(Conto inspirado num e-mail enviado por um leitor deste blog)
Ele amou o volume do cabelo dela, a maneira como os cachos
caiam sobre o rosto e o sinal que ela tinha do lado esquerdo da barriga. Ele
amou a abominação dela diante do moralismo imoral do mundo e amou ainda mais a
carta de amor que ela nunca escreveu a ele.
Ele amou os dentes molares dela, e os pré-molares, e os caninos,
e os incisivos e a maneira velha com que ela era jovem. Ele amou os batimentos
cardíacos dela e a maneira como os olhos dela se fechavam cada vez que ela
sorria, e amou ainda mais a declaração de amor que ela nunca fez a ele.
Ele amou a música favorita dela, mesmo ela nunca tendo contado
a ele qual era a música e amou cada conquista dela como se fossem as dele. Ele amou
o modo disforme com que ela calçava as sandálias e as abotoava e amou ainda
mais a ligação ás duas da manha pra dizer que estava com saudade que ela nunca
fez a ele.
Ele amou a blusa branca que ela usou para ir num encontro com
um homem que não era ele e a maneira como ela discordava dos jornalistas políticos,
a maneira como ela discordava de todos os jornalistas. Ele amou a lentidão dela
comparada com a agilidade do resto das pessoas e amou ainda mais o cartão
postal que ela nunca enviou a ele.
Ele amou o dia em que ela sorriu com o mar como se o mar
falasse com ela e o fato de ela sempre esquecer onde colocava as chaves, o
celular e qualquer objeto. Ele amou o curativo que ela colocou em cima de um calo
no pé esquerdo e amou ainda mais o olhar apaixonado que ela nunca direcionou a
ele.
Ele amou a rua pela qual ela passou na quinta retrasada, ele
amou todas as ruas pelas quais ela passou e amou a timidez que ela sentia, a
solidão que ela cultivava, os sonhos que ela proclamava e as piegas comédias
românticas americanas que ela sempre assistia chorando. Ele amou com tanta
pureza, e com tanto cuidado, e com tanta poesia, e tanto, mas tão devagar, que
ele nem sabia definir, apenas sentia.
Ele amou sozinho, e por uma multidão, e ainda assim nunca
amou à toa, amando ele ia tornando o mundo melhor para todos, para ele mesmo e
para ela. Ele amou os amores dela, como se os amores dela fossem para ele e
amou ainda mais o último texto que ela escreveu e o penúltimo, e o antepenúltimo,
e os anteriores, como se os textos dela fossem para ele. Tiara Sousa