Era
o último show do Rappa, e eu só conseguia me lembrar do meu primeiro... Lembro
que eu tinha 19 anos, que a minha saliva tinha sabor de novo, que eu me sentia
meio perdida entre os jovens que ocupavam aquele espaço e a sensação de que
entre o meu fêmur e a minha carne haviam mágoas demais para uma jovem mulher. Aquele
show foi foda, porque só ali eu compreendi que não importava a multidão que me
cercasse, nenhuma tribo era a minha, nenhuma dor que eu tivesse poderia ser
dividida, nenhum mundo a ser alterado, nenhum tesão a ser constante, e que tudo
bem, não tinha que ser diferente. Só ali no meio daquela quantidade enorme de
pessoas esperando pra ver a mesma banda que eu esperava, e ouvir as mesmas
músicas e lamentar pelo mesmo caos, eu entendi que quanto mais gente tivesse
mais sozinha eu me sentiria, e eu achava que era porque eu era muito diferente
de todo mundo ali, afinal fui eu que sempre cultivei um mundo particular em que
só cabiam ilusões desmedidas e em que toda realidade era massacrante, mas não
era bem isso, não era porque eu fosse tão diferente ou especial ou genial ou
foda ou sensível, eu sempre fui capaz de me sentir sozinha na multidão ou numa
mesa de bar, ou numa classe, ou num palco, ou num abraço, ou nos braços de um
homem, ainda que eu amasse esse homem, na realidade quanto mais eu amava, mas sozinha
eu me sentia nos braços dele.
Eu
entendi. Não era por eu ser diferente, é por que eu sou inexata, sempre fui, e acho
que sempre serei. É porque esperar de mim doses de mim é esperar em vão, é que
eu moro nas rebeldias mas não falo aquelas línguas, é que a minha pureza é
subversiva e eu gosto de protestos em vão, é que ainda que soe contraditório eu
não uso batom e saltos e roupas provocantes porque gosto de ser vista, e me
interesso pelos defeitos dos outros mais do que pelas qualidades, é que a minha
humanidade é tola e eu nunca realmente acreditei num Deus, e onde há espera eu
sempre fui inesperada, e amor nenhum nunca me roubou de mim. Eu sou inexata
porque construí cercados para os meus cercados e me entreguei a homens sem
nunca realmente me entregar, porque sempre questionei altruísmos e acreditei em
egoísmos, porque imperfeições me comovem e tudo que passa do ponto me
atrai. Eu sou inexata porque os orgasmos duram pouco e sempre me senti a passageira
de um trem fora dos trilhos, é que há entre a minha garganta seca e a minha
unha encravada algum poema barroco de Gregório de Matos que ironiza nossos mais
relevantes aspectos sociais. Eu sou inexata porque a minha veracidade é torta.
Mas
dessa vez, nesse último show eu já tinha consciência da minha inexatidão, eu
olhava as pessoas ao redor, e eram tantas que observando ao longe ficavam
pequenas, e pensando no exercito das formigas lamentei pela humanidade. Uma
amiga comentou durante o show que reparou que do primeiro show que ela foi pra
esse a idade das pessoas era maior, porque eram as mesmas pessoas só que o
tempo tinha passado pra nós e pra elas, ao ouvir o comentário dela, eu desisti
por alguns minutos de olhar para o palco e olhei para os olhos dos outros, porque
eu sempre achei que nos olhos é que moram os maiores estragos do tempo, e eu
gosto dos estragos do tempo, porque só eles me dão a dimensão do que é
insensato e do que é necessário, mas tudo o que encontrei ali, naqueles
olhares, foram as consequências das paixões que tivemos, das crianças que
geramos, dos sussurros que deveriam ser gritados, e que continuaram sussurros,
então voltei novamente os meus olhos para o palco, e cantei junto com o
vocalista e com as pessoas mais uma canção, porque de onde venho letras e
melodias são entorpecentes que cedo ou tarde chegam nos meninos e meninas
adolescentes cheios de acnes e desejos que eles ainda nem compreendem.
Saí
daquele show, do último show do Rappa exatamente como eu saí do primeiro,
querendo ficar sozinha pra me sentir acompanhada... Na saída do show recebi uma
ligação num celular que não era meu, porque o legal de não usar celular é que
as ligações recebidas em celulares alheios são mais inesperadas e inconstantes,
era um rapaz que conheci há pouco tempo e que nunca consegue me encontrar, e
acho que tem um mês essa novela, mas ainda não era o dia, eu realmente precisava
chegar em casa e ficar só, multidões quase me apavoram... No caminho de volta
eu e mais cinco amigos decidimos terminar a noite numa lanchonete da Madre
Deus, comendo guloseimas e conversando sobre coisas como o porque da Rua do
Passeio se chamar Rua do Passeio e do quanto todos nós somos meio como o Tuco,
personagem do antigo seriado A grande família. Depois fomos embora, eu cheguei
em casa, sentei no terraço, acendi um cigarro e sozinha sorri
lembrando da noite e das conversas na lanchonete, dos nossos gritos e pulos
durante o show, do nosso amigo contando que a Rua do Passeio só tem esse nome
porque ali era o caminho onde antigamente passavam com os mortos em direção ao cemitério
e era o último passeio que eles davam, sorrindo da minha amiga dizendo na mesa da
lanchonete que todo mundo já sentou no sofá da sala pra assistir A grande família
e ficar criticando o Tuco, o filho que passava tempo e mais tempo e nunca saia
da aba dos pais, mas que no fim das contas nós todos somos Tucos, lembrando do
rapaz que ligou no final do show querendo me encontrar e que mais uma vez não
conseguiu e do quanto ainda que sem planejamento eu devo estar sendo difícil pra
ele que é um gatinho e que não deve estar habituado a isso, sabendo que o que
fica desse último show, e do primeiro e do segundo é o que sempre fica,
lembranças bonitas de gente que assim como eu deve ter sua dose cavalar de inexatidão.
Depois terminei o cigarro, levantei sentindo muita dor nas pernas de tanto
pular (é que esse não era o primeiro show e eu não tenho mais 19 anos), e
caminhei até o meu quarto satisfeita com o último show do Rappa, cantarolando
aquela música deles... “Valeu a pena ê ê, valeu a pena ê ê, sou pescador de
ilusões, pescador de ilusões”. Tiara Sousa