quinta-feira, 26 de julho de 2018

SAPATILHA AZUL


Às vezes acho que tem mundo demais. Mas mesmo assim me sinto apertada, como se esse lugar de tantos países, línguas e continentes não me coubesse. Como se esse lugar me oprimisse. É uma sensação entre o meu corpo que dói de saudade de objetos que não tive, pessoas que não conheci, momentos que não vivi, fatos que não presenciei, e a minha vontade de gritar. Mas o pior é quando meu corpo dói e pronto. Apenas dói. Sem saudade de nada. Como se houvesse um deus pra cada parte que dói, doer direito.
Eu não poderia comprar aquela sapatilha, ela era azul, e sempre achei que tudo que é só azul, é azul demais. Nem sei bem como fui parar naquela sapataria, é só que eu não poderia ficar em casa. Não naquele dia. Não tão triste quanto estava. Então peguei a chave do carro e saí, quando dei por mim estava lá, experimentando sapatos, e eu nem gosto de sapatos, ou fica pequeno, ou grande, ou desconfortável, ou simplesmente é azul demais. Mas experimentar sapatos era tudo que eu conseguia fazer, e eu era a única da loja que experimentava sapato chorando, mas eu não via ninguém, logo era como se ninguém me visse. Quando a gente tá muito triste, é só a gente, o mundo, e um monte de sapatos. Que vontade que tive de eu inteira caber dentro de um, mas como não cabia, saí da loja sem um sapato sequer, só com a havaiana de sempre.
Depois fui a praia, sozinha, sentei a beira mar, apenas com um energético e uma carteira de cigarros, pensando sobre todas as coisas que de tão grandes nunca irão caber dentro de um sapato. A tristeza que eu sentia aquele dia por exemplo só caberia em mim, e eu ficava olhando o mar e pensando que nem mesmo ali naquela imensidão, naquele infinito, naquela beleza, naquela solidão, minha dor caberia tão bem quanto em mim.
É que assim como toda gente, cresci numa sociedade em que as pessoas medem palavras a toda hora do dia, mas sempre esquecem de medir as atitudes, e eu nunca aprendi a agir assim, e tentei tanto, durante tanto tempo, agir como os outros, ser mais adaptável, mas fui na contramão, sempre vou na contramão. É que há um amargo entre meu siso e a minha veia aorta que me faz nunca medir as palavras, mas sempre medir as atitudes. É que na infância tive uma boneca cujo a aparência não me agradava, então pintei o cabelo dela, cortei, fiz uma roupa diferente, tatuei ela com cola colorida, costurei uma bota de fiapos pra ela, mas nada adiantava, ela ainda era ela, ainda tinha aquela cabeça imensa típica das bonecas Moranguinho, e foi essa a minha primeira grande lição de vida... A gente muda o tempo inteiro, mas sempre tem uma coisa suficientemente grande que faz a gente ser a gente, e essa coisa irá continuar pelo resto de nossas vidas.
E não importa o quanto eu tente, nunca entenderei certas coisas tão naturais para algumas pessoas. Ainda não entendo o que move a humanidade. Não entendo porque depois de duas horas de culto, os evangélicos da igreja da esquina criticam os boêmios nos bares. Não entendo como se pode ferir gratuitamente quem diz amar, nem o que leva as pessoas a uma cegueira e surdez de consciência, ou porque colocam seus desejos e anseios acima dos sentimentos. Definitivamente não entendo que ambição é mais leve que um abraço, que orgasmo é mais feroz que uma saudade, que tesão é mais digno que um sorriso, que vontade é maior do que um amor, que vaidade pode superar uma história bonita. Não entendo e não quero entender.
Não quero mais aprender a agir como os outros, a ser mais adaptável, a deixar de ir na contramão. Não faço mais questão de ser como a maioria dessas 7,6 bilhões de pessoas que compõe a humanidade, se no fim de cada rua cai um pedaço de mim que jamais recuperarei, se nas dobras da minha saia cor de rosa não tem mais espaço para novas dores, se ás vezes acho que tem mundo demais e mesmo assim me sinto apertada, como se esse lugar de tantos países, línguas e continentes não me coubesse. Como se eu fosse uma sapatilha azul demais e por isso nunca saísse da vitrine da loja.
Depois de duas horas concluindo essas coisas e chorando a beira mar, levantei, entrei no carro, voltei a sapataria e comprei a tal sapatilha. E ela nem parecia mais tão azul. Tiara Sousa