domingo, 24 de fevereiro de 2013

Amytril


São dez e meia, as horas ferem, estou cheia de feridas abertas, eu cometo erros, aprendo com eles, me arrependo, desaprendo, eu os cometo novamente. Eu tenho a minha própria novela, não preciso ouvir nada que não seja a minha própria fantasia gritando no meio da rua, não preciso estar em lugar algum que não na minha ilusão, consistente para mim, inconsistente para o resto do mundo.
Quem quiser ser eu, que se arrependa, ser eu é habitar nas velhas imagens das cidades que nunca existiram, é enlouquecer por amores que nunca começaram, é sair dos romances antes de eles acabarem. Ser eu é amar o silencio, o isolamento, as reticencias... Não posso falar nada, além do que eu desacredito, a sociedade tem programado seres desumanos, e eu, humana, nunca me encaixo em nada que não seja a minha própria fantasia, a minha própria ilusão.
São onze e meia, eu desço as escadas devagar, eu sempre desço escadas devagar, eu tenho essa mania obsessiva, compulsiva, ridícula, de sempre achar que eu vou cair, é que eu já cai do céu tantas vezes, não quero cair novamente. Eu tenho uma carta para entregar para um futuro amor, que insiste em ficar lá estático, num lugar em que desconheço, sem código postal.
Eu me prefiro assim com os dois pés nos chão e a cabeça nas nuvens, eu me prefiro assim chata, e incomodada, e louca, assim eu sou mais eu e menos real. Eu sempre gostei de gentilezas e arvores, gente é complicada, gente é fútil, gente é hipócrita, gente é moralista, gente é vaidosa, as arvores são bem mais confiáveis.
São meia noite e meia, e o futuro não chega, a responsabilidade não vai, eu tomo um copo de leite e um Amytril, dormir é covarde, porém não dormir é morrer. Amanhã vou encomendar um sonho pra eu não ficar mais aqui nesse mundo real e ensurdecedor, com essa musica ruim, com esse copo de leite, com esse comprimido tarja vermelha para insônia, com essa insônia, com essas palavras de meia boca e com essa impressão egoísta de que só eu calo, consinto e enlouqueço.
Quem disse que uma noite de sono pode mudar uma vida inteira? Eu ainda me iludo com as pessoas, com as atitudes, com as palavras bem ditas, só não me iludo comigo mesma, tenho feridas abertas, lágrimas incontidas, sete dias por semana de céu nublado, uma década de traumas, lapsos de memória, uma biografia de paixões desmedidas. Portanto, não se iluda comigo rapaz, pare de ligar enquanto há tempo, fuja dos meus olhos tristes, do meu sorriso tímido, do meu feminismo, dos meus discursos belos e românticos, pois se pareço coerente, equilibrada e madura, é porque a minha cartela de Amytril ainda não acabou, mas um dia ela acaba. Tiara Sousa

sábado, 16 de fevereiro de 2013

Meu coração imaturo


“...Meu coração vagabundo
Quer guardar o mundo em mim...”
Caetano Veloso

Ainda não sei dizer Olá, sem carregar meus medos, que de tão imensos me fazem desviar dos olhares. Eu desvio dos olhares, mesmo quando procuro por eles, eu sempre me desvio deles.
Confronto-me todos os dias com o meu passado e com sentimentos infinitos e que inconcebivelmente tiveram fim. Conviver com o fim do infinito é mais triste do que ver que o que foi, nunca foi, nem nunca ficou.
Ainda não sei fingir que está tudo bem, mas também ainda não consigo gritar que está tudo péssimo, eu não tenho força alguma, sou uma criança amedrontada, no meio de sorrisos e choros que ainda não aprendi a definir.
Eu me defendo, me defendo quando calo e quando assustada me escondo dentro de um mundo que é só meu e no qual apenas ilusões e fantasias  entram sem pedir licença, nem fazer cerimonias.
Meu coração está apertado, esmagado, dilacerado. Eu sou uma caricatura da realidade da qual aprendi a fugir, eu fujo de tudo que acelera os meus batimentos cardíacos, e nunca a fuga é suficiente pra me manter alheia ao que me afeta. É que quase tudo me afeta.
Meu coração é ignorante, eu é que sei demais. Conheço as dores de todos, choro as perdas de todos, tenho em meu corpo todos os ferimentos e em minha biografia curativos insuficientes para sará-los.
Meu coração é impulsivo, eu é que sou comedida. Caminho devagar, meço as palavras, só vou a lugares conhecidos, temo portas abertas.
Meu coração imaturo aprendeu quase nada. E é tão errado, tão desmedido, tão inconsequente, que de tão machucado que foi, ainda não sabe como machucar. E só por tudo isso, ainda não sei dizer Olá, sem carregar meus medos, que de tão imensos me fazem desviar dos olhares. Tiara Sousa 

sábado, 2 de fevereiro de 2013

Se fosse pra ser...


Se fosse pra ser... Haveriam flores, haveriam discos antigos e eu teria te apresentado os meus amigos e você os teria amado, ou disfarçado muito bem.
Se fosse pra ser... Tinha incomodado, aquele incomodo do qual tememos e sentimos falta, e eu teria cancelado todas as minhas viagens, pra viajar estática com você.
Se fosse pra ser... Teria tido café da manhã, teria tido banho de mar e dois mil e treze motivos pra nós nunca mais desejarmos voltar no tempo.
Se fosse pra ser... Teríamos guardado os guardanapos da primeira vez que saímos para lanchar e usado esses mesmos guardanapos para enxugar nossas lágrimas cada vez que discutíssemos.
Se fosse pra ser... Você teria ligado doze vezes ao invés de seis e eu teria atendido todas as vezes e todas as vezes meu coração ia acelerar enquanto o seu se acalmava.
Se fosse pra ser... Não haveriam interferências, ou falta de tempo, ou diferenças, que nos fizesse questionar.
Se fosse pra ser... Teríamos observado melhor a lua, teríamos discordado com mais paixão, tudo teria doído, tudo teria encantado, tudo faria sentido sem fazer sentido algum.
Se fosse pra ser... Nossa falta de métodos e artimanhas ensinariam ao mundo a não ter método ou artinha alguma, e nossa rendição ao desejo ensinaria aos moralistas, que muitas vezes desejar é mais puro, inocente e admirável do que se conter.
Se fosse pra ser... Eu não estaria sob essa cama sozinha, nem você estaria caminhando por essa rua deserta, nem a noite estaria tão calma.
Mas não foi, mas não é, mas não era pra ser... Era pra ser só mais uma história triste, pra eu colocar na internet, e as pessoas lerem e se perguntarem se é real. Tiara Sousa