segunda-feira, 23 de outubro de 2017

O ÚLTIMO SHOW DO RAPPA ou INEXATA

Era o último show do Rappa, e eu só conseguia me lembrar do meu primeiro... Lembro que eu tinha 19 anos, que a minha saliva tinha sabor de novo, que eu me sentia meio perdida entre os jovens que ocupavam aquele espaço e a sensação de que entre o meu fêmur e a minha carne haviam mágoas demais para uma jovem mulher. Aquele show foi foda, porque só ali eu compreendi que não importava a multidão que me cercasse, nenhuma tribo era a minha, nenhuma dor que eu tivesse poderia ser dividida, nenhum mundo a ser alterado, nenhum tesão a ser constante, e que tudo bem, não tinha que ser diferente. Só ali no meio daquela quantidade enorme de pessoas esperando pra ver a mesma banda que eu esperava, e ouvir as mesmas músicas e lamentar pelo mesmo caos, eu entendi que quanto mais gente tivesse mais sozinha eu me sentiria, e eu achava que era porque eu era muito diferente de todo mundo ali, afinal fui eu que sempre cultivei um mundo particular em que só cabiam ilusões desmedidas e em que toda realidade era massacrante, mas não era bem isso, não era porque eu fosse tão diferente ou especial ou genial ou foda ou sensível, eu sempre fui capaz de me sentir sozinha na multidão ou numa mesa de bar, ou numa classe, ou num palco, ou num abraço, ou nos braços de um homem, ainda que eu amasse esse homem, na realidade quanto mais eu amava, mas sozinha eu me sentia nos braços dele.
Eu entendi. Não era por eu ser diferente, é por que eu sou inexata, sempre fui, e acho que sempre serei. É porque esperar de mim doses de mim é esperar em vão, é que eu moro nas rebeldias mas não falo aquelas línguas, é que a minha pureza é subversiva e eu gosto de protestos em vão, é que ainda que soe contraditório eu não uso batom e saltos e roupas provocantes porque gosto de ser vista, e me interesso pelos defeitos dos outros mais do que pelas qualidades, é que a minha humanidade é tola e eu nunca realmente acreditei num Deus, e onde há espera eu sempre fui inesperada, e amor nenhum nunca me roubou de mim. Eu sou inexata porque construí cercados para os meus cercados e me entreguei a homens sem nunca realmente me entregar, porque sempre questionei altruísmos e acreditei em egoísmos, porque imperfeições me comovem e tudo que passa do ponto me atrai. Eu sou inexata porque os orgasmos duram pouco e sempre me senti a passageira de um trem fora dos trilhos, é que há entre a minha garganta seca e a minha unha encravada algum poema barroco de Gregório de Matos que ironiza nossos mais relevantes aspectos sociais. Eu sou inexata porque a minha veracidade é torta.
Mas dessa vez, nesse último show eu já tinha consciência da minha inexatidão, eu olhava as pessoas ao redor, e eram tantas que observando ao longe ficavam pequenas, e pensando no exercito das formigas lamentei pela humanidade. Uma amiga comentou durante o show que reparou que do primeiro show que ela foi pra esse a idade das pessoas era maior, porque eram as mesmas pessoas só que o tempo tinha passado pra nós e pra elas, ao ouvir o comentário dela, eu desisti por alguns minutos de olhar para o palco e olhei para os olhos dos outros, porque eu sempre achei que nos olhos é que moram os maiores estragos do tempo, e eu gosto dos estragos do tempo, porque só eles me dão a dimensão do que é insensato e do que é necessário, mas tudo o que encontrei ali, naqueles olhares, foram as consequências das paixões que tivemos, das crianças que geramos, dos sussurros que deveriam ser gritados, e que continuaram sussurros, então voltei novamente os meus olhos para o palco, e cantei junto com o vocalista e com as pessoas mais uma canção, porque de onde venho letras e melodias são entorpecentes que cedo ou tarde chegam nos meninos e meninas adolescentes cheios de acnes e desejos que eles ainda nem compreendem.
Saí daquele show, do último show do Rappa exatamente como eu saí do primeiro, querendo ficar sozinha pra me sentir acompanhada... Na saída do show recebi uma ligação num celular que não era meu, porque o legal de não usar celular é que as ligações recebidas em celulares alheios são mais inesperadas e inconstantes, era um rapaz que conheci há pouco tempo e que nunca consegue me encontrar, e acho que tem um mês essa novela, mas ainda não era o dia, eu realmente precisava chegar em casa e ficar só, multidões quase me apavoram... No caminho de volta eu e mais cinco amigos decidimos terminar a noite numa lanchonete da Madre Deus, comendo guloseimas e conversando sobre coisas como o porque da Rua do Passeio se chamar Rua do Passeio e do quanto todos nós somos meio como o Tuco, personagem do antigo seriado A grande família. Depois fomos embora, eu cheguei em casa, sentei no terraço, acendi um cigarro e sozinha sorri lembrando da noite e das conversas na lanchonete, dos nossos gritos e pulos durante o show, do nosso amigo contando que a Rua do Passeio só tem esse nome porque ali era o caminho onde antigamente passavam com os mortos em direção ao cemitério e era o último passeio que eles davam, sorrindo da minha amiga dizendo na mesa da lanchonete que todo mundo já sentou no sofá da sala pra assistir A grande família e ficar criticando o Tuco, o filho que passava tempo e mais tempo e nunca saia da aba dos pais, mas que no fim das contas nós todos somos Tucos, lembrando do rapaz que ligou no final do show querendo me encontrar e que mais uma vez não conseguiu e do quanto ainda que sem planejamento eu devo estar sendo difícil pra ele que é um gatinho e que não deve estar habituado a isso, sabendo que o que fica desse último show, e do primeiro e do segundo é o que sempre fica, lembranças bonitas de gente que assim como eu deve ter sua dose cavalar de inexatidão. Depois terminei o cigarro, levantei sentindo muita dor nas pernas de tanto pular (é que esse não era o primeiro show e eu não tenho mais 19 anos), e caminhei até o meu quarto satisfeita com o último show do Rappa, cantarolando aquela música deles... “Valeu a pena ê ê, valeu a pena ê ê, sou pescador de ilusões, pescador de ilusões”. Tiara Sousa

quarta-feira, 18 de outubro de 2017

DEPOIS DA MEIA NOITE

Imagem retirada do site http://en.tubgit.com
Nada como uma cidade depois da meia noite pra gente descobrir um monte de coisas que estão bem na nossa cara ao longo do dia, mas que não enxergamos porque estamos atrasados pra escola, pra Universidade, para o trabalho, porque estamos cheios de compromissos e sonhos e esperanças e frustrações e dores e saudades e desejos e invenções, porque não nos permitimos nem olhar para o céu ou para os olhos de um amigo, de um amor, porque estamos sempre muito ocupados com as nossas dores pra avaliar que viver é um desafio tão intimo quanto coletivo.
Mas a madrugada te mostra muita coisa... Os postes iluminam as ruas e só as dores alheias importam, a alegria parece de vidro, mas eu que quebro ao perceber que não há fantasia alguma além dos prédios altos que ornamentam as proximidades das orlas. Porque depois da meia noite coisas que fariam tanto sentido durante o dia de repente não fazem sentido algum. Lembro de chegar a uma casa de shows na semana passada pra assistir uma noite de canções de Chico Buarque e enquanto esperava o cantor iniciar a noite e os músicos afinarem os instrumentos, sentada numa mesa ao fundo com uma amiga, acabei percebendo... O casal ao lado, sem sentido; O garçom simpático, sem sentido; O tesão explicito do garoto de 20 anos, sem sentido; Os olhares curiosos dos dois homens sentados numa mesa atrás da nossa, sem sentido. Observar é a melhor e a pior coisa que alguém pode fazer consigo.
Nada como uma cidade depois da meia noite pra gente descobrir um monte de coisas que estão bem na nossa cara ao longo do dia... E eu descobri...
Descobri que a parte mais salgada do mar é aquela na qual você não consegue chegar, porque ela é mistério. Descobri que a maior saudade que pode existir é a saudade da gente mesmo, que as flores só murcham tão rapidamente porque as maiores belezas moram no efêmero, que a minha vizinha de 77 anos nunca vai passar dos 20 e que as incertezas são certezas travestidas de medo e moral.
Descobri que viver é tão difícil quanto excitante, que a gente só se esconde dos olhares que deveriam nos intimidar mas não nos intimidam, que as reações mais verdadeiras são aquelas que não transparecem, que as ilusões são as facas que ficam guardadas no fundo das gavetas do armário de cozinha e que com o tempo vamos esquecendo de amolar.
Descobri que eu sempre vou gostar das boas histórias mal contadas, porque só elas vão atiçar a minha imaginação, descobri que os olhos do meu filho nunca para mim irão deixar de ser olhos de criança, tenha ele a idade que for. Descobri que eu sempre vou abrir o guarda-roupa na expectativa de ver aquela camisa velha do Flamengo que eu não uso nunca, porque ela me lembra de um tempo em que eu enxergava o mundo melhor.
Descobri que toda dor, medo, ódio, mágoa é menor, é sempre menor do que um único segundo de felicidade. Descobri que sempre vou achar que os salões de beleza são um saco, que sempre vou preferir havaianas a salto alto e achar que os melhores seres humanos são aqueles essencialmente imperfeitos. Descobri que as verdadeiras promiscuidades são aquelas feitas em nome da moral e dos bons costumes, e que a diretora da época do meu ginásio é uma falsa moralista do caralho.
Descobri que o moço que passa vendendo frutas todas as manhãs na rua em que mora a minha avó e que não estudou nas escolas que eu estudei, nem fez as viagens que eu fiz, nem leu os livros que eu li, nem frequentou as baladas que eu frequentei tem mais grana do que eu e boa parte dos meus amigos nesse momento e que ele é um cara tão legal, que ele merecia muito mais.
Descobri que aquela menina branquinha, cheia de sardas, que estudou comigo na 7ª série e que ficava zoando o meu cabelo cacheado, dizendo que ele era muito cheio e feio e que atrapalhava a visão dela na turma e que muitas vezes fazia eu voltar pra casa triste, não tem atualmente, e nem nunca teve um quinto da minha beleza, da minha inteligência e da minha sensibilidade, e que ela sempre soube disso.
Descobri que num mundo de tantos equívocos há paredes a serem pintadas, obras a serem concluídas, bolos a serem assados, histórias a serem contadas, vidas a iniciarem. É que o tempo continua seguindo o seu curso imaterial, é que enquanto a minha vizinha de 77 anos nunca deixar de ter 20 ainda haverá cidades em que depois da meia noite da pra gente descobrir um monte de coisas que estão bem na nossa cara ao longo do dia, mas que não enxergamos. Tiara Sousa

terça-feira, 10 de outubro de 2017

UM TEXTO SOBRE VOCÊ

Imagem do Site silviarita
Me dei conta que já escrevi alguns textos para você, mas que nunca escrevi um texto sobre você (o que não é natural, já que eu escrevo sobre o cotidiano mais do que sobre qualquer outra coisa, e você durante muitos anos foi parte do meu cotidiano), então lá vai...
Você não sabe amar. Não sabe. Nunca em todos os seus anos de vida você chegou perto de saber amar. Porque o amor não é só aquele papo de você é minha, de comedia romântica, de declaração, de crise de ciúmes, de ouvir uma musica e pensar, de assistir um filme e lembrar, de ficar namorando as fotos antigas, isso eu sei que você já viveu, todos vivemos. Amor é sobretudo aquele outro papo de... Toma cuidado, olha ao atravessar a rua, deixa uma sobra desse olhar pra eu poder seguir com segurança, briga comigo porque se importa, vê como eu tô sendo ridículo e me aceita mesmo assim. Essa coisa que a gente é capaz de sentir por um filho, por uma mãe, por um irmão, por um amigo. Mas você desconhece tudo isso, você não sabe e nem nunca soube amar. Mesmo assim você me amou, eu sei, pode acreditar.
Eu lembro que nós fazíamos de conta, você me olhava torto e eu entendia as suas neuroses, você me aconselhava e eu corria as minhas carnes, o meu corpo doía e a sua alma sempre machucada por conta de alguma cena que eu escrevia pra você viver. E você tentava me dizer o que fazer ás vezes. Como eu julgava o fato de você não perceber o mundo que eu queria compor e mesmo assim precisar de mim! Os tijolos da sua casa pareciam frios e o meu espelho velho me dizia nada. Era difícil ser eu, e ás vezes eu tinha a impressão que só você entendia isso, porque ser você também era muito difícil. Você ás vezes cuidava de mim, às vezes enchia o saco e caia fora, depois ligava e os seus telefonemas me entrertiam e me consumiam, era difícil qualquer um nos entender, era fácil a gente se entender.
Lembro que nós fazíamos que éramos infames, é que eu já sabia que quando você contava de mim pra alguma mulher, ela seria importante, e eu do seu lado dizendo ao namorado da vez que tava com uma amiga, eu tinha medo de dizer que era um amigo e ele não compreender que o que tínhamos era fora do corpo, que no que tínhamos não existia corpo. Você me contava o seu dia, eu analisava os perigos, éramos crianças em corpos de adultos quando você me buscava pra irmos tomar banho de mar nos dias 31, só porque eu achava que esse era o dia certo, e eu também sempre achei tão bonito o fato de você nunca ter questionado isso.
Lembro que você sorria pra mim, tinha medo de me tocar e eu não entender, e eu não entenderia mesmo. Você me dizia que eu tinha que maneirar nas palavras, e o que você queria dizer mesmo era “toma cuidado, as pessoas julgam tudo, elas irão julgar as suas palavras mais sinceras”, e eu te achava tão sensível que as vezes era eu quem chorava. E você contava das mulheres, dos amores mal resolvidos, parecia inseguro e eu dizia o quanto você era bonito, mas você nunca acreditava. Você tinha paciência para os meus porres, minhas musicas velhas e mornas e até as minhas amigas mais comuns. Eu não, eu só tinha paciência pra você, e olhe lá, ás vezes eu queria escapar. Eu julgava os seus amigos, tentava ser amiga das suas paixões, mas elas me abominavam só por eu ser eu, elas entendiam melhor do que você a importância de uma amizade. Você escondia os nossos telefonemas dos seus casos, eu escondia os nossos lanches dos meus, a gente se despedia e eu ficava entre os meus livros, as minhas novelas, as minhas crônicas e um carinha qualquer, você ouvia reggaes e fazia de conta que tava tudo bem, e amava alguma mulher que te deixava louco.
Mas muita coisa aconteceu e a gente se partiu, porque ainda que com idades tão próximas, eu preciso crescer e você precisa rejuvenescer, eu preciso jantar á luz de velas e receber flores e você precisa de um bom hambúrguer com batatas fritas e de um Heavy Metal. Se partiu porque a gente precisa conhecer outros mundos e eu preciso assimilar decepções que sejam minhas, e só minhas, e você precisa aceitar o mundo dos outros. Se partiu porque você colava na escola enquanto eu colecionava papéis de cartas, porque eu me acho o máximo e você se distorce e consequentemente acaba distorcendo as pessoas, e se ferra com isso, porque muitas vezes você está certo com as suas análises, mas isso não as torna menos cruéis, e nem significa que você está sempre certo. E o mesmo serve pra mim, só que em doses femininas e poéticas.
A gente se partiu porque você se habituou aos fins, aos pontos finais, e eu tentei te mostrar as reticências, mas você tem medo de ter medo, e eu, eu sou intima dos meus medos. Se partiu porque você é alheio a encantos, eles te assustam, porque você é um papel pardo em meio a um monte de papéis laminados, porque eu extravio e você absorve, e não faz ideia do quanto suas aventuras estão distantes de tornar-se a transgressão que você tanto precisa. E eu não, eu já nasci transgredindo.
A gente se partiu porque você gosta de ser machucado, gosta de se perder em meio a aparências, gosta, mesmo abominando tudo isso, e eu também. Se partiu porque a solidão te aterroriza e eu gosto de solidão, de olhares que despem, de gente inconstante, e você teme tudo isso. Se partiu porque você constrói fábricas para os seus sentimentos e eu derrubo castelos para os meus, porque na maioria das vezes você trepa pra poder se apaixonar, e eu na maioria das vezes me apaixono pra poder trepar, porque você suporta sonhos e eu suporto realidades, porque você ignora visitas e eu as expulso, porque você late e é mordido, porque você teme não ser amado como é e apesar dos erros que comete e eu me habituei a ser amada assim. A gente se partiu porque além de todas as nossas já citadas compatibilidades e incompatibilidades aconteceu uma grande amizade que você reduziu a mais uma de suas análises.
Eu nunca escrevi sobre você porque em meio a tantos caras que já protagonizaram as minhas crônicas mais sentidas, líricas, sensuais e poéticas você não se encaixa, esses caras me tiveram nos braços, nos lábios, nos corpos, me fizeram delirar de apaixonada e sentimentalizar cada gesto e atitude, mas nenhum desses caras chegou perto de me conhecer inteiramente, e você não, você era bem mais importante, você era o cara a quem eu contei das minhas viagens e com quem eu fiz viagens, a quem eu falei dos meus romances, e das dificuldades e felicidades da minha vida, você era o cara pra quem eu torcia pra que encontrasse a mulher mais massa de todas e que por ela fosse correspondido e respeitado, a quem eu seria a madrinha de casamento e os filhos me chamariam de tia, e isso era tão grande e tão desprovido de qualquer impureza que não cabia em mais um texto semanal. Mas hoje, depois de tantos textos eu finalmente escrevi sobre você, não porque você tenha deixado de ser esse cara, não é isso, mas porque só hoje me dei conta do quanto a gente se partiu. Só hoje acordei com um cinzeiro cheio de pontas de cigarros do meu lado e percebi que nenhum desses cigarros foi fumado enquanto eu conversava com você. Tiara Sousa

domingo, 1 de outubro de 2017

NUDEZ – Sobre a interação de criança com artista nu em MAM

Imagem do site Paraná Online
Ele nasceu nu, nu de corpo, nu de alma, nu de nu. Nus nós nascemos, e assim conseguimos permanecer por um tempo, mas o primeiro choro, o primeiro riso, a primeira palavra, a primeira peça de roupa vai nos cobrindo, vai nos poupando de nos encarar e encarar o outro sem os modos convencionais, a educação formal, o refinamento, o estilo construído, a superficialidade. Nós só nos cobrimos pra esconder os males aos quais o mundo nos introduz, os padrões inalcançáveis, preconceituosos e rasos que nos são impostos, a vergonha que nos é ensinada e nunca natural, e a Arte quer desconstruir tudo isso. Pois a Arte não quer cobertas, a Arte derruba as cortinas, a Arte fala mal dos confinamentos, a Arte é livre. Não sei o que chamam de maldade, de pedofilia, de fim da infância, não sei, porque o meu coração é comunista, habita na foice e no martelo, tem sede de igualdade, ás vezes ladra, ás vezes é mordido, não entende de moralismos, entende de moralidades. E a minha moralidade diz que a nudez é só nudez, tocar alguém nu, olhar alguém nu, não desperta por si só líbidos, um pênis é apenas um pênis, todo homem tem, todo bebê do gênero masculino tem, toda criança do gênero masculino tem, todo o resto é equívoco de mentes promiscuas, de ignorâncias, de influenciadores que tentam e ás vezes conseguem convencer que um corpo nu é mais do que apenas um corpo nu.
Aproveitem esse nosso tempo, esses novos tempos e essa quantidade de informações que nos é derramada por segundo, e desconstruam e desprendam-se da ideia de que a nudez é promiscua, não é, não tem que ser, a promiscuidade mora em certas mentes, a nudez é só um corpo despido, nada mais. Não tentem destruir infâncias com as suas ideias tolas, ignorantes, preconceituosas e infames. Por favor, meu filho frequenta redes sociais, então tomem cuidado com o que falam e como julgam, não destruam a infância do meu filho, dos seus filhos, dos filhos dos seus amigos dizendo a eles que um corpo nu é mais do que um corpo nu, não é, você tem um corpo nu, eu tenho corpo nu. Atos de natureza sexual, atos promíscuos, pedofilia, abuso é outra coisa.
Vocês, educadores, artistas, trabalhadores braçais, estudantes, façam um favor a vocês e a sociedade, não comprem essas ideias equivocadas que castram a Arte, que castram as infâncias, que transformam momentos puros e nus em ideias erronias de orgia. Estudem, leiam, enxerguem, ouçam, desenvolvam, conheçam, o fato de alguém estar nu não significa que há algum ato libidinoso, nudez é só um corpo sem roupas. Se é Arte ou não é, decidam, se apreciam ou não, percebam, se lhes toca ou não, questionem, mas tenham a certeza que não há promiscuidade num corpo despido de roupas, estejam certos que a promiscuidade está em vossas cabeças ignorantes e influenciáveis, e lembrem-se, a Arte é livre inclusive da maldade e das intenções duvidosas de quem a interpreta de modo incompleto e incoerente.
Há alguns meses dirigi um monólogo cujo o ator despia-se completamente em uma das cenas, infelizmente no dia da apresentação meu filho tinha aula e não pôde comparecer, mas ele assistiu ao ensaio geral, e assistiu outras apresentações artísticas com nudez, e a infância dele está intacta, lúdica, bela. Sabe porque? Porque ele nasceu nu, eu nasci nua, você nasceu nu, quando tomamos banho ou nos trocamos, ou nos secamos estamos nus, e nenhum desses atos tem natureza sexual. São apenas corpos. É apenas nudez. Tiara Sousa