terça-feira, 19 de fevereiro de 2019

TENTE GOSTAR DE MIM


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Não sou delicada como uma louça. Não tenho o hábito de cruzar as pernas como as moças consideradas socialmente aceitáveis. Nunca em toda a minha existência cheguei num restaurante pra pedir um prato de salada, e me recuso a ficar duas horas no salão fazendo as unhas.
Não sei decoradas falas de grandes antropólogos, filósofos e cientistas políticos, costumo decorar poemas e números de Dellivery de Fast Food. Eu babo dormindo, e a minha barriga ronca mais que o normal, e pra completar, definitivamente acordo péssima, inchada, horrorosa, terrível, desfigurada. Acho academia um saco, e na boa, entre ter uma bunda malhada e um trio do Bob’s, eu fico com o trio. Uma bunda malhada vai satisfazer os olhares libidinosos de homens superficiais, o trio do Bob’s vai me satisfazer.
Acho fofo quem pega gatinhos abandonados pra cuidar, e de verdade, detesto vê-los sofrendo e sendo maltratados, mas eu particularmente não simpatizo com gatinhos, eles são tão carinhosos que é de dar agonia, gatões são mais a minha praia, se é que me entendem. Penso que os bois, as galinhas e os porquinhos deveriam poder ter uma vida longa e bonita, mas esqueço que penso isso quando chego num rodízio de churrasco e me deparo com uma picanha.
Sou fã da natureza, e mais do que isso a favor da conscientização das pessoas acerca da importância da preservação do meio ambiente, mas não se enganem, se ameaçarem cortar com uma serra uma árvore de 200 anos, eu não vou ser aquela moça massa que fica abraçada na árvore esperando a serra atingi-la, entre eu e árvore velha, sou eu né.
Quando busco meu filho na escola e ele me diz que tá morrendo de fome, logo me imagino na cozinha, ele provando o delicioso prato que preparei e elogiando a comida, mas só fica na imaginação mesmo, porque imediatamente me dou conta que comigo como cozinheira não tem como a comida ficar deliciosa, além do trabalho que vai dar pra preparar, então acabo parando no restaurante mais próximo ou indo a casa da minha vó, onde sempre tem um almoço legal esperando pela gente.
Sou uma romântica, do tipo que vê príncipes em sapos e assiste comedia americana emocionada. Gosto das histórias, dos olhares, das mensagens, dos beijos que de tão ansiosamente esperados, são inesperados, do sexo invasivo e genuinamente ébrio, que eleva a linguagem sem necessariamente precisar de uma palavra. Gosto da liberdade de querer estar presa sem estar presa de fato. Gosto da paixão, do encanto do início, do despudor do meio, e até da dor do fim, mas temo e sempre temi que o “pra sempre” seja um saco, real demais, que ele furte a possibilidade de lembrar de um romance com uma certa fantasia.
Gosto de gente, das complicadas relações humanas, do gosto amargo da humanidade, mas tem dias que acordo detestando gente e tudo que vem junto, e prefiro ler romances, assistir comedias, ouvir canções, escrever crônicas, mas ao fim do dia concluo que era tudo sobre gente, e me sinto limitada, porque são nesses dias que sou mais gente.
Tenho déficit de atenção, nunca sei onde estão minhas chaves, meu relógio, minha cabeça, minha sanidade, minha capacidade de me interessar por homens que prestem. Não sou do tipo que abraça, meiguice me dá enjoo. Já fiz terapia e conclui que ver o mar era mais eficaz, porque o mar é o lugar mais lindo e mais triste do mundo, e acho de verdade que a minha terapeuta precisava de terapia.
Quanto mais dirijo, mais detesto dirigir, sou viciada em nicotina, em analgésico, em antialérgico, em coca cola. Não sou de dizer muita coisa, me sinto confortável mantendo sempre uma distância segura do resto do mundo, sou ateia desde a primeira vez que cochilei numa aula de catequese, aos 9 anos. 
Não sou a mulher descolada que assiste futebol e fala palavrões, não sou a florzinha que diz que ama com os olhos marejados, não sou a exótica que senta embaixo de uma árvore e fuma um com a galera, não sou a gostosona que para o trânsito com suas formas cheias e curvas delineadas, e também não sou a que impressiona com discursos de assuntos em alta.
Já transei no primeiro encontro, já tive crise de ciúmes, já pré-julguei quem não merecia, já tive o coração partido e já parti corações. Sou mimada, individualista e adoro estar certa. Mas se apesar do óbvio, porque tudo isso é só o óbvio, vocês tentarem gostar de mim e chegarem mais perto, talvez acabem descobrindo porque uma vez por ano eu releio “O estrangeiro” de Albert Camus, porque gosto de vestidos e camisas, porque aprecio a solidão, porque todo fim de ano dirijo pela cidade a noite procurando pelas luzes de natal, ou a razão de eu ouvir tanto Chico Buarque, de usar o relógio com o mostrador virado pra parte de baixo do pulso, ou o que me encanta no Teatro, porque tenho tanto medo de portas abertas e me sinto mais à vontade entre livros, filmes e músicas do que entre pessoas, porque escrevo.
E aí, se vocês entenderem tudo isso e superarem o fato de eu preferir eu a uma árvore velha e esquecer da preciosa existência dos bois quando me deparo com uma picanha, talvez assim, vocês não precisem mais tentar e acabem realmente gostando de mim, pois nem mesmo o melhor dramaturgo, roteirista, escritor já criou um personagem que alcançasse a complexidade de um ser humano, então eu sou mais que isso, todo mundo é, e tá tudo certo, ninguém tem que fazer sentido. Tiara Sousa

segunda-feira, 11 de fevereiro de 2019

O FIM DO SILÊNCIO


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Ela costumava ler Silvia Plath quando ficava muito triste, pra lembrar que existiram saudades maiores, tristezas maiores, gente mais triste. E quando estava alegre se entregava a Fernando Pessoa e seus heterônimos, porque ele tinha o dom de descobrir estampas em tecidos beges, e ela gostava disso, mas fazia meses que ela não lia nada deles. E era a pele que doía.
Era menos difícil quando ele partia, não era fácil, mas era menos difícil, ela só precisava sentar na cama, pegar o notebook, abrir um energético e acender um cigarro, e as palavras vinham... pois ainda que lhe tirassem tudo, no fim ela ainda tinha as histórias, os sentimentos, o dom de ler o mundo como poucos, as linearidades, os comportamentos, as sugestões, as dores, o que estava trancado em cadeado. Ela entendia do ser humano mesmo conservando uma certa ingenuidade sobre o mesmo, e por isso se sentia solitária. Era como ser uma bailarina que não tinha pra quem dançar. Ela podia ler tanta gente, mas quase ninguém podia ler ela, porque havia em cada poro de seu corpo uma dor escondida, e ainda assim ela quase nunca se desesperava. 
Mas ele sempre voltava, como os pássaros ao fim do inverno, ele sempre voltava, e no fim do dia ela não entendia se isso era só a vida seguindo seu curso, ou se isso era ela permitindo que ele lhe tirasse mais um pouco. Então um dia, ela já havia perdido tantas partes, que dessa vez foi ela a mandá-lo partir, e quando ele tentava voltar, ela o mandava partir mais um pouco, deixando entre eles uma distância segura, onde só caberia mesmo o silêncio. 
Pra ela manter-se distante dele era como a fome. Ou a sede. Doía tanto, mas tanto, até ela esquecer que doía, porque sem a pele dele ali ela esquecia que tinha pele, e sem o corpo dele ali ela esquecia que tinha corpo, e sem o cheiro dele ali ela esquecia que tinha cheiro, e sem o som da voz dele ali ela esquecia que tinha voz. E doía a ponto de viver dentro dela torna-se inóspito, só que pra ela viver fora dela era como deixar de ser ela, era perder a identidade. Era como calar um grito. Não era calar, era sufocar. E isso bastou pra ela deixar de acreditar nas coisas que escrevia e perder as palavras, a ponto de não conseguir escrever mais nada, tropeçando na própria afronta, no próprio ego. Tornando-se um livro de capa magnífica cheio de páginas em branco, pois sem as palavras não lhe sobrava nada de inconsistente, além da saudade.
E a saudade é como o silêncio, porque não há saudade sem apreço pelo que está distante ou se perdeu, e ainda que a perda soe como uma escolha, nunca é. Afinal, pra que preencher um espaço vazio se o vazio ainda estiver ali? E não, não deveria haver nada de errado com o silencio. Não deveria. E só que ela já tinha perdido demais.
Ela deixou de observar a mágica entre os olhares, trabalhou, cumpriu horários, datas, compromissos, deixou de julgar superficialidades porque passou a se comportar superficialmente, chegou tão perto de se adequar a multidão que por fora estava tudo bem e por dentro quase morria de dor sem sequer se dar conta que estava doendo. Olhou em volta e de repente soava igual a todo mundo, mas ser diferente era e sempre foi o que a manteve sã. E então desabou. Fugiu pra onde sempre fugia quando nada sobrava, pra clausura, porque pra viver, ah, pra viver tem que ter coragem, e ela que sempre apreciou o silêncio, teve medo dele, porque sem as palavras ele não lhe servia de nada.
Até que numa quarta-feira qualquer, enquanto ela dobrava os seus shorts jeans, o barulho dos ensaios de uma escola de samba cujo a sede localiza-se na rua do fundo de sua casa invadiram, assediaram, corromperam o silêncio do seu closed, lhe parecia um barulho insuportável. Tentou ler, ver um filme, ouvir uma música, mas não dava pra fazer nada com o som daquela bateria por toda a casa, ela xingou, esbravejou, mas o barulho ainda estava ali, então se deu conta que se ela gritasse em meio aquele som estridente ninguém poderia ouvir. Deitou no chão do seu closed e gritou, gritou pelo fim do romance, pelo fim da inocência, pelo fim da paz, pelo fim da ilusão, por todos os desejos e medos e ausências e tons. Gritou pelo fim do silêncio, pelo fim do silêncio, PELO FIM DO SILÊNCIO! E tendo o grito abafado pelo som da bateria da escola de samba, ela começou a sentir um alivio imenso, e finalmente, chorou. Chorou voltando a se sentir aquela que é inadequada, que lê o mundo e a humanidade como poucos, que sente-se desconfortável na multidão, que nunca está completamente à vontade em lugar algum que não numa folha de papel ou documento de word, e que julga superficialidades, pois é estranha, insociável e solitária como uma bailarina que não tem pra quem dançar.
Sentou na cama, pegou o notebook, abriu um energético, acendeu um cigarro e as palavras vieram. E depois de meses de silêncio, escreveu. Ela escreveu sobre uma mulher que ao fazer o certo e pedir para alguém partir se partiu ao meio, tornando-se um livro de capa magnifica que se desaprendeu pra reaprender a preencher as suas páginas. Ela escreveu sobre ela e sobre como era o fim do silêncio. Feliz 2019 a todos os leitores, o Alternativo voltou! Tiara Sousa