nós jantamos, ele disse que eu estava linda e que tinha algo pra me falar, mas que já não sabia se queria ou se devia, eu pensei em atropelar tudo e dizer o que eu tinha ensaiado, mas não consegui dizer nada, porque ele tocou o meu antebraço e eu senti arrepios em lugares que nem sabia que existiam.
Terminamos o jantar, saímos do restaurante, eu sorri pra ele e ele sorriu de volta e nem mil SMSs diriam mais que os nossos sorrisos disseram naquele momento, então ele me beijou, e por segundos eu consegui ver sentido no mundo inteiro, coisa que pouco havia acontecido. Me convidou pra dormir na casa dele, eu aceitei como de costume, chegando lá esperei que ele tomasse a iniciativa, como quem espera uma carta de alguém que já se foi, e tive uma das melhores noites da minha vida, não tinha mais a novidade, nem a surpresa, mas ainda tinha ele, e eu tava mesmo apaixonada.
Pela manhã, acordei cedo, preparei o café da manhã, nunca acordo cedo, nunca tomo café da manhã, mas eu tava tentando mesmo mudar, depois tomei banho, coloquei o vestido da noite anterior, já que eu não tinha outra roupa lá, me mirei no espelho, quase não me reconheci... Quem era aquela mulher do outro lado? Por que eu me sentia tão vazia e solitária se tinha conseguido exatamente o que eu queria? Minutos depois ele acordou, tomamos o café, e ele falou a verdade, disse que na noite anterior pretendia terminar o que tínhamos, mas que pôde ver que eu estava mudando e que ainda tínhamos chances, e que estava apaixonado por mim, e que gostava de quem eu estava me tornando, e que estava muito feliz com isso.
Eu olhei em volta, e olhei pra ele, lindo como sempre, depois olhei pra mim naquela roupa, e falei, quase sem pensar: - Desculpa, eu não sou essa mulher, nunca fui e não importa o quanto eu me esforce, nunca serei. Peguei a bolsa na mesa, beijei a testa dele, e saí, com uma dor emocional tão grande que parecia que o meu corpo inteiro ia quebrar, saí, antes que ele me dissesse com todas as palavras e vírgulas e pontos que se eu não era a mulher que ele precisava, eu não era pra ele.
Passou algum tempo sem que eu o visse, até outro dia, quando nos encontramos na sala de espera de um dentista, ele estava com a nova namorada, ela se vestia bem, era linda, magra e artificial como uma dessas modelos de capa de revista, combinava bolsa e sapatos, usava maquiagem e tinha os cabelos mais lindos que já vi, cruzava as pernas e parecia uma dessas moças que nunca tomaram um porre na vida e que vão a igreja todos os domingos, acho que por um instante, breve e estúpido, desejei ser como ela. Ele me cumprimentou, me olhou da cabeça aos pés com desejo, como quem olha uma coisa que já foi dele, como quem guarda as recordações no lugar certo (debaixo da calça), eu não, eu guardo no coração. Depois nos apresentou, disse, essa é a minha namorada, referindo-se a ela, e depois disse, essa é uma velha amiga, referindo-se a mim. Saí de lá me sentindo o “cocô do cavalo do bandido”.
Quando cheguei em casa, lembrei porque não tinha dado certo, é porque eu já sou tudo o que consigo ser, e ser comum me entedia, e o meu passado é parte fundamental de quem eu sou, e acho salão de beleza um saco, e que tudo fora isso me soa aprisionável, e eu aprecio a liberdade como os pássaros às suas asas. Depois pensei... Dane-se! Eu sou mais eu que qualquer projeto de “santa na rua, puta na cama” que tem por aí, e deve mesmo ter algum cara encantador pra gostar de mim do jeito que eu sou, um que se um dia acabar por qualquer motivo, lembre de nós com carinho e fome, e tenha culhões pra me apresentar pra atual namorada como alguém por quem foi apaixonado um dia. E se esse cara não existir... Foda-se! Ainda tenho meus cigarros e uns trinta DVDs de comédias românticas americanas pra me fazerem companhia, além de saber uns palavrões bem legais pra dizer pra esse estúpido cúpido do século XXI. Tiara Sousa

domingo, 4 de maio de 2014

NOSSOS AMORES

É inédito , ainda que pela vigésima ou trigésima vez, amar sempre é inédito. E todos os meus amigos tem chorado enquanto a vida passa...
Já vimos muitas paisagens, nosso céu já esteve de muitas cores, e quantos dias já nasceram enquanto nós morríamos. Vivemos muito e muito pouco pra chorar por amores que na realidade nunca foram nossos; Afinal, o que é mesmo o amor?
Esperamos por bons modos que nunca vieram, parece bobo esperar por bons modos num tempo em que flores murcham em plena Primavera. Eu quis chorar, e chorei, por que eu e todos que conheço estamos murchando com as flores. Cheguei a pensar que sempre dava pra fugir da realidade, mas não dava, não dá. E ultimamente tenho tido medo de tudo...
Observo a minha volta e a alegria se esvai, quis tanto que as coisas fossem simples que nunca mais sorri por motivos nobres, e só agora percebo, a gente nunca cresce, a gente morre desde o primeiro dia de vida, a gente morre...
Quero que sejamos felizes, mas ultimamente tenho achado todo mundo triste. Será que todos já sentiram as dores que senti, ou não poder mudar o mundo é que tem nos destruído?
Porque a gente acorda na melhor parte dos sonhos? Preciso de um quarto escuro em que tudo fique mais claro, tenho mesmo sentido a minha falta, a falta de quem eu era quando esperava tudo da vida...
Um rapaz se ajoelhou pra minha amiga e a pediu em namoro, dois dias depois não era mais nada disso, daquilo, será que ninguém mais sabe o que quer, ou os sentimentos é que são de vidro e ao mínimo descuido podem se quebrar. Na semana passada eu quis o fim de uma história porque fora da minha imaginação ela não era como eu sonhava, semana que vem já não sei, mas talvez isso explique porque sonhar fica cada vez mais difícil.
Uma outra amiga ama alguém que nunca está perto e que há tempos já deixou ser íntimo dela, será que ela faz ideia de que a pessoa que ama pode nem mais existir, já que o tempo transforma tanto as pessoas, e eu nem sei mais se eu choro pela minha tristeza ou pela tristeza dos outros, uma dor inteira nunca passa, fica.
Um dia Cazuza disse que seus “heróis morreram de overdose”, eu e meus amigos estamos morrendo de amores não amáveis, não reais, nem mesmo próximos, justos, dignos e explicáveis, amores inventados, idealizados, poluídos. Tem gente por aí dizendo que devemos ficar com alguém que nos mereça, gostar de quem gosta da gente, que relacionamento é bem mais do que ótimas transas e caminhar de mãos dadas, acho tudo isso lindo, mas foda-se, na prática é tudo balela, no mundo em que sobrevivemos amar é uma consciência tola, não se descreve um amor, nem se obriga, nem se pede, nem se simula, nem se expulsa, acho que ultimamente amor tem sido tudo aquilo que sentimos falta de sentir a ponto de inventar que sentimos, e só por isso chorei...
E essa é a minha geração, casamentos acabam, garotas traem, paixões duram dias, príncipes se tornam babacas, a distancia e a falta de intimidade encantam mais que a proximidade, e a cada dia que passa temos mais medo de transformar nossa ilusão em realidade e descobrir que há séculos o amor é apenas mitológico, que sobrou apenas um monte de gente tentando amar fantasias.
Mas tudo bem, temos sobrevivido, às vezes penso em mim e em meus amigos, talvez nossos amores na realidade somos nós, que amamos somente pessoas idealizadas, por que somos muito egoístas, sonhadores e vaidosos pra amar pessoas reais, com defeitos e manias e convencimentos e calos e enganos e tédio e chatices e acnes e problemas e dores e solidão e frieira e mau humor, e ainda queremos ser amados como somos, nunca vi nada mais incoerente...
Buscamos nos outros qualidades sobre-humanas, que nem nós temos. Devíamos mesmo aceitar os desencantos como aceitamos os encantos, devíamos mesmo abdicar das nossas inalcançáveis expectativas, mas sabemos tanto, que não sabemos amar nem ser amados. O amor seja lá o que for, como for, onde for, com quem for, deve mesmo ser generoso. Ah se aceitássemos todos como aceitamos os amigos, mas acho que ainda não sabemos, que ainda não sei, e eu queria tanto saber...
E só por isso é inédito amar, ainda que pela vigésima ou trigésima vez, amar sempre é inédito, e por tanto, por egoísmo, por incapacidade, por medo, por vaidade, nossos amores somos nós... Somente nós. Tiara Sousa

sábado, 12 de abril de 2014

CRUA

Eu me perguntei o que iria fazer quando eu acordasse e não fosse mais nada disso, disso de louco, disso de vício, disso que vai enquanto fica e fica muito, o que iria fazer quando eu virasse do lado da cama em que você deveria estar e que não estava. Eu perguntei pra mim, em pensamento, mas o seu velho e incomodo talento de decifrar cada olhar e gesto e meias palavras ainda estava lá, então você respondeu: _Você vai chorar talvez, lembrar, se martirizar pensando no que deveria e poderia ter feito de diferente e não fez, talvez queira ser outra pessoa, talvez vá atrás de mim, ou então seja só previsível e faça tudo isso e depois dê pro primeiro idiota que aparecer.
Então um dia aconteceu, eu acordei e não era mais nada daquilo e você não estava mais lá e eu fui só previsível, droga, mais uma vez você tinha razão. Porque você sempre tinha razão, se quando eu te olhava eu perdia toda a minha? Isso era muito injusto.
Você sumiu umas duas semanas e então voltou, me agarrou e me beijou com a propriedade de sempre, daí falou: _ Eu não gosto do seu beijo, eu gosto é da sua culpa, é da sua crueldade de me querer só pra você, do seu beijo não, eu quero é o teu sofrimento, quero que a tua menstruação dure trinta dias e que todos eles sejam de muita cólica. Você sabia que eu tinha ficado com outros caras, não por ter visto, ou por terem te falado, mas somente porque sabia de tudo sempre, e porque até a minha saliva me denunciava, é claro que eu não iria saber lhe dar com a tua ausência sozinha.
Talvez você troque as minhas lâmpadas e recolha o meu lixo, tanto faz, talvez você se mande outra vez, talvez. Tudo o que eu tenho de moderna é démodé pra você e eu espero que você se foda por isso. Um dia eu me canso disso tudo, vendo o guarda roupas, a TV de plasma, teus livros de sociólogos famosos, toda a tua coleção de filmes de arte e o teu Gol velho na minha garagem, fico só com aquela camisa do Fluminense que você usou naquele jogo que ganharam de 3 X 1 e que você ficou tão feliz que disse que eu te trazia sorte.
Ás vezes me aproveito do fato de você ser competitivo e te desafio dizendo: _Vem, chega mais perto, duvido você me amar como ama aquele tênis velho com molas na sola, duvido você duvidar do que eu sinto estando dentro de mim, duvido você ser fiel enquanto eu te traio com a minha solidão. E ás vezes você cai nos meus desafios, mas nunca dura pra sempre, nunca.
Não, eu não gosto de você porque você é bonito, porque tem olhos verdes e cabelos crespos, eu gosto de você porque eu sou fútil demais pra gostar de alguém que me merece. Hoje eu só quero um vinho caro, uma casa grande, uma conta cheia, calmantes e você por perto, só pra não deixar tudo isso pra trás e ir atrás de você, com a certeza de que já vai estar ciente da minha chegada, porque você sabe de tudo sempre, e isso é injusto.
Quando eu te conheci naquela festa boba de gente tola, em que juro, não esperava encontrar ninguém que me encantasse, mas eu te encontrei, então, lembra, logo depois do nosso primeiro beijo, falei: _ Já entreguei tudo pra antigos amores, minha doçura, minha inconstância, minha poesia, meus pensamentos, meus sonhos, meu hímen, agora pode vir, seremos somente eu e você. Mas não foi nada disso, eu te entreguei tudo de novo, mesmo o que eu já não tinha.
Ás vezes tudo o que eu preciso é não precisar de você, então eu ensaio te dizer certas verdades, dizer que você se acha muito, que enquanto tudo for mentira, você nunca será digno do amor de ninguém, mas nunca digo, pois amo gente que se acha, porque gente que se acha tá se lixando pro resto do mundo e porque eu tenho mais medo de te perder do que de ser infeliz. Tanta propaganda no mundo e você só diz que me ama pra se sentir melhor, isso é cruel comigo, mas admito, é inteligente da sua parte, mas se quer saber, vá a merda você e seu intelecto, eu quero querer é emoção, e que vá a merda eu e o meu intelecto também, porque quando a minha nudez não te inspirar mais, o meu cérebro é que não vai te seduzir.
Mas acredite, eu já vi coisas demais pra crer que vai ser sempre assim, quando passar eu vou transar com você só pra sentir nada, ninguém nem nada que venha depois vai me tirar esse prazer. Mas enquanto não passa quero que saiba que se você morresse amanhã eu morreria depois de amanhã, mas acho que você já sabe, você sabe de tudo sempre, e isso é injusto, isso é muito injusto, isso me mata. Tiara Sousa