sábado, 25 de novembro de 2017

LEIA-ME ou COMO FOI “ARREBENTAR MUROS SOCIAIS” COM O REOCUPA NA FELIS 2017

Nunca consegui me acostumar ao mundo. Foi a primeira coisa que pensei quando subi no palco do anfiteatro Beto Bittencourt no dia 15 de novembro para participar do evento “Arrebentando Muros Sociais”, promovido pelo Reocupa, na Felis 2017- Feira do livro em São Luís. Tratava-se de um debate sobre poesia marginal, eles trouxeram duas escritoras do Slam das minas de São Paulo, e me puseram ali no meio delas, com o propósito de colocar três mulheres, três escritoras, três pretas, num debate em torno da poesia e literatura à partir do estilo marginal.
Logo que cheguei para o evento, me apresentei a Deuza Brabo e ao Kadu, que são do Movimento Reocupa, de lá a Deuza me levou ao encontro da mediadora do debate, a atriz Nilce Braga, uma moça muito bonita, simpática e inteligente que carregava um turbante na cabeça e que não sei porque me deixou com a impressão que o Continente Africano inteiro morava nos olhos dela, e foi a impressão mais bonita que tive na noite. Não demorou muito até que chegassem as estrelas do debate, a Mel Duarte e a Luz Ribeiro, enquanto elas se aproximavam com aqueles cabelos exuberantes, e aquelas roupas maravilhosas e as peles negras mais lindas que já vi a olhos nus, e tão bem maquiadas e seguras que me fizeram sentir vergonha de me debruçar sobre o fato de agora que sou uma balzaquiana me sentir a vontade pra me transtornar com a possibilidade de uma primeira ruga, um primeiro pé de galinha, um culote que seja, de ficar medindo a queda de colágeno no meu braço, na minha bunda, na minha barriga, nas minhas pernas, no espaço entre a minha axila e o meu ombro... Por ser o tipo de mulher que é obcecada por Albert Camus e acha que toda canção de Amy Winehouse cabe facilmente como trilha sonora da minha vida, e por nunca ter superado o fato de que aos nove anos deixei uma menina estúpida roubar o meu papel de cartas favorito (e não, não é que eu seja rancorosa, é que o papel de cartas era dos ursinhos carinhosos).
Enquanto conversávamos, as quatro, ali paradas num canto do Anfiteatro, fumando nossos cigarros caros e acertando a melhor forma de abrir a mesa ao público, pensei que no momento em que as escritoras que iriam compor a mesa de debate conheciam a cidade eu ficava na sombra de uma árvore pra não sofrer, e no momento que elas se vestiam pensando nas paisagens e nas pessoas que conheceram ali eu colecionava silêncios e desfazia as minhas utopias enquanto me vestia pra sair.
Por volta das 18 horas, nos dirigimos até próximo do palco pra que cada uma entrasse recitando um texto ou poema seu, a Mel foi a primeira a subir no palco e enquanto eu a observava ali tão segura e confiante e me tremia toda de imaginar que pela próxima uma hora e meia eu iria ter que falar ali para um público grande, perdi o ar e me perguntei o que eu estava fazendo ali, não me fiz essa pergunta pelo evento em si, porque era maravilhoso e eu fiquei muito feliz com o convite, mas sim porque sou o tipo de pessoa que gosta de solidão e traja sempre o avesso do apropriado, porque eu não sou sociável, simpática ou extrovertida, e acho que todo o caos é pelo menos 80% mais interessante que o marasmo, porque passo horas olhando para o teto em busca da droga  do teto, e todos os caras que já passaram pela minha vida tentaram mudar alguma coisa em mim, fosse o meu gosto por camisas largas, a minha indisposição em fazer as unhas, o meu desprezo por batons vermelhos, e cor de rosa, e marrom, e de qualquer cor existente na face da terra, fosse os meus penteados equivocados, os meus poemas favoritos ou a minha eterna mania de deixar as coisas mais urgentes para o ano que vem.
Comecei a falar nervosa, mas depois relaxei, eu, a Mel, a Luz e a Nilce falamos para aquele Anfiteatro cheio, coisas sobre ser mulher, negra escritora e sobre como os marginalizados socialmente podem transformar as coisas com uma caneta, um papel e um microfone, mas no fundo nós estávamos falando era de amor, e creio que nos fizemos entender. Recitamos algumas coisas que escrevemos e que fazia alusão ao assunto em pauta e nos despedimos. Ao sair do palco senti um alívio imenso, a mesa foi muito legal, instrutiva e agradável mas eu não conseguia parar de pensar no fato de que não é o palco que me agrada, são os bastidores, que sou melhor e mais feliz escrevendo do que falando e no quanto seria mais fácil viver sem que os olhos das pessoas que me assistiam e me ouviam falar me atravessassem. É que aceitar realidades não é coisa de gente sonhadora, e a ilusão não cabe em cálculos, e eu não sei gostar mais ou menos, sorrir mais ou menos, chorar mais ou menos, doer mais ou menos, existir mais ou menos. É tudo tão inteiro por aqui por dentro que ás vezes cabe uma multidão inteira numa frase que escrevo e às vezes eu sou a primeira dessa multidão a me despedaçar.
Ao final da mesa, e depois de falar com algumas pessoas, tirar algumas fotografias, receber alguns elogios e dar uma entrevista, saí dali... Apressada, entrei no carro e dirigi até a minha casa, passei pelo terraço, pela sala, pela copa, pela cozinha, pelo corredor e finalmente entrei no meu quarto quase correndo, quase sem fôlego, sentei na cama, acendi um cigarro, abri o notebook e escrevi... Nunca consegui me acostumar ao mundo. Depois saí e fui lanchar com umas amigas. É que falei bastante aquela noite, mas o que eu precisava mesmo era de dez segundos de silencio pra escrever essa frase, porque todos os meus eternos e todos os meus fins estão em palavras escritas, e os meus protagonistas serão sempre os marginais, marginalizados, como a atriz de turbante com olhos de África, as poetas do Slam das Minas com ares de protesto, os desbravadores do Reocupa , e eu, tentando me acostumar ao mundo. Tiara Sousa


quinta-feira, 2 de novembro de 2017

LADO B

Direitos da imagem: Site Recanto das letras
Ela disse que o gosto dele ainda estava na boca dela, e eu senti dó dela, porque gostos são para ser passageiros, se não dia ou outro amargam. Ela estava triste porque até as bainhas das saias dela lembravam ele, e todas as cores eram as cores da pele dele, e ela preferia perder tempo com ele do que ter todo o tempo do mundo. A saudade que ela sentia transitava por cada osso de seu corpo... Doía crânio e maxilar e mandíbula e clavícula e escápula e costelas e úmero e esterno e coluna e ulna e rádio e ítio e carpo e metacarpo e fêmur e ísquio e púbis e patela e tíbia e fíbula e tarso e metatarso e falanges... Cada droga de osso gritava o nome dele! Ela quis chorar, mas parecia fraca, e a fraqueza muitas vezes é uma dose de whisky barato com o único propósito de afogar as mágoas, e sem propósito algum.
Ela disse que nunca amou assim... Tanto! Assim com os poros abertos e expostos, assim com as células inflamadas e com a garganta inflamada e com as articulações inflamadas e com a sensação de que o mundo inteiro pra lá da janela estava apertado para o que ela sentia. Assim de quatro e por cima e por baixo e de perto e de longe e de fora e de dentro, e de muito dentro. Ela contou as feridas dele, porque eram maiores que as dela, é que as feridas dele doíam mais nela. Ela roeu as unhas e tentou amar uma causa, uma paisagem, uma canção, mas toda causa era ele, toda paisagem era ele, toda canção era ele. E ela foi ficando menor diante da impressão de que cedo ou tarde todos na rua seriam ele. Ela diminuía diante da lembrança de uma dobrinha que ele tinha do lado esquerdo do pescoço, e quase sumia enquanto olhava o banco de madeira em que ele gostava de pôr os pés. Ela banalizava os desejos alheios e superestimava tudo o que ele tocava enquanto tocava nela.
Ela disse que via os sussurros dele; Via, porque ouvi-los nunca foi suficiente. Disse que ouvia os olhares dele; Ouvia, porque vê-los era cru demais. E às vezes ela recordava por horas que ele apertava a mão dela sempre que ela queria desistir de alguma coisa, é que alguma coisa nela tinha certeza que todas as vezes que ela quisesse desistir a mão dela iria doer um pouco de uma saudade muita, é que doer um pouco é muita coisa quando se espera ansiosamente por essa dor.
Ela disse que o que acabava com ela não era a falta da presença dele pelos móveis da casa, nem mesmo o torpor que se tornou o seu cotidiano com a distancia dele, ou o cheiro de sexo que ele espalhou pelo corpo dela e esqueceu de juntar depois. O que acabava com ela era a escova de dentes velha que ele deixou na pia do banheiro, eram os fios de cabelo dele no pente dela, era a camisa que ela comprou pra dar de presente a ele e que acabou nunca conseguindo entregar. O que acabava com ela era uma sensação insistente e recorrente de que entre o Até logo e o Mais tarde havia um fim.
Ela foi a puta dele... E a santa. Foi o sagrado... E o profano. Ela foi a mania que ele tinha estalar os dedos sempre que estava entediado, foi a risada maldosa que ele soltava cada vez que alguém usava um termo estranho pra falar de algo comum, ela foi a mentira que ele contou pra justificar um atraso na primeira em que eles foram juntos ao cinema, foi o tesão que ele guardou pra ela na última vez que eles se amaram, foi a tentativa dele de disfarçar o olhar de desejo que direcionou a mulher de biquíni que passou ao lado deles na praia. Ela foi ele. E ela foi dele. E ela não fazia ideia de como deixar de ser.
E quantas mulheres já não foram ela... E quantas vezes já não fomos ela... E por quanto tempo ainda seremos ela... Foi o que eu pensei. Tiara Sousa