sábado, 29 de dezembro de 2012

Ele amou


(Conto inspirado num e-mail enviado por um leitor deste blog)  

Ele amou o volume do cabelo dela, a maneira como os cachos caiam sobre o rosto e o sinal que ela tinha do lado esquerdo da barriga. Ele amou a abominação dela diante do moralismo imoral do mundo e amou ainda mais a carta de amor que ela nunca escreveu a ele.
Ele amou os dentes molares dela, e os pré-molares, e os caninos, e os incisivos e a maneira velha com que ela era jovem. Ele amou os batimentos cardíacos dela e a maneira como os olhos dela se fechavam cada vez que ela sorria, e amou ainda mais a declaração de amor que ela nunca fez a ele.
Ele amou a música favorita dela, mesmo ela nunca tendo contado a ele qual era a música e amou cada conquista dela como se fossem as dele. Ele amou o modo disforme com que ela calçava as sandálias e as abotoava e amou ainda mais a ligação ás duas da manha pra dizer que estava com saudade que ela nunca fez a ele.
Ele amou a blusa branca que ela usou para ir num encontro com um homem que não era ele e a maneira como ela discordava dos jornalistas políticos, a maneira como ela discordava de todos os jornalistas. Ele amou a lentidão dela comparada com a agilidade do resto das pessoas e amou ainda mais o cartão postal que ela nunca enviou a ele.
Ele amou o dia em que ela sorriu com o mar como se o mar falasse com ela e o fato de ela sempre esquecer onde colocava as chaves, o celular e qualquer objeto. Ele amou o curativo que ela colocou em cima de um calo no pé esquerdo e amou ainda mais o olhar apaixonado que ela nunca direcionou a ele.
Ele amou a rua pela qual ela passou na quinta retrasada, ele amou todas as ruas pelas quais ela passou e amou a timidez que ela sentia, a solidão que ela cultivava, os sonhos que ela proclamava e as piegas comédias românticas americanas que ela sempre assistia chorando. Ele amou com tanta pureza, e com tanto cuidado, e com tanta poesia, e tanto, mas tão devagar, que ele nem sabia definir, apenas sentia.
Ele amou sozinho, e por uma multidão, e ainda assim nunca amou à toa, amando ele ia tornando o mundo melhor para todos, para ele mesmo e para ela. Ele amou os amores dela, como se os amores dela fossem para ele e amou ainda mais o último texto que ela escreveu e o penúltimo, e o antepenúltimo, e os anteriores, como se os textos dela fossem para ele. Tiara Sousa

domingo, 16 de dezembro de 2012

Memórias de um amor


Agora que o vento está brando, que as mágoas se foram, que o sonho parou de atormentar e as lágrimas secaram, eu posso enfim dizer que meu coração é nobre, e só por isso eu sofri. Eu posso enfim contar que nunca o desejei mal, apenas parei de tentar fazer bem a ele, pois tentar consumia a minha juventude, assassinava a minha alegria, destruía a minha pureza.
É que eu não fui a Guerra, nem passei pela Ditadura Militar, nem participei das Revoluções Comunistas, eu nunca lutei por nada disso, guardei minhas lutas para o amor. É que eu não passei fome, não abracei arvores, nem contei estrelas, guardei minhas experiência para o amor.
Mas eu me perdoo, se amando eu sufoquei meus sonhos, se fantasiando eu apaguei meu brilho, se sentindo eu agonizei de dor, eu não sabia o que fazia, ou porque fazia, ou para que fazia, eu sabia apenas para quem fazia.
Ainda lembro do abraço verdadeiro que não recebi, do beijo que não durou, das noites em que sendo dele, nunca fui. Até hoje ainda recolho pedaços do meu coração pelas ruas escuras, pelas páginas dos cadernos velhos, pelas memórias sofridas. Ainda guardo sonetos dos tempos em que me furtava de mim. Até hoje tenho medo de sentir novamente, de querer tanto alguém novamente, de sofrer outra vez. Eu nunca me recuperei.
Se a frieza hoje me consome, é porque a sensibilidade e o romantismo ainda me perseguem. Eu tenho medo de amar e amando deixar de me amar outra vez, eu tenho medo de deixar alguém me amar, eu tenho medo da minha poesia e do meu desacato, então eu me recolho num mundo só meu, onde ainda que alguém entre pela porta, nunca passe da sala. Eu nunca me recuperei.
Se eu disser que ainda o amo, ou sinto falta dele, estarei mentindo. Eu não o amo mais. Doeu imensamente e por tanto tempo, que o tempo tratou de findar, passou. Porém mesmo não o amando, sobrou alguma coisa numa gaveta, ou debaixo duma cama, ou num baú, alguma coisa que me traumatiza, me amedronta, me entristece e me paralisa, algo que eu não sei o que é, nem de onde vem, talvez seja a inocência que as dores desse amor roubaram de mim, e talvez seja só por isso que eu, eu nunca me recuperei. Tiara Sousa

domingo, 9 de dezembro de 2012

Dezembro


Os turistas chegam na cidade, enquanto eu procuro nas agendas antigas um motivo pra partir. Esses casarões coloniais já não dizem tanto, é o fim do ano, é o fim de mais um ano. Acabaram-se as palavras, e eu suplico as palavras para o teto, para a cama, para o céu, para a fotografia antiga, para a dor do outro que dói tanto em mim quanto nele. Mais um ano acaba, os anos acabam, as paixões acabam, as dores acabam, nós acabamos, o vestido que comprei  antes de ontem irá acabar um dia, o fim está em tudo, em todos os lugares, em todos os móveis, num beijo que você deu há anos atrás sem imaginar que seria o ultimo beijo que daria naquela pessoa, o fim está em nós.
Debaixo dos lençóis, os amantes se concedem o momento que nunca é eterno como nos sonhos e o céu chora e chove o orgasmo dos passados, recentes e futuros corações partidos, sempre tem mais corações partidos em dezembro. Por que Janeiro não chega logo para podermos começar novamente? Porque? A vida é uma incógnita diante de tanto desamor, já que ninguém conhece mais a vida do que o amor, ele conhece a vida, pois a vida é um sintoma do amor e o amor é um sintoma nosso. Quem já chorou o choro de outra pessoa sabe que chorar o choro de outra pessoa é mais insensato do que chorar a falta da mesma, e já choramos tanto a falta, que a falta sobra, a falta escorre, a falta é a psicose natural, mas a dor do outro doendo dentro da gente é lindo, é triste e é finito, pois o fim está em tudo, em todos os lugares, em todos os móveis, num beijo que você deu há anos atrás sem imaginar que seria o ultimo beijo que daria naquela pessoa, o fim está em nós.
Dezembro é solitário, ainda que animado, o animo transpira solidão. Dezembro é uma janela se fechando, somos nós analisando o que aconteceu, o que não aconteceu, o que feriu, o que mudou, o que passou, o que ficou. Dezembro é a mãe do presidiário sendo revistada num dia de visitas, é o relacionamento que acabou, é a frase não dita e engasgada , é a frase dita e arrependida, é a imagem de 365 pores do Sol. Dezembro é o fim temido, é o fim aguardado, é o fim concedido, é o fim constatado, é o fim em tudo, em todos os lugares, em todos os móveis, num beijo que você deu há anos atrás sem imaginar que seria o ultimo beijo que daria naquela pessoa, é o fim em nós, é a chegada dos turistas na cidade, enquanto eu procuro nas agendas antigas um motivo pra partir. Tiara Sousa