sábado, 22 de fevereiro de 2014

DIVÃ

São 7:00 da manhã, a entrevista pra vaga de colunista é ás 8:30, ainda não tomei banho, ainda não me vesti, droga, ainda nem escovei os dentes. São 8:30 em ponto, ainda bem que não me atrasei (eu sempre me atraso), deve ser um bom sinal. Uma secretária impecavelmente vestida me recebe e me direciona até uma sala onde há um homem de uns 40 anos, ele está sentado, tem um sorriso simpático, está bem vestido com uma calça jeans e uma camisa de manga comprida rosa clara(tem coisa mais máscula que homem de cor-de-rosa!), meu futuro chefe, creio, costumo ser otimista. Ele está com um papel nas mãos (suponho ser o meu currículo) e me olha da cabeça aos pés com um ar de julgamento, droga, deveria ter me vestido mais adequadamente, mas na pressa acabei optando por jeans e camiseta, o meu cabelo tá uma farofa e nem o coque improvisado disfarçou isso, ah mas dane-se, agora é tarde. Eu lhe desejo Bom dia, ele educadamente deseja de volta, diz que se chama Eduardo e que tudo de prático que deveria saber sobre mim está no meu currículo, mas que o mais importante nesse emprego é saber cativar as pessoas, então me pergunta se sabendo disso eu ainda acho que estou apta a ocupar a vaga. Por essa eu não esperava, achava que ele iria pedir para eu escrever alguma coisa, discordo de tudo o que ele diz, afinal a coluna tem que ser cativante, eu não, mas acabo não dizendo nada disso e afirmando que sim, que estou apta. Ele então pergunta porque eu sou uma pessoa cativante, e eu fico muda, droga, não sou cativante, nada perto disso, na realidade eu sou um saco, sei que preciso de uma resposta rápida, mas emudeço. Cinco minutos depois, ele pede que eu me acalme e seja absolutamente sincera (putz, ninguém deveria pedir isso a uma mulher com TPM), diz também que não tenho muito a perder já que ele está quase decidido a dar a vaga pra uma moça que entrevistou antes, e que dificilmente mudará de ideia. Então pede que eu faça de conta que estou num divã e responda afinal, o que faz de mim alguém cativante. Eu com a esperança perdida e o otimismo enfiado na minha unha encravada do dedão do pé esquerdo, o obedeço e confesso como num divã:
_ Sou uma sonhadora, meus desejos mais carnais são sentimentais, eu nunca me encaixo, sou a “pedra no meio do caminho” de Drummond, eu sempre aconteço. Tenho insônia, penso melhor de madrugada, então enquanto todos dormem, ou transam, ou bebem por aí, eu escrevo. Assisto filmes porque a vida me assusta, tenho fome de coisas que nunca serão noticia, de meios que nunca comunicam, de passos que eu nunca irei dar. Nem sei mais de onde vem os sorrisos, o gosto do mundo ainda está na minha boca. Para as pessoas comuns eu sou excêntrica, é que às vezes chove e eu corro pra chuva enquanto o resto do mundo corre da chuva, e ninguém sabe ler que ali eu me liberto, que aquela sou eu. Para as pessoas incomuns eu sou solitária, é que eu chego em casa e acendo um incenso, e acendo um cigarro e acendo a luz, mas enquanto houver dores no mundo, no fundo tudo ainda estará apagado. Sei que é arrogante e prepotente dizer isso, mas não me conformo com a minha condição de ser humano, pois sou uma das melhores pessoas que conheço e ainda assim eu sou péssima. Lugares cômodos sempre me incomodam, é desconfortante admitir isso, é desconfortante não admitir. Eu tento meditar, mas meditação requer concentração e eu crio muito expectativa quanto a tudo, a sala, a cozinha, os quartos, os banheiros, os móveis, os amores, os amigos, os estranhos, eu. Mas tudo bem, enquanto meninos e meninas ainda correrem por aí eu sobrevivo. Meu coração hoje é um poste aceso, o mesmo asfalto, casas com luzes de Natal e um morador solitário, amanhã já não sei...
Veja através do vidro da sua janela, aquela folha a balançar no alto daquela árvore naquela praça com o nome de algum reacionário cujo nome não recordo, aquela folha sou eu, verde, porém em luto.
Ele sorri e não sei exatamente porque aquele sorriso me soa uma afronta (talvez seja a TPM), então continuo:
_ Não, não divirta-se com isso, ou apesar disso. Eu nunca serei cativante, sempre acho que o sol é contra o sol, que ninguém mais tem nada a dizer, e só nos resta assistir aos noticiários e deixar de ter a esperança que nunca tivemos tendo.
Depois de ouvir toda a minha confissão, ele diz: _ Parabéns! Você está contratada.
E eu, ao invés de comemorar e sair dando pulos de alegria, pergunto por que, e ele confessa: _ Porque você me cativou!
Então sorrio timidamente e pergunto quando posso começar e ele responde: _ Você pode vir na segunda-feira Marina.
Merdaaaaaaaaaaaaaa, mas eu não sou Marina! Então acabo por descobrir que aquela entrevista é para uma vaga de Relações Públicas (finalmente compreendendo a importância em ser cativante), e que eu confundi o andar do prédio. Nós sorrimos, conversamos um pouco, eu agradeço, saio, vou para o andar certo, mas a vaga foi preenchida há 20 minutos.
Eu poderia lamentar, sair de lá puta da vida, mas nem me importo. Eu cativei um homem maduro, inteligente, educado e bem sucedido sendo absolutamente sincera, perdi a vaga, mas ganhei o dia. Foda-se essa coluninha démodé, eu sou cativante, posso conseguir coisa muito melhor. Tiara Sousa

sábado, 15 de fevereiro de 2014

EU NUNCA DISSE...

Texto dedicado a Isabelly e a todas as meninas e mulheres reais...

A primeira vez que Isabelly disse eu te amo, tinha 16 anos e estava na porta de casa com o namorado. Ela quis pedir socorro mas a voz não saía, quis fugir mas  as pernas não se moviam, quis gritar mas não tinha forças, ela o via e via todas as histórias românticas que leu desde menina, podia ouvir o próprio coração batendo descompassado. Por algum motivo se ela tentasse explicar tudo o que sentia ali seria mais abstrato do que somente dizer. Então ela disse enquanto ele a beijava abaixo da orelha e segurava a sua mão... Eu te amo. Para ela aquilo foi mais do que se expressar, foi a realização de uma fantasia, foi a autoria de um soneto.
Eu não. Eu nunca disse...
E eu amei, amei cada carta que você idealizou mas não me escreveu, cada canção que te fez pensar em mim mas não me dedicou, cada parte da tua consciência que eu elevei a nós, mas nunca passou de somente tua. Amei a tua cor favorita, a tua bermuda de sempre, o teu lábio superior e o teu lábio inferior e cada beijo verdadeiro que você me tomou e nunca devolveu. Tudo em você era lírico, um dia você sentou comigo num banco de praça e contou uma história que alguém te contou, e só pelo fato de tê-la dividido comigo, aquela história triste foi a mais alegre de todas as histórias que eu já ouvi.
A primeira vez que Laura disse eu te amo, tinha 23 anos, estava abraçada com o namorado na cama, estavam nus e exaustos, então ela pensou que naquele momento não havia nenhum outro lugar no mundo em que gostaria de estar, sentiu um aperto no peito e as lágrimas escorrerem do seu rosto como se ela guardasse um segredo e fosse insuportável não poder dividi-lo, o apertou ainda mais contra seu corpo e disse... Eu te amo. Para ela aquilo foi muito mais do que se abrir, foi um grito de liberdade, um ato de rebeldia.
Eu não. Eu nunca disse...
E eu amei, amei os teus sapatos, a tua língua, o teu gosto, o teu corpo, a tua ereção, os teus péssimos modos, amei a tua mania de estalar os dedos e os teus dedos, todos eles. Tudo em você era libidinoso, um dia você me olhou da cabeça aos pés com minúcia, desejo, calma e desconforto, e eu olhei para os seus olhos que pegavam fogo, depois virou-se e saiu sem dizer uma palavra, sem me dar um beijo sequer, nem mesmo um casto, eu nunca contei a ninguém mas aquele olhar foi o melhor sexo da minha vida e nem precisou passar de apenas um olhar.
A primeira vez que Carolina disse eu te amo, tinha 27 anos, estava na sala folheando uma revista de moda enquanto o namorado assistia futebol com os amigos, e então o time deles fez um gol e ele comemorou com tanta avidez, que a notar a alegria que ele sentia ela se alegrou mais do que ele, pois se alegrou por ele. Ela então sentiu a necessidade de dizer, foi até onde ele estava e sussurrou em seu ouvido... Eu te amo. Para ela aquilo foi mais que uma constatação, foi uma verdade bonita, como poucas verdades do seu tempo.
Eu não. Eu nunca disse...
E eu amei, amei a cor do teu cabelo, o teu sorriso, a tua barba bem feita, a tua barba mal feita, amei cada uma das tuas conquistas, a tua voz, o teu silencio. Eu nunca fui um pouco tua, fui um pouco dele, um pouco daquele, tua não, tua eu fui inteira, completa. Tudo em você era realeza, você vestia branco e parecia um príncipe, vestia preto e parecia um príncipe, vestia nada e ainda parecia um príncipe.
Outro dia alguém me perguntou se eu já disse eu te amo... Eu falei que sabia o que não era amor e que isso me bastava para imaginar o que era. E imaginei... Mas a verdade é que nunca... Nunca fui Isabelly, nem Laura, nem Carolina. Fazia tempo que eu não lembrava... Eu nunca disse eu te amo. Eu nunca disse. Tiara Sousa

sábado, 8 de fevereiro de 2014

NO SHOW DO RAPPA ou QUASE FIM DO MITO DO AMOR NÃO CORRESPONDIDO

Dia 25 de Janeiro teve show do Rappa aqui em São Luís, mas como não é exatamente sobre o show que quero falar, não vou dizer que atrasou mais de duas horas, que eu não conhecia nenhuma das músicas novas da banda, que houve uma queda de energia ou sei lá o quê que interrompeu a apresentação, que Falcão (o vocalista) tirou uma mulher da plateia pra dançar e deixou não sei quantas mil se mordendo de ódio (incluindo eu), que mais uma vez conheci um carinha que achou que eu estava dando o fora nele quando ao pedir meu número eu disse que não usava celular, não que eu não estivesse dando o fora, mas porra, quando é que os homens vão aceitar que no século XXI, ano de 2014, há alguém com menos de trinta anos que resolveu passar um tempo sem essa grande invenção tecnológica, que o show lotou e eu tenho medo de multidões e que as pessoas pulavam e se empurravam e eu (constatando que estou ficando velha) desejei estar ouvindo as músicas na segurança da minha casa. Não, eu definitivamente não irei falar sobre nada disso.
Bem, mas pra começar a falar sobre o que quero, terei que introduzi-los a essa noite. Saímos todos num só carro, eu, duas amigas, um primo carioca de uma delas, e Mirelle, uma amiga de uma delas. Pois é, Mirelle nem gosta do Rappa, mas o carinha que ela gosta, gosta, então ela já tinha motivos suficiente para desembolsar 60 reais, e ir até lá. Com 24 anos, mas com um coração de 16, Mirelle se arrumou toda e chegando até lá fez cara de surpresa ao encontra-lo (e do topo da sua inocência ela jura que colou), foram logo se beijando e ela passou o show inteiro com ele. Eu e os outros ficamos mais próximos do palco e só voltamos a encontrar com Mirelle no fim do show, ela estava chorando, pois o cara a tinha deixado sozinha (devido ao seu choro público, confesso que inicialmente a julguei mal).
Já era mais de quatro da manhã quando na volta do show, o pessoal decidiu parar pra lanchar, encontramos um trailer e eu ainda atordoada com a multidão que tinha no show, decidi ficar esperando no carro, Mirelle muito triste também decidiu não descer, e foi então que ela me contou sobre o como estava apaixonada e como não era correspondida. Falou que sai com esse rapaz há mais de dois anos, que ele tem um filho que ela trata com muito carinho, que sempre que viaja traz presentes para os dois, que as poucas vezes em que ele foi a casa dela, seus pais o receberam muito bem, que ela faz de tudo por ele, mas que ele nunca a assumiu de fato, que fica com outras, não a trata com carinho, não demonstra consideração ou paixão, que ele faz ela se sentir um nada, e que isso a deixa muito triste, mas que é mais forte do que ela, e que por isso sempre acaba indo atrás dele, ou aceitando seus convites rapidamente, por que o ama. A medida em que ela falava se debulhando em lágrimas o meu pré-julgamento sobre ela ia se transformando em simpatia, e eu me revoltava contra ele, quando ela disse então que ele tem 35 anos eu juro que o xinguei mentalmente de termos impublicáveis, afinal, alguém com essa idade já tem o discernimento de saber o mal que causa.
Mirelle falava com todo aquele romantismo e esperança e tristeza e ingenuidade, e eu, numa altura dessas percebendo a menina por trás daquelas palavras, a inocência por trás de suas atitudes e a certeza mórbida que ela tinha de que aquela obsessão era amor, quis alertar Mirelle, dizer que todos (homens e mulheres) vivem essa fase juvenil e dolorosa de gostar de quem não gosta, de quanto mais maltratados, rejeitados, traídos, mais gostam, ou melhor, mais acham que gostam. Quis dizer que um dia não muito distante ela vai dar as costas a ele, que gostar de verdade é gostar que faz bem, e gostar que faz bem é o que tem feedback, que a maioria das vezes essa história de amor não correspondido é uma tardia ilusão adolescente que deixa jovens adultos com baixa auto estima e falta de vergonha na cara. Mas diante de tudo o que Mirelle imaginava que sentia, e que não doía menos por ser imaginação, seriam palavras jogadas ao vento (e eu prezo muito as palavras para desperdiça-las assim), ela precisaria viver e sofrer tudo isso completamente. Eu entendi dessa maneira, pois vendo aquela menina sofrendo dores das quais os conceitos ela ignora e para a qual não esta preparada, lembrei de uma outra menina, ingênua e destemida, aquela  que eu fui um dia, e então disse apenas que ela vai sair dessa e que melhor, vai aprender com essa. Ao ouvir minhas palavras Mirelle esboçou um sorriso de esperança, finalmente o pessoal terminou o lanche e seguimos para as nossas casas.
Quando cheguei em casa lembrei das lágrimas que caiam pelo rosto daquela quase desconhecida enquanto ela me contava a sua história, me perguntei se assim como aconteceu comigo, depois disso ela vai ter medo de se entregar, vai duvidar do amor e fugir muitas vezes do que sente. Temi que ela se transforme numa falsa fria como eu, que guarda o romantismo num baú e finge que sabe de tudo quando na realidade é só mais uma mocinha tola com medo de gostar de alguém pra valer e sofrer suportando o sublime do insuportável.
Pela primeira vez em muito tempo me desfiz da máscara de mulher forte que vinha usando até pra eu mesma, e chorei... Chorei por Mirelle e pela menina que eu nunca mais vou ser, que pior, tenho muito medo de voltar a ser... Chorei por cada traição, por cada desilusão, por cada perda, por cada sacana ordinário que foi me furtando pedaço em pedaço até me transformar nesse poço de medo e blindagem que atualmente as pessoas equivocadamente nomearam de mulher segura, madura, independente e altruísta.  Chorei pelos últimos tempos em que nem conseguia mais chorar...
Depois deitei invadida por um alívio súbito de quem lava a roupa suja de todos os corações partidos da humanidade sozinha, e pensei no lado positivo da minha história, do que um dia vai ser a história da Mirelle, de todas as histórias (amo lados positivos!). Me dei conta que as mesmas desilusões e decepções que nos fazem mais comedidos em relação aos romances também nos tornam pessoas que gostam de ser correspondidas e que naturalmente perdem o interesse por quem não demonstra interesse, claro que a primeira coisa que nos interessa em alguém continua sendo que tipo de alguém é, mas a segunda certamente é a reciprocidade. E pensando assim, me entreguei ao sono com a mesma singeleza e liberdade com que mais jovem me entregava a vida e aos sentimentos, e sonhei com o dia em que eu vou de fato superar isso tudo e deixar de ter medo. Sonhei pelos últimos tempos em que nem conseguia mais sonhar...
Ouvir a Mirelle me ensinou muito mais do que eu jamais poderia prever, pois não importa por quantas coisas já passamos, ou o quanto já sentimos, sempre temos algo a aprender, e naquela noite, daquele show, ela me ensinou que de vez em quando é muito bom olhar para trás e então por fim, ou melhor, por futuros começos se permitir seguir. Horas depois acordei, leve como a brisa da tarde que entrava pela janela do quarto, celebrando o dia, o tempo, a vida, cada experiência (mesmo as abomináveis), e sabendo que por trás de tudo aquilo o que fazia era comemorar o fato de agora eu ser o tipo de mulher que manda caras como esse (que a Mirelle jura que ama) á merda e ainda sai cantarolando... “Aiôa êê, aiôua, é!”. Tiara Sousa

domingo, 2 de fevereiro de 2014

BARULHOS DA CIDADE

Caminho pelas ruas... Caminhar nunca é reconhecido como uma experiência, a maior parte do tempo as pessoas caminham em busca de tudo, e tudo é quase sempre quase nada. Todos tem pressa, pressa de chegar ao trabalho, ao curso, a Universidade, ao encontro, ao lugar. A rua é sempre vista como uma passagem, um caminho, um meio. Mas a rua nem sempre é passageira. Por vezes eu não somente passo pelas ruas, deixo as ruas passarem... E enquanto elas passam o tempo é sempre o dobro do que é, e eu não espero que todos entendam isso, só alguns...
Às vezes o centro de uma cidade é toda a cidade, gente de todos os tipos, roupas de todos os modelos, sonhos de todos os tamanhos, às vezes não... Eu já conheci uma cidade inteira só de olhar o olhar de uma mulher sentada na calçada da sua casa simples num bairro do subúrbio, ou a maneira como as crianças correm atrás de uma bola num campinho qualquer, ou os sons dos vendedores ambulantes anunciando seus produtos nos centros comerciais, ou pelo modo que o rapaz de coração partido olhava pela janela do ônibus, ou pelo beijo apaixonado do casal adolescente na praça, que de tão atrevido e público e exibido, soava de uma inocência maior que a praça, maior que todas as praças.
Há uns meses atrás eu e uma amiga entramos num restaurante em Santiago no Chile e descobrimos que o garçom que nos atendeu, além de brasileiro, era maranhense, que assim como nós era de São Luís, ele conhecia os bairros em que morávamos e até tínhamos conhecidos em comum. A medida em que falávamos, ele, que creio já estava há um bom tempo vivendo por lá, acabou por não se conter de tanta emoção, e repetia freneticamente: “Que mundo pequeno! Que mundo pequeno!”, com as mãos para cima e nos olhando como se fossemos muito mais que duas estranhas, ali eu entendi que naquele momento éramos para ele nossa cidade inteira, e quem vai dizer que do topo da saudade que sentia do seu lugar de origem (tão diferente daquele em que estávamos), que aquele rapaz estava errado.
Caminho pelas ruas... A individualidade por muitas vezes é vista como algo ruim, eu gosto de individualidades, por momentos enxergá-las é poder levar nações pra casa, afinal, quem disse que toda filantropia é voluntária nunca flagrou as paisagens passando, os movimentos passando, as histórias passando, nunca transformou a rotina dos outros na sua eventualidade. O sol começa a se pôr, e a mulher trajando roupas finas, salto alto e bolsa de grife atravessa a Avenida em direção a garagem e nem percebe o espetáculo natural que a rodeia, a sua esquerda o sapateiro interrompe o trabalho para olhar para o céu, e eu deixo de olhar para o céu para olhar os olhos do sapateiro, porque eu poderei ver o sol se pôr muitas outras vezes, mas nunca mais numa quinta feira, num Janeiro, através dos olhos daquele sapateiro. Minutos depois a mulher vai embora no seu carro de luxo, lançamento da concessionária, recém comprado, o sapateiro volta ao seu trabalho, e eu sigo meu caminho, encharcada de comiseração, não pelo sapateiro, mas pela mulher, é dela que sinto dó.
E é sempre assim, todas essas ruas e avenidas e becos e gentes invadindo a minha imaginação, a minha consciência, os meus sentimentos, eu nunca as ignoro... Sempre me pergunto pelas pessoas que moram nesses lugares, pelos pés que ali pisaram, por quem construiu as casas, e por quem nunca encontra tempo de olhar em volta e para cima.
Há dias em que tudo me inspira, que todas as dores alheias tornam-se intimas, e eu sei que pareço lenta e distraída perto de toda pressa a ocupar os caminhos, e eu sei, muitos não compreendem. Não desejo a ninguém que como eu, possa conhecer cidades inteiras dentro de um olhar, pois imaginar assim é quase suportável, é quase descritível...
Não. Eu não espero que todos entendam isso, só alguns, alguns dos quais eu faço parte... Aqueles sempre mesmos alguns que enxergam o poema do asfalto, das tinturas gastas, dos telhados velhos, dos portões automáticos, das pessoas conversando, da natureza se exibindo, dos barulhos da cidade...
Caminho pelas ruas... E enquanto caminho, elas caminham por mim... Tiara Sousa