sexta-feira, 17 de junho de 2016

UM TRECHO DE MÁRIO QUINTANA PARA VIVIANE

Para os leigos acerca da vida desinteressante e não tão subversiva desta autora que vos fala, devo começar lhes informando que eu, Verissa e Viviane somos amigas de infância, segundo Verissa, da infância dela, porque eu e Viviane somos um pouco mais velhas...
Depois de tantos anos, noites, descobertas, merdas (sim, merda) é só juntar essas duas loiras com esta preta que vos fala que a Segunda Guerra Mundial fica parecendo história em quadrinhos ou no máximo filme de arte francês, subjetivo e  sonolento. Pois é, depois de tanto tempo e transformações eu e esses dois seres humanos ainda quebramos o pau de vez em quando, ainda choramos lágrimas de crocodilo umas nos ombros das outras, ainda arquitetamos planos surreais de como assaltar bancos e ficar ricas, ainda nos amamos. Somos três pessoas extremamente diferentes, nos vestimos diferente, vemos a vida de uma perspectiva diferente, sonhamos sonhos diferentes, mas andamos por aí como se fôssemos siamesas. Claro que não foi sempre assim e nem será, mas as mesmas ocasiões que por tantas vezes nos separam, por vezes acabam nos unindo.
Verissa é a contradição em pessoa, isso pode soar como falta de personalidade, mas é só passar cinco minutos com ela pra compreender que o óbvio pode entrar em contradição e que só pra contrariar o que ela tem é excesso de personalidade. Eu não, posso facilmente ser confundida com uma revista de variedades ambulante, tudo em mim nasce do excesso, é informação demais para um conteúdo tão intento e no fundo mais simples do que parece, beirando o comum, desorganizado e fatorial. Já Viviane, é o mais distante possível de uma expressão condescendente, ela é o oposto do que você pensou, ela é sempre o oposto, e é por isso que após essa introdução, devo confessar que é dessa moça que hoje comemora aniversário que vou falar, e antes que você leitor pare a leitura por aqui, supondo que esse é somente mais um texto apaziguador sobre uma amiga, e que não vai acrescentar nada mais a sua vida, aconselho que continue a leitura, pois até o fim você irá encontrar alguma coisa nesta moça que tem em todas as moças, que tem em você, e nunca mais vai esquecer...
Eu e as meninas temos o hábito burguês de tomar banho de piscina na casa de Verissa, não por futilidade, mas por uma questão de entretenimento. Há muito tempo que eu almejo o dia ensolarado em que ao invés de eu entrar cuidadosamente na piscina irei simplesmente me jogar lá, sem me preocupar com a profundidade, sem calcular os riscos, sem temer as probabilidades de eu me machucar e quebrar todos os meus ossos, mas nunca consigo. Meu corpo inteiro se paralisa diante do novo, do desconhecido. Viviane não, ela não pensa. Vestida, ela simplesmente se joga. Não que não exista temor, existe, sempre existe, mas pra ela se jogar é mais importante. Viviane é o tipo de pessoa que poderia ter nascido em qualquer lugar do Brasil, ela certamente se adequaria a cultura e a crença, mas desatenta nasceu numa cidadezinha de aproximadamente seis ruas chamada Bequimão, isso mesmo, interior, baixada maranhense. Lá naquele lugar, onde Judas perdeu as botas, onde a internet, a TV a cabo e o celular touchscreen são acontecimentos de larga escala, onde tudo é observado através de uma lente de aumento, e sim, onde claro, ainda se fazem grandes festas de inauguração de piche(que é como os conterrâneos chamam asfalto). Lá naquele lugar em que (sofro em admitir) a beleza é singela como uma lágrima. Mas muito cedo, Viviane percebeu que ela era maior do que Bequimão City (modo sarcástico como gostamos de chamar), que seus sonhos, e desejos e sedes e fomes eram maiores do que todos os metros quadrados (como se fossem muitos risos) daquele lugar. Então ela veio a São Luís, trazendo além de roupas na bagagem uma vontade imensa de se reinventar. Só que São Luís, embora distante de um exemplo de progresso, não tinha tanto em comum com Bequimão, eram muitos rostos estranhos, muitas melodias novas, muitos conceitos abrangentes, muitas ocasiões, muitas tribos urbanas, e o que poderia assustar muita gente desabituada a tais novidades, fez Viviane se encantar. Ela não tinha medo dos olhares resistentes e nem dos intelectos absolutos, nem mesmo dos mais fomentados debates, ele tinha gana de tudo isso e dos negros lindos que passavam pelas ruas.
Se eu aqui fosse discorrer de modo objetivo a história dessa loira, certamente muitos leitores iriam pensar que ela é só mais uma moça do interior que veio para a cidade e fez e aconteceu, porque a história de Viviane é no fim das contas só mais uma história entre tantas outras que ouvimos por aí. Exceto (e nesse caso o exceto tem peso) o fato da moça comum, de hábitos comuns, e sonhos comuns ser no fundo, bem lá no fundo, debaixo daquelas roupas sérias de trabalho e do modo magistral com que conduz os relacionamentos, uma louca de pedra. Ela quer conhecer e conhecer pra ela não é saber de cor os conceitos acadêmicos chatos, brilhantes e no fim das contas parciais, ela quer conhecer as histórias, os hábitos, as sensações, os desejos. Ela não quer sentar numa poltrona confortável assistindo o jornal e esperando que o mundo mude, ela quer sair e mudar o mundo. Ela não fez nem nunca vai fazer parte de nenhuma turma, não pelo motivo da maioria de não se encaixar, é porque ela se encaixa demais.
Viviane transita com habilidade entre o convencional e o insano, junta essas duas realidades opostas e mostra que o oposto é coisa da sua cabeça, e o pior é que você acredita, porque ela te prova isso com uma delicadeza bruta de quem já viveu muito e não viveu porra nenhuma. Porque ela ama a vida, ela ama tanto a vida que até o que abomina nela ainda soa e vibra vida.
Um dia talvez você passe por ela na rua. Um dia talvez uma rua que você conheça passe por ela, e você apressado(a) e desatento(a) nem a perceba. Mas deveria. Só ela consegue romper com o tradicionalismo com tanto ímpeto. Ela é uma Amélia feminista, uma santa profana, uma comum estranha. Ela nem faz ideia, mas se fizesse poderia mesmo transformar o mundo, e tanto ia fazer se ela fosse alcançar isso sendo a moça do interior ou a moça de todo lugar, até mesmo porque cosmopolita dos pés até a última gota de tintura loira do cabelo, isso não faz e nem nunca vai fazer a menor diferença. Até porque pra essa moça as diferenças são quase invisíveis, o que ela enxerga está além dos limites rígidos impostos pela sociedade, ela enxerga os olhares e o que se esconde por detrás deles, aquilo de que pouco se fala, aquelas coisas tolas que muitos insistem em ignorar, coisas assim como a amizade, esse sentimento e estado transitante que Mário Quintana sabiamente definiu como, "um amor que nunca morre". Que nunca morre loira. Que nunca morre loiras. Que nunca morre... Tiara Sousa

terça-feira, 7 de junho de 2016

LEMBRANÇAS ORNAMENTAIS

Acho um tanto infame, mas devo admitir que somente lá pelas 16 horas o dia começa a fazer sentido pra mim. É aquele momento em que os raios de sol parecem não provocar tanto calor e que as obrigações (eu lido com elas, mas não muito bem) começam a perder seu status. Na terça-feira passada neste exato horário, eu saí de casa em busca de alguma coisa nova, é necessário aqui ressaltar que diferente da maioria das pessoas, eu também não lido bem com coisas novas. Vou sempre aos mesmos lugares, sento nas mesmas cadeiras, leio os mesmos autores e repito os mesmos erros. Mas naquela terça não, naquele dia em especial eu queria algo diferente pra ornamentar as minhas lembranças futuras.
Entrei no carro sem paradeiro e sabendo que onde quer que eu fosse parar não haveria ninguém esperando por mim, a sensação de não ter ninguém a sua espera é de liberdade e solidão, duas das minhas quase paixões quase correspondidas preferidas. Nos raros momentos em que tenho esses rompantes acabo parando na praia, é que quanto mais decidida a romper com os hábitos cotidianos eu estou, menos eu consigo. O medo e o comodismo sempre comandaram capítulos importantes da minha estranha biografia. Ou talvez eu acabe por costume parando na praia pelo motivo óbvio de que vivo numa cidade quase que provinciana cercada de água por todos os lados. Ou talvez seja o meu condescendente amor pelo mar. Eu gosto do vazio. O vazio me acomoda, todo o resto me soa caótico. O mar me soa vazio. Sempre o percebi assim. Mas é importante ressaltar(não, não é importante ressaltar), mas ressalto assim mesmo que nesse dia em especial eu não acabei indo parar na praia. Gastei aproximadamente um quinto do meu precioso tanque de combustível pra chegar num bairro comum que poderia facilmente ser confundido com qualquer bairro de periferia da minha cidade. Estacionei o carro próximo a uma pracinha que embora me recordasse uma imensidão de coisas, fosse pelo visual abandonado e simplório, fosse pelo olfato, sentido que embora prejudicado por anos de dependência de nicotina ainda é o que mais me provoca lembranças e impressões, nunca havia estado ali. Um lugar novo e contraditoriamente encharcado de melancolia. Sentei num banco degradado da praça e passei aproximadamente uma hora ali, vendo pessoas, coisas e comportamentos, tentando compreender realidades submissas, histórias diferentes, peles marcadas, honras roubadas, conhecimentos exibidos e ignorâncias expostas. Tentando compreender talvez algumas coisas sobre mim, como o porque de eu ter saído com o vestido estampado e não com o short jeans naquele dia, ou o porque de eu ser alguém tão pouco sociável e simpática, ou então o porque de cem por cento do mundo que me cerca não atender as minhas expectativas sonhadoras e infantis. Ou talvez tentando apenas compreender as últimas notícias dos jornais, uma presidenta colocada num processo de impeachment por corruptos abraçados por boa parte da população, uma adolescente estuprada por mais de 30 homens acalentados por uma gente cruel que ao invés de debater a monstruosidade dos estupradores, gastam seu tempo julgando a exposição ao perigo em que a vítima se colocou, ou ate mesmo julgando a própria vitima.
E enquanto as crianças corriam pela praça, e os adolescentes declaravam suas paixões, considerando eterno o que só poderia mesmo existir no efêmero, e que os adultos apressados passavam com as suas compras do mercado, eu ali, tentando enxergar os motivos de um mundo tão cruel e pior, tentando conviver com o fato de ser parte dele.
Até o momento em que algo desfez meu superior desânimo e minha resistente distração, um homem de uns setenta e poucos anos, passou pela praça numa tranquilidade quase que inaceitável para o resto do mundo, aparentando nenhuma pressa, levantou a cabeça, suspendeu os olhos e por dois ou três minutos olhou para o céu, depois abaixou a cabeça, sorriu e voltou a caminhar. Não sei quem é esse senhor, seu nome, endereço, profissão ou estado civil, e nem mesmo troquei uma única palavra com ele, mas mesmo o desconhecendo nunca obtive de alguém como obtive dele uma resposta tão absolutamente satisfatória a um questionamento... Não faço ideia se ele olhou para o céu num ato de fé, de contemplação ou de qualquer outro motivo, mas se dentre tantas coisas ele parou e olhou e sorriu, ainda devem haver sensibilidades se sobressaindo a friezas, juras de amor vencendo duelos com juras de ódio, sofrimentos desaparecidos por momentos de alegria. Se aos setenta anos um senhor pode parar tudo o que está fazendo (ainda que o que esteja fazendo seja nada demais) para olhar para o céu, deve certamente existir um motivo pra naquela tarde eu trajar um vestido estampado ao invés de um short jeans, pra ser alguém tão pouco sociável e simpática, ou pra cem por cento do mundo que me cerca não atender as minhas expectativas sonhadoras e infantis.
Porque se ele pode olhar para o céu e sentir-se feliz somente por isso, talvez o mundo não seja por fim um lugar povoado por gente tão cruel, talvez eu apenas nunca antes tivesse sentado no banco certo, da praça certa, do bairro certo. Ou Talvez simplesmente eu, nós, só nunca antes tivéssemos olhado para o lugar certo. Foi essa a resposta ao meu questionamento, um questionamento nunca dito antes em voz alta, mas por tantas vezes gritado em silêncio. Depois levantei entrei no carro e saí. Não faço ideia de que bairro era aquele e nem como consegui encontrar o caminho de volta. Só sei que no dia seguinte acordei ás 7 da manhã como de costume, mas foi diferente, de repente me dei conta que mesmo tão cedo, o dia já fazia todo sentido pra mim.  Então tomei banho, me arrumei e saí, dessa vez sabendo exatamente para onde iria e que haveriam pessoas esperando por mim. Tiara Sousa