segunda-feira, 11 de dezembro de 2017

AMOR MARGINAL

Enquanto o mundo caminha, e retrocessos castram, e crianças se desaprendem em discursos equivocados dos adultos, tem gente que ama, que ama filhos, mãe, pai, irmão, amigos, e gente que cruza o nosso caminho. Hoje, uma folha caiu, uma fruta amadureceu, uma criança nasceu, alguém cumpriu seu papel e história e faleceu e milhares de pessoas se apaixonaram, e só por isso, hoje, eu vou falar de amor.
Vinicius foi a primeira pessoa com quem falei quando cheguei na Universidade, subi as escadas, e da porta da turma onde eu iria assistir a minha primeira aula havia um aglomerado de novos alunos ansiosos por mais esse projeto de vida, e no meio deles, um rapaz negro, lindo, alegre, um garoto, quase 10 anos mais jovem que eu, que de longe eu soube que amaria e que me ensinaria alguma coisa. Ele foi o primeiro a falar comigo, ele era a extroversão em pessoa, eu preferia móveis que gente, ele tinha 17, eu quase 27, ele tinha sonhos, eu também, eu esperava um príncipe encantado, ele também... O dele chegou. Hudson é o nome dele.
A primeira vez que eles ficaram conversando por um bom tempo acabaram expulsos de um ensaio, ali eles descobriram que queriam se descobrir e entenderam o quanto eram opostos. Opostos, porque Hudson é timidez, Vinicius é extroversão, Hudson é organização, Vinicius é bagunça, Hudson é quarta feira de cinzas, Vinicius é domingo de carnaval, Hudson quer casa, Vinicius quer festa, Hudson quer despachar malas, Vinicius quer colocar mochila nas costas e sair por aí, Hudson quis Vinicius, Vinicius quis Hudson, e a partir daí todas essas diferenças ficaram pequenas, e pequenos ficaram também os obstáculos, os olhares preconceituosos, os julgamentos, as discriminações. Ficaram menores que um grão de areia, menores que o sentimento, menores que o primeiro beijo num Ônibus Campus 311, um beijo tão lindo e tão libertador que segundo Vinicius levou ele para o céu, e eu acredito nisso, afinal, o que há de mais alto e mais sagrado do que o inicio de um grande amor?
Mas nem tudo são flores, mesmo as histórias mais lindas tem sua carga dramática, e com esses dois belos rapazes não foi diferente. Vinicius era livre em muitos sentidos, e Hudson não tava completamente livre, mesmo assim eles tentaram, tentaram namorar, tentaram terminar, tentaram não namorar, mas quando se gosta tanto assim de outra pessoa não se consegue não ficar junto, e eles não conseguiram...
Um certo dia, logo no inicio dessa linda história que eles construíram, Vinicius comprou uma caneca de quadro negro e deu de presente a Hudson, que escreveu nela... - Eu acho que estou amando você. E não é que estava mesmo, e não é que estavam mesmo, porque desse dia em diante eles não se largaram mais... Juntos, eles atravessaram as manhãs mais divertidas, as tardes mais bonitas e as noites mais doces. Aprenderam que um abraço vale mais do que um grito e que aceitar o outro do modo como é, é das coisas mais lindas desse mundo. Vinicius comemorou quando Hudson ingressou no curso de enfermagem, mesmo sabendo que isso reduziria o tempo deles juntos, porque era o que Hudson queria. Hudson apoiou os projetos artísticos mais ousados de Vinicius, porque soube amar o que Vinicius ama, Hudson ficou livre pra Vinicius, Vinicius se prendeu a Hudson. Juntos eles estão descobrindo o verdadeiro amor. Juntos eles estão ensinando muitas pessoas sobre amor.
Porque coisas que são pequenas para muitos casais heterossexuais, pra eles são muito grandes. É grande demais apresentar os pais, é grande demais se beijar na rua, é grande demais aproximar as famílias. É grande demais cada pequena atitude de aceitação. Mesmo assim, eles comemoram cada pequena conquista, cada pequena atitude. Vinicius se emocionou quando a mãe dele separou uns livros de enfermagem pra ele levar pra Hudson, e cada vez que ela conversa com Hudson, o coração dele fica mais leve, ele sente mais paz. Ele se emocionou quando a tia dele disse que encontrou com o companheiro dele num local, porque ver a tia dele reconhecer Hudson como seu companheiro foi a parte mais bonita da semana dele. Coisas tão pequenas que se tornam tão grandes.
Atualmente, Vinicius tá fazendo mestrado em Florianópolis enquanto Hudson continua no seu curso de Enfermagem em São Luís. Eu sempre converso com Vinicius pelo Messenger. Outro dia ele me contou que Hudson foi visitá-lo lá e que foi lindo e emocionante o encontro deles. Ele já ficou de férias e chegou aqui em São Luís, dia 18 de dezembro eles comemoram 4 anos de namoro e do jeito que eles já usam até aliança de compromisso, acho que não vai durar muito tempo pra essa história virar casamento.

Mas eu publicar esse texto hoje, não tem nada a ver com o fato do aniversário de namoro deles estar próximo. É só que aquele rapaz negro, lindo, alegre, um garoto, quase 10 anos mais jovem que eu, que conheci no meu primeiro dia de aula e que de longe soube que amaria e que me ensinaria alguma coisa, vive uma história linda que as pessoas precisam conhecer, as pessoas precisam se permitir conhecer histórias lindas, porque como já disse, coisas que são pequenas para muitos casais heterossexuais, pra eles são muito grandes, são grandes porque tem muita gente que não entende de amor, porque tem muita gente que precisa entender de amor. Tiara Sousa

sábado, 2 de dezembro de 2017

DETESTO DEZEMBRO

Eu gosto daquela saia velha e colorida com a bainha gasta e com lembranças de um tempo em que eu não contava as horas. Hoje, eu e o meu relógio de pulso somos inseparáveis, é que pra lá da janela tem um mundo inteiro esperando que a gente se comporte como alguém da nossa idade, e a única coisa que eu queria desse mundo era a liberdade de poder desejar um trio do Bob’s, uma canção do Bob Marley e uma prateleira cheia de romances fúteis pra ler.
Já é Dezembro. De novo dezembro. Eu amo as luzes de Natal que iluminam a cidade, passo horas na frente do shopping olhando aquelas cortinas de lâmpadas e pego o caminho mais longo só pra passar pelas pontes e apreciar as iluminações natalinas, mas detesto a sensação que esse mês me trás de que preciso trocar a mochila por uma bolsa de couro cheia de zipers dourados, de que preciso doar todas as minhas havaianas e camisetas e comprar sapatilhas e blusas sociais, de que preciso superar o meu vício em cigarros e em analgésicos e em coca cola e em guloseimas e em homens encantadoramente complicados e me conformar com saladas de atum e quinoa, mesmo não fazendo ideia do que é mesmo quinoa.
Detesto dezembro porque toda vez que o ano chega ao fim começo a me perguntar até quando vou poder abrir a porta do quarto da minha mãe e fazer o maior drama por causa de uma dor de cabeça, uma dor de cólica, uma merda de alergia. Até quando eu vou poder pedir pra minha avó fazer aquele bolo que eu gosto, só porque eu gosto. Até quando vou poder ser bagunceira e pular em cima da cama e do sofá cada vez que tocar uma música legal na rádio. Até quando eu vou poder me dar ao luxo de escrever, mesmo sabendo que eu se eu quiser ganhar dinheiro mesmo, a melhor opção é o inferno de um concurso público.
Detesto Dezembro porque cada versão minha é mais antiga que a outra. Porque eu sou um vestido de 1999, sou o sabor do verão passado, sou um disco de vinil, sou a incapacidade de comer um cachorro quente sem sujar a mesa toda. Porque nunca me habituei a cruzar as pernas ao sentar, ou a perguntar a alguém se esta tudo bem sem realmente querer saber se esta tudo bem, ou a desfazer as malas pensando em como é um saco desfazer as malas. Porque há um gosto ácido na minha boca que me faz quebrar as regras, e nessas, eu sempre me quebro. Porque eu gosto de andar descalça e de contestar moralismos, porque sou medrosa e sonhadora e egoísta e mimada e egocêntrica e agridoce e dou o maior trabalho pra todo mundo que me cerca. Porque pra me entender tem que detestar Dezembro pelo menos um pouco.

Detesto Dezembro porque é Dezembro, porque é o fim de alguma coisa, e eu nunca me habituei aos fins. Detesto, porque não me conformo que anos no meu RG ditem quem eu sou, ou como devo me vestir, ou me comportar, ou até onde posso errar. Detesto Dezembro. Mas amo Janeiro.  Porque Janeiro é começo e me lembra aquela saia velha e colorida com a bainha gasta e com lembranças de um tempo em que eu não contava as horas. Porque me dá vontade de mandar o mundo inteiro pra lá da janela que espera que a gente se comporte como alguém da nossa idade ir se fuder, e porque é a melhor época pra se comer um trio do Bob’s, pra se ouvir uma canção do Bob Marley e ler todos aqueles romances fúteis da prateleira. Tiara Sousa

sábado, 25 de novembro de 2017

LEIA-ME ou COMO FOI “ARREBENTAR MUROS SOCIAIS” COM O REOCUPA NA FELIS 2017

Nunca consegui me acostumar ao mundo. Foi a primeira coisa que pensei quando subi no palco do anfiteatro Beto Bittencourt no dia 15 de novembro para participar do evento “Arrebentando Muros Sociais”, promovido pelo Reocupa, na Felis 2017- Feira do livro em São Luís. Tratava-se de um debate sobre poesia marginal, eles trouxeram duas escritoras do Slam das minas de São Paulo, e me puseram ali no meio delas, com o propósito de colocar três mulheres, três escritoras, três pretas, num debate em torno da poesia e literatura à partir do estilo marginal.
Logo que cheguei para o evento, me apresentei a Deuza Brabo e ao Kadu, que são do Movimento Reocupa, de lá a Deuza me levou ao encontro da mediadora do debate, a atriz Nilce Braga, uma moça muito bonita, simpática e inteligente que carregava um turbante na cabeça e que não sei porque me deixou com a impressão que o Continente Africano inteiro morava nos olhos dela, e foi a impressão mais bonita que tive na noite. Não demorou muito até que chegassem as estrelas do debate, a Mel Duarte e a Luz Ribeiro, enquanto elas se aproximavam com aqueles cabelos exuberantes, e aquelas roupas maravilhosas e as peles negras mais lindas que já vi a olhos nus, e tão bem maquiadas e seguras que me fizeram sentir vergonha de me debruçar sobre o fato de agora que sou uma balzaquiana me sentir a vontade pra me transtornar com a possibilidade de uma primeira ruga, um primeiro pé de galinha, um culote que seja, de ficar medindo a queda de colágeno no meu braço, na minha bunda, na minha barriga, nas minhas pernas, no espaço entre a minha axila e o meu ombro... Por ser o tipo de mulher que é obcecada por Albert Camus e acha que toda canção de Amy Winehouse cabe facilmente como trilha sonora da minha vida, e por nunca ter superado o fato de que aos nove anos deixei uma menina estúpida roubar o meu papel de cartas favorito (e não, não é que eu seja rancorosa, é que o papel de cartas era dos ursinhos carinhosos).
Enquanto conversávamos, as quatro, ali paradas num canto do Anfiteatro, fumando nossos cigarros caros e acertando a melhor forma de abrir a mesa ao público, pensei que no momento em que as escritoras que iriam compor a mesa de debate conheciam a cidade eu ficava na sombra de uma árvore pra não sofrer, e no momento que elas se vestiam pensando nas paisagens e nas pessoas que conheceram ali eu colecionava silêncios e desfazia as minhas utopias enquanto me vestia pra sair.
Por volta das 18 horas, nos dirigimos até próximo do palco pra que cada uma entrasse recitando um texto ou poema seu, a Mel foi a primeira a subir no palco e enquanto eu a observava ali tão segura e confiante e me tremia toda de imaginar que pela próxima uma hora e meia eu iria ter que falar ali para um público grande, perdi o ar e me perguntei o que eu estava fazendo ali, não me fiz essa pergunta pelo evento em si, porque era maravilhoso e eu fiquei muito feliz com o convite, mas sim porque sou o tipo de pessoa que gosta de solidão e traja sempre o avesso do apropriado, porque eu não sou sociável, simpática ou extrovertida, e acho que todo o caos é pelo menos 80% mais interessante que o marasmo, porque passo horas olhando para o teto em busca da droga  do teto, e todos os caras que já passaram pela minha vida tentaram mudar alguma coisa em mim, fosse o meu gosto por camisas largas, a minha indisposição em fazer as unhas, o meu desprezo por batons vermelhos, e cor de rosa, e marrom, e de qualquer cor existente na face da terra, fosse os meus penteados equivocados, os meus poemas favoritos ou a minha eterna mania de deixar as coisas mais urgentes para o ano que vem.
Comecei a falar nervosa, mas depois relaxei, eu, a Mel, a Luz e a Nilce falamos para aquele Anfiteatro cheio, coisas sobre ser mulher, negra escritora e sobre como os marginalizados socialmente podem transformar as coisas com uma caneta, um papel e um microfone, mas no fundo nós estávamos falando era de amor, e creio que nos fizemos entender. Recitamos algumas coisas que escrevemos e que fazia alusão ao assunto em pauta e nos despedimos. Ao sair do palco senti um alívio imenso, a mesa foi muito legal, instrutiva e agradável mas eu não conseguia parar de pensar no fato de que não é o palco que me agrada, são os bastidores, que sou melhor e mais feliz escrevendo do que falando e no quanto seria mais fácil viver sem que os olhos das pessoas que me assistiam e me ouviam falar me atravessassem. É que aceitar realidades não é coisa de gente sonhadora, e a ilusão não cabe em cálculos, e eu não sei gostar mais ou menos, sorrir mais ou menos, chorar mais ou menos, doer mais ou menos, existir mais ou menos. É tudo tão inteiro por aqui por dentro que ás vezes cabe uma multidão inteira numa frase que escrevo e às vezes eu sou a primeira dessa multidão a me despedaçar.
Ao final da mesa, e depois de falar com algumas pessoas, tirar algumas fotografias, receber alguns elogios e dar uma entrevista, saí dali... Apressada, entrei no carro e dirigi até a minha casa, passei pelo terraço, pela sala, pela copa, pela cozinha, pelo corredor e finalmente entrei no meu quarto quase correndo, quase sem fôlego, sentei na cama, acendi um cigarro, abri o notebook e escrevi... Nunca consegui me acostumar ao mundo. Depois saí e fui lanchar com umas amigas. É que falei bastante aquela noite, mas o que eu precisava mesmo era de dez segundos de silencio pra escrever essa frase, porque todos os meus eternos e todos os meus fins estão em palavras escritas, e os meus protagonistas serão sempre os marginais, marginalizados, como a atriz de turbante com olhos de África, as poetas do Slam das Minas com ares de protesto, os desbravadores do Reocupa , e eu, tentando me acostumar ao mundo. Tiara Sousa


quinta-feira, 2 de novembro de 2017

LADO B

Direitos da imagem: Site Recanto das letras
Ela disse que o gosto dele ainda estava na boca dela, e eu senti dó dela, porque gostos são para ser passageiros, se não dia ou outro amargam. Ela estava triste porque até as bainhas das saias dela lembravam ele, e todas as cores eram as cores da pele dele, e ela preferia perder tempo com ele do que ter todo o tempo do mundo. A saudade que ela sentia transitava por cada osso de seu corpo... Doía crânio e maxilar e mandíbula e clavícula e escápula e costelas e úmero e esterno e coluna e ulna e rádio e ítio e carpo e metacarpo e fêmur e ísquio e púbis e patela e tíbia e fíbula e tarso e metatarso e falanges... Cada droga de osso gritava o nome dele! Ela quis chorar, mas parecia fraca, e a fraqueza muitas vezes é uma dose de whisky barato com o único propósito de afogar as mágoas, e sem propósito algum.
Ela disse que nunca amou assim... Tanto! Assim com os poros abertos e expostos, assim com as células inflamadas e com a garganta inflamada e com as articulações inflamadas e com a sensação de que o mundo inteiro pra lá da janela estava apertado para o que ela sentia. Assim de quatro e por cima e por baixo e de perto e de longe e de fora e de dentro, e de muito dentro. Ela contou as feridas dele, porque eram maiores que as dela, é que as feridas dele doíam mais nela. Ela roeu as unhas e tentou amar uma causa, uma paisagem, uma canção, mas toda causa era ele, toda paisagem era ele, toda canção era ele. E ela foi ficando menor diante da impressão de que cedo ou tarde todos na rua seriam ele. Ela diminuía diante da lembrança de uma dobrinha que ele tinha do lado esquerdo do pescoço, e quase sumia enquanto olhava o banco de madeira em que ele gostava de pôr os pés. Ela banalizava os desejos alheios e superestimava tudo o que ele tocava enquanto tocava nela.
Ela disse que via os sussurros dele; Via, porque ouvi-los nunca foi suficiente. Disse que ouvia os olhares dele; Ouvia, porque vê-los era cru demais. E às vezes ela recordava por horas que ele apertava a mão dela sempre que ela queria desistir de alguma coisa, é que alguma coisa nela tinha certeza que todas as vezes que ela quisesse desistir a mão dela iria doer um pouco de uma saudade muita, é que doer um pouco é muita coisa quando se espera ansiosamente por essa dor.
Ela disse que o que acabava com ela não era a falta da presença dele pelos móveis da casa, nem mesmo o torpor que se tornou o seu cotidiano com a distancia dele, ou o cheiro de sexo que ele espalhou pelo corpo dela e esqueceu de juntar depois. O que acabava com ela era a escova de dentes velha que ele deixou na pia do banheiro, eram os fios de cabelo dele no pente dela, era a camisa que ela comprou pra dar de presente a ele e que acabou nunca conseguindo entregar. O que acabava com ela era uma sensação insistente e recorrente de que entre o Até logo e o Mais tarde havia um fim.
Ela foi a puta dele... E a santa. Foi o sagrado... E o profano. Ela foi a mania que ele tinha estalar os dedos sempre que estava entediado, foi a risada maldosa que ele soltava cada vez que alguém usava um termo estranho pra falar de algo comum, ela foi a mentira que ele contou pra justificar um atraso na primeira em que eles foram juntos ao cinema, foi o tesão que ele guardou pra ela na última vez que eles se amaram, foi a tentativa dele de disfarçar o olhar de desejo que direcionou a mulher de biquíni que passou ao lado deles na praia. Ela foi ele. E ela foi dele. E ela não fazia ideia de como deixar de ser.
E quantas mulheres já não foram ela... E quantas vezes já não fomos ela... E por quanto tempo ainda seremos ela... Foi o que eu pensei. Tiara Sousa

segunda-feira, 23 de outubro de 2017

O ÚLTIMO SHOW DO RAPPA ou INEXATA

Era o último show do Rappa, e eu só conseguia me lembrar do meu primeiro... Lembro que eu tinha 19 anos, que a minha saliva tinha sabor de novo, que eu me sentia meio perdida entre os jovens que ocupavam aquele espaço e a sensação de que entre o meu fêmur e a minha carne haviam mágoas demais para uma jovem mulher. Aquele show foi foda, porque só ali eu compreendi que não importava a multidão que me cercasse, nenhuma tribo era a minha, nenhuma dor que eu tivesse poderia ser dividida, nenhum mundo a ser alterado, nenhum tesão a ser constante, e que tudo bem, não tinha que ser diferente. Só ali no meio daquela quantidade enorme de pessoas esperando pra ver a mesma banda que eu esperava, e ouvir as mesmas músicas e lamentar pelo mesmo caos, eu entendi que quanto mais gente tivesse mais sozinha eu me sentiria, e eu achava que era porque eu era muito diferente de todo mundo ali, afinal fui eu que sempre cultivei um mundo particular em que só cabiam ilusões desmedidas e em que toda realidade era massacrante, mas não era bem isso, não era porque eu fosse tão diferente ou especial ou genial ou foda ou sensível, eu sempre fui capaz de me sentir sozinha na multidão ou numa mesa de bar, ou numa classe, ou num palco, ou num abraço, ou nos braços de um homem, ainda que eu amasse esse homem, na realidade quanto mais eu amava, mas sozinha eu me sentia nos braços dele.
Eu entendi. Não era por eu ser diferente, é por que eu sou inexata, sempre fui, e acho que sempre serei. É porque esperar de mim doses de mim é esperar em vão, é que eu moro nas rebeldias mas não falo aquelas línguas, é que a minha pureza é subversiva e eu gosto de protestos em vão, é que ainda que soe contraditório eu não uso batom e saltos e roupas provocantes porque gosto de ser vista, e me interesso pelos defeitos dos outros mais do que pelas qualidades, é que a minha humanidade é tola e eu nunca realmente acreditei num Deus, e onde há espera eu sempre fui inesperada, e amor nenhum nunca me roubou de mim. Eu sou inexata porque construí cercados para os meus cercados e me entreguei a homens sem nunca realmente me entregar, porque sempre questionei altruísmos e acreditei em egoísmos, porque imperfeições me comovem e tudo que passa do ponto me atrai. Eu sou inexata porque os orgasmos duram pouco e sempre me senti a passageira de um trem fora dos trilhos, é que há entre a minha garganta seca e a minha unha encravada algum poema barroco de Gregório de Matos que ironiza nossos mais relevantes aspectos sociais. Eu sou inexata porque a minha veracidade é torta.
Mas dessa vez, nesse último show eu já tinha consciência da minha inexatidão, eu olhava as pessoas ao redor, e eram tantas que observando ao longe ficavam pequenas, e pensando no exercito das formigas lamentei pela humanidade. Uma amiga comentou durante o show que reparou que do primeiro show que ela foi pra esse a idade das pessoas era maior, porque eram as mesmas pessoas só que o tempo tinha passado pra nós e pra elas, ao ouvir o comentário dela, eu desisti por alguns minutos de olhar para o palco e olhei para os olhos dos outros, porque eu sempre achei que nos olhos é que moram os maiores estragos do tempo, e eu gosto dos estragos do tempo, porque só eles me dão a dimensão do que é insensato e do que é necessário, mas tudo o que encontrei ali, naqueles olhares, foram as consequências das paixões que tivemos, das crianças que geramos, dos sussurros que deveriam ser gritados, e que continuaram sussurros, então voltei novamente os meus olhos para o palco, e cantei junto com o vocalista e com as pessoas mais uma canção, porque de onde venho letras e melodias são entorpecentes que cedo ou tarde chegam nos meninos e meninas adolescentes cheios de acnes e desejos que eles ainda nem compreendem.
Saí daquele show, do último show do Rappa exatamente como eu saí do primeiro, querendo ficar sozinha pra me sentir acompanhada... Na saída do show recebi uma ligação num celular que não era meu, porque o legal de não usar celular é que as ligações recebidas em celulares alheios são mais inesperadas e inconstantes, era um rapaz que conheci há pouco tempo e que nunca consegue me encontrar, e acho que tem um mês essa novela, mas ainda não era o dia, eu realmente precisava chegar em casa e ficar só, multidões quase me apavoram... No caminho de volta eu e mais cinco amigos decidimos terminar a noite numa lanchonete da Madre Deus, comendo guloseimas e conversando sobre coisas como o porque da Rua do Passeio se chamar Rua do Passeio e do quanto todos nós somos meio como o Tuco, personagem do antigo seriado A grande família. Depois fomos embora, eu cheguei em casa, sentei no terraço, acendi um cigarro e sozinha sorri lembrando da noite e das conversas na lanchonete, dos nossos gritos e pulos durante o show, do nosso amigo contando que a Rua do Passeio só tem esse nome porque ali era o caminho onde antigamente passavam com os mortos em direção ao cemitério e era o último passeio que eles davam, sorrindo da minha amiga dizendo na mesa da lanchonete que todo mundo já sentou no sofá da sala pra assistir A grande família e ficar criticando o Tuco, o filho que passava tempo e mais tempo e nunca saia da aba dos pais, mas que no fim das contas nós todos somos Tucos, lembrando do rapaz que ligou no final do show querendo me encontrar e que mais uma vez não conseguiu e do quanto ainda que sem planejamento eu devo estar sendo difícil pra ele que é um gatinho e que não deve estar habituado a isso, sabendo que o que fica desse último show, e do primeiro e do segundo é o que sempre fica, lembranças bonitas de gente que assim como eu deve ter sua dose cavalar de inexatidão. Depois terminei o cigarro, levantei sentindo muita dor nas pernas de tanto pular (é que esse não era o primeiro show e eu não tenho mais 19 anos), e caminhei até o meu quarto satisfeita com o último show do Rappa, cantarolando aquela música deles... “Valeu a pena ê ê, valeu a pena ê ê, sou pescador de ilusões, pescador de ilusões”. Tiara Sousa

quarta-feira, 18 de outubro de 2017

DEPOIS DA MEIA NOITE

Imagem retirada do site http://en.tubgit.com
Nada como uma cidade depois da meia noite pra gente descobrir um monte de coisas que estão bem na nossa cara ao longo do dia, mas que não enxergamos porque estamos atrasados pra escola, pra Universidade, para o trabalho, porque estamos cheios de compromissos e sonhos e esperanças e frustrações e dores e saudades e desejos e invenções, porque não nos permitimos nem olhar para o céu ou para os olhos de um amigo, de um amor, porque estamos sempre muito ocupados com as nossas dores pra avaliar que viver é um desafio tão intimo quanto coletivo.
Mas a madrugada te mostra muita coisa... Os postes iluminam as ruas e só as dores alheias importam, a alegria parece de vidro, mas eu que quebro ao perceber que não há fantasia alguma além dos prédios altos que ornamentam as proximidades das orlas. Porque depois da meia noite coisas que fariam tanto sentido durante o dia de repente não fazem sentido algum. Lembro de chegar a uma casa de shows na semana passada pra assistir uma noite de canções de Chico Buarque e enquanto esperava o cantor iniciar a noite e os músicos afinarem os instrumentos, sentada numa mesa ao fundo com uma amiga, acabei percebendo... O casal ao lado, sem sentido; O garçom simpático, sem sentido; O tesão explicito do garoto de 20 anos, sem sentido; Os olhares curiosos dos dois homens sentados numa mesa atrás da nossa, sem sentido. Observar é a melhor e a pior coisa que alguém pode fazer consigo.
Nada como uma cidade depois da meia noite pra gente descobrir um monte de coisas que estão bem na nossa cara ao longo do dia... E eu descobri...
Descobri que a parte mais salgada do mar é aquela na qual você não consegue chegar, porque ela é mistério. Descobri que a maior saudade que pode existir é a saudade da gente mesmo, que as flores só murcham tão rapidamente porque as maiores belezas moram no efêmero, que a minha vizinha de 77 anos nunca vai passar dos 20 e que as incertezas são certezas travestidas de medo e moral.
Descobri que viver é tão difícil quanto excitante, que a gente só se esconde dos olhares que deveriam nos intimidar mas não nos intimidam, que as reações mais verdadeiras são aquelas que não transparecem, que as ilusões são as facas que ficam guardadas no fundo das gavetas do armário de cozinha e que com o tempo vamos esquecendo de amolar.
Descobri que eu sempre vou gostar das boas histórias mal contadas, porque só elas vão atiçar a minha imaginação, descobri que os olhos do meu filho nunca para mim irão deixar de ser olhos de criança, tenha ele a idade que for. Descobri que eu sempre vou abrir o guarda-roupa na expectativa de ver aquela camisa velha do Flamengo que eu não uso nunca, porque ela me lembra de um tempo em que eu enxergava o mundo melhor.
Descobri que toda dor, medo, ódio, mágoa é menor, é sempre menor do que um único segundo de felicidade. Descobri que sempre vou achar que os salões de beleza são um saco, que sempre vou preferir havaianas a salto alto e achar que os melhores seres humanos são aqueles essencialmente imperfeitos. Descobri que as verdadeiras promiscuidades são aquelas feitas em nome da moral e dos bons costumes, e que a diretora da época do meu ginásio é uma falsa moralista do caralho.
Descobri que o moço que passa vendendo frutas todas as manhãs na rua em que mora a minha avó e que não estudou nas escolas que eu estudei, nem fez as viagens que eu fiz, nem leu os livros que eu li, nem frequentou as baladas que eu frequentei tem mais grana do que eu e boa parte dos meus amigos nesse momento e que ele é um cara tão legal, que ele merecia muito mais.
Descobri que aquela menina branquinha, cheia de sardas, que estudou comigo na 7ª série e que ficava zoando o meu cabelo cacheado, dizendo que ele era muito cheio e feio e que atrapalhava a visão dela na turma e que muitas vezes fazia eu voltar pra casa triste, não tem atualmente, e nem nunca teve um quinto da minha beleza, da minha inteligência e da minha sensibilidade, e que ela sempre soube disso.
Descobri que num mundo de tantos equívocos há paredes a serem pintadas, obras a serem concluídas, bolos a serem assados, histórias a serem contadas, vidas a iniciarem. É que o tempo continua seguindo o seu curso imaterial, é que enquanto a minha vizinha de 77 anos nunca deixar de ter 20 ainda haverá cidades em que depois da meia noite da pra gente descobrir um monte de coisas que estão bem na nossa cara ao longo do dia, mas que não enxergamos. Tiara Sousa

terça-feira, 10 de outubro de 2017

UM TEXTO SOBRE VOCÊ

Imagem do Site silviarita
Me dei conta que já escrevi alguns textos para você, mas que nunca escrevi um texto sobre você (o que não é natural, já que eu escrevo sobre o cotidiano mais do que sobre qualquer outra coisa, e você durante muitos anos foi parte do meu cotidiano), então lá vai...
Você não sabe amar. Não sabe. Nunca em todos os seus anos de vida você chegou perto de saber amar. Porque o amor não é só aquele papo de você é minha, de comedia romântica, de declaração, de crise de ciúmes, de ouvir uma musica e pensar, de assistir um filme e lembrar, de ficar namorando as fotos antigas, isso eu sei que você já viveu, todos vivemos. Amor é sobretudo aquele outro papo de... Toma cuidado, olha ao atravessar a rua, deixa uma sobra desse olhar pra eu poder seguir com segurança, briga comigo porque se importa, vê como eu tô sendo ridículo e me aceita mesmo assim. Essa coisa que a gente é capaz de sentir por um filho, por uma mãe, por um irmão, por um amigo. Mas você desconhece tudo isso, você não sabe e nem nunca soube amar. Mesmo assim você me amou, eu sei, pode acreditar.
Eu lembro que nós fazíamos de conta, você me olhava torto e eu entendia as suas neuroses, você me aconselhava e eu corria as minhas carnes, o meu corpo doía e a sua alma sempre machucada por conta de alguma cena que eu escrevia pra você viver. E você tentava me dizer o que fazer ás vezes. Como eu julgava o fato de você não perceber o mundo que eu queria compor e mesmo assim precisar de mim! Os tijolos da sua casa pareciam frios e o meu espelho velho me dizia nada. Era difícil ser eu, e ás vezes eu tinha a impressão que só você entendia isso, porque ser você também era muito difícil. Você ás vezes cuidava de mim, às vezes enchia o saco e caia fora, depois ligava e os seus telefonemas me entrertiam e me consumiam, era difícil qualquer um nos entender, era fácil a gente se entender.
Lembro que nós fazíamos que éramos infames, é que eu já sabia que quando você contava de mim pra alguma mulher, ela seria importante, e eu do seu lado dizendo ao namorado da vez que tava com uma amiga, eu tinha medo de dizer que era um amigo e ele não compreender que o que tínhamos era fora do corpo, que no que tínhamos não existia corpo. Você me contava o seu dia, eu analisava os perigos, éramos crianças em corpos de adultos quando você me buscava pra irmos tomar banho de mar nos dias 31, só porque eu achava que esse era o dia certo, e eu também sempre achei tão bonito o fato de você nunca ter questionado isso.
Lembro que você sorria pra mim, tinha medo de me tocar e eu não entender, e eu não entenderia mesmo. Você me dizia que eu tinha que maneirar nas palavras, e o que você queria dizer mesmo era “toma cuidado, as pessoas julgam tudo, elas irão julgar as suas palavras mais sinceras”, e eu te achava tão sensível que as vezes era eu quem chorava. E você contava das mulheres, dos amores mal resolvidos, parecia inseguro e eu dizia o quanto você era bonito, mas você nunca acreditava. Você tinha paciência para os meus porres, minhas musicas velhas e mornas e até as minhas amigas mais comuns. Eu não, eu só tinha paciência pra você, e olhe lá, ás vezes eu queria escapar. Eu julgava os seus amigos, tentava ser amiga das suas paixões, mas elas me abominavam só por eu ser eu, elas entendiam melhor do que você a importância de uma amizade. Você escondia os nossos telefonemas dos seus casos, eu escondia os nossos lanches dos meus, a gente se despedia e eu ficava entre os meus livros, as minhas novelas, as minhas crônicas e um carinha qualquer, você ouvia reggaes e fazia de conta que tava tudo bem, e amava alguma mulher que te deixava louco.
Mas muita coisa aconteceu e a gente se partiu, porque ainda que com idades tão próximas, eu preciso crescer e você precisa rejuvenescer, eu preciso jantar á luz de velas e receber flores e você precisa de um bom hambúrguer com batatas fritas e de um Heavy Metal. Se partiu porque a gente precisa conhecer outros mundos e eu preciso assimilar decepções que sejam minhas, e só minhas, e você precisa aceitar o mundo dos outros. Se partiu porque você colava na escola enquanto eu colecionava papéis de cartas, porque eu me acho o máximo e você se distorce e consequentemente acaba distorcendo as pessoas, e se ferra com isso, porque muitas vezes você está certo com as suas análises, mas isso não as torna menos cruéis, e nem significa que você está sempre certo. E o mesmo serve pra mim, só que em doses femininas e poéticas.
A gente se partiu porque você se habituou aos fins, aos pontos finais, e eu tentei te mostrar as reticências, mas você tem medo de ter medo, e eu, eu sou intima dos meus medos. Se partiu porque você é alheio a encantos, eles te assustam, porque você é um papel pardo em meio a um monte de papéis laminados, porque eu extravio e você absorve, e não faz ideia do quanto suas aventuras estão distantes de tornar-se a transgressão que você tanto precisa. E eu não, eu já nasci transgredindo.
A gente se partiu porque você gosta de ser machucado, gosta de se perder em meio a aparências, gosta, mesmo abominando tudo isso, e eu também. Se partiu porque a solidão te aterroriza e eu gosto de solidão, de olhares que despem, de gente inconstante, e você teme tudo isso. Se partiu porque você constrói fábricas para os seus sentimentos e eu derrubo castelos para os meus, porque na maioria das vezes você trepa pra poder se apaixonar, e eu na maioria das vezes me apaixono pra poder trepar, porque você suporta sonhos e eu suporto realidades, porque você ignora visitas e eu as expulso, porque você late e é mordido, porque você teme não ser amado como é e apesar dos erros que comete e eu me habituei a ser amada assim. A gente se partiu porque além de todas as nossas já citadas compatibilidades e incompatibilidades aconteceu uma grande amizade que você reduziu a mais uma de suas análises.
Eu nunca escrevi sobre você porque em meio a tantos caras que já protagonizaram as minhas crônicas mais sentidas, líricas, sensuais e poéticas você não se encaixa, esses caras me tiveram nos braços, nos lábios, nos corpos, me fizeram delirar de apaixonada e sentimentalizar cada gesto e atitude, mas nenhum desses caras chegou perto de me conhecer inteiramente, e você não, você era bem mais importante, você era o cara a quem eu contei das minhas viagens e com quem eu fiz viagens, a quem eu falei dos meus romances, e das dificuldades e felicidades da minha vida, você era o cara pra quem eu torcia pra que encontrasse a mulher mais massa de todas e que por ela fosse correspondido e respeitado, a quem eu seria a madrinha de casamento e os filhos me chamariam de tia, e isso era tão grande e tão desprovido de qualquer impureza que não cabia em mais um texto semanal. Mas hoje, depois de tantos textos eu finalmente escrevi sobre você, não porque você tenha deixado de ser esse cara, não é isso, mas porque só hoje me dei conta do quanto a gente se partiu. Só hoje acordei com um cinzeiro cheio de pontas de cigarros do meu lado e percebi que nenhum desses cigarros foi fumado enquanto eu conversava com você. Tiara Sousa

domingo, 1 de outubro de 2017

NUDEZ – Sobre a interação de criança com artista nu em MAM

Imagem do site Paraná Online
Ele nasceu nu, nu de corpo, nu de alma, nu de nu. Nus nós nascemos, e assim conseguimos permanecer por um tempo, mas o primeiro choro, o primeiro riso, a primeira palavra, a primeira peça de roupa vai nos cobrindo, vai nos poupando de nos encarar e encarar o outro sem os modos convencionais, a educação formal, o refinamento, o estilo construído, a superficialidade. Nós só nos cobrimos pra esconder os males aos quais o mundo nos introduz, os padrões inalcançáveis, preconceituosos e rasos que nos são impostos, a vergonha que nos é ensinada e nunca natural, e a Arte quer desconstruir tudo isso. Pois a Arte não quer cobertas, a Arte derruba as cortinas, a Arte fala mal dos confinamentos, a Arte é livre. Não sei o que chamam de maldade, de pedofilia, de fim da infância, não sei, porque o meu coração é comunista, habita na foice e no martelo, tem sede de igualdade, ás vezes ladra, ás vezes é mordido, não entende de moralismos, entende de moralidades. E a minha moralidade diz que a nudez é só nudez, tocar alguém nu, olhar alguém nu, não desperta por si só líbidos, um pênis é apenas um pênis, todo homem tem, todo bebê do gênero masculino tem, toda criança do gênero masculino tem, todo o resto é equívoco de mentes promiscuas, de ignorâncias, de influenciadores que tentam e ás vezes conseguem convencer que um corpo nu é mais do que apenas um corpo nu.
Aproveitem esse nosso tempo, esses novos tempos e essa quantidade de informações que nos é derramada por segundo, e desconstruam e desprendam-se da ideia de que a nudez é promiscua, não é, não tem que ser, a promiscuidade mora em certas mentes, a nudez é só um corpo despido, nada mais. Não tentem destruir infâncias com as suas ideias tolas, ignorantes, preconceituosas e infames. Por favor, meu filho frequenta redes sociais, então tomem cuidado com o que falam e como julgam, não destruam a infância do meu filho, dos seus filhos, dos filhos dos seus amigos dizendo a eles que um corpo nu é mais do que um corpo nu, não é, você tem um corpo nu, eu tenho corpo nu. Atos de natureza sexual, atos promíscuos, pedofilia, abuso é outra coisa.
Vocês, educadores, artistas, trabalhadores braçais, estudantes, façam um favor a vocês e a sociedade, não comprem essas ideias equivocadas que castram a Arte, que castram as infâncias, que transformam momentos puros e nus em ideias erronias de orgia. Estudem, leiam, enxerguem, ouçam, desenvolvam, conheçam, o fato de alguém estar nu não significa que há algum ato libidinoso, nudez é só um corpo sem roupas. Se é Arte ou não é, decidam, se apreciam ou não, percebam, se lhes toca ou não, questionem, mas tenham a certeza que não há promiscuidade num corpo despido de roupas, estejam certos que a promiscuidade está em vossas cabeças ignorantes e influenciáveis, e lembrem-se, a Arte é livre inclusive da maldade e das intenções duvidosas de quem a interpreta de modo incompleto e incoerente.
Há alguns meses dirigi um monólogo cujo o ator despia-se completamente em uma das cenas, infelizmente no dia da apresentação meu filho tinha aula e não pôde comparecer, mas ele assistiu ao ensaio geral, e assistiu outras apresentações artísticas com nudez, e a infância dele está intacta, lúdica, bela. Sabe porque? Porque ele nasceu nu, eu nasci nua, você nasceu nu, quando tomamos banho ou nos trocamos, ou nos secamos estamos nus, e nenhum desses atos tem natureza sexual. São apenas corpos. É apenas nudez. Tiara Sousa




sábado, 23 de setembro de 2017

BANG – A GENTE NUNCA CRESCE

Precisei chegar aos 32 anos de idade, ver meus ex casarem com mulheres menos belas, inteligentes e complicadas do que eu, ver a crise econômica se instalar no meu país, ver uma presidenta ser arrancada do cargo por uma quadrilha, ver meus amigos homossexuais serem taxados de doentes em pleno ano de 2017, ver o pôr do sol em Punta Del Este e em Coroatá (e concluir que o de Coroatá é mais bonito), ser mãe aos 18 anos e adolescente aos 30, ser traída, ser usada, ser aplaudida, amada, odiada, discriminada, infinitamente bem comida, infinitamente mal correspondida. Ler teorias da comunicação e Shakeaspeare no mesmo intervalo de tempo, ouvir a Nona Sinfonia de Bethoven e Bang de Anita (adoro essa música), precisei de tudo isso pra entender uma coisa bem pequena, Freud, meu caríssimo, genial, fodástico Freud, não explica porra nenhuma. Chico Buarque de Holanda, que é o maior ídolo que tenho na vida, não explica porra nenhuma. Brecht, que foi um acontecimento em muitos e geniais sentidos para o Teatro e para a Literatura, não explica porra nenhuma. Ninguém explica. Quem quiser entender alguma coisa que viva e sobreviva e compreenda sozinho.
Na quinta-feira, voltando com a minha amiga da balada (adoro essa palavra, faz eu me sentir tão jovem), concluímos que a gente nunca cresce, sabe a tua avó, aquela senhorinha meiga e curiosa que já viu muito, passou por muita coisa, teve perdas irreparáveis, teve ganhos também, você deve ser um desses ganhos, pois é, a tua avó também não cresceu. A gente aprende, desaprende, aprende um pouco mais, perde o brilho da juventude, o tônus muscular, a memória exata do primeiro beijo vai ficando embaçada, o colágeno então, filho da mãe, esse é o primeiro a começar a ir embora, perde flores que murcham antes de estarmos preparados para ausência delas. Em compensação a gente ganha, a gente ganha novas memórias, de novos beijos, a gente ganha filhos (Tem ganho mais lindo? Tem não), a gente ganha laços, ganha cicatrizes, a gente ganha tranquilidade emocional pra aceitar quando as flores murcham, ganha conhecimento e novidades. Mas a gente nunca cresce.
A gente nunca cresce porque toda alegria é pela primeira vez, toda tristeza, toda paixão, todo ódio, todo amor, todo sexo, toda dor, todo fim, é pela primeira vez. É sempre pela primeira vez. O olhar sobre os acontecimentos pode até mudar, quase sempre muda, mas sentimento é sempre novo, é sempre inebriante, estarrecedor, único, informal, perigoso, vivo, muito vivo. A gente nunca tá preparado e isso é tão ruim, e isso é tão bom.
Quando eu tinha 9 anos, no primeiro dia de aula do que na época chamávamos de 3ª série (agora é 4º ano, até isso mudou), uma professora chamada Claudete me perguntou o que eu iria ser quando crescesse, eu respondi que ainda não sabia. Faz um bom tempo que estou atrás de Claudete, que atualmente deve estar na casa dos 50 anos e ainda deve ser a ótima professora que sempre foi, é que eu quero dizer a ela que agora eu já sei a resposta pra essa pergunta. Professora Claudete que lecionou na escola Centro Educacional Colméia no ano de 1994, se você estiver lendo isso agora saiba que a minha resposta pra o que eu vou ser quando crescer, é que eu nunca vou crescer, que vou sempre sentir como aquela garotinha de 9 anos a quem você deu aula e ensinou a escrever seus sentimentos num diário, nada mudou dentro de mim, só por fora que tem muita novidade, um dia eu te conto, sei que vou te encontrar com outra aparência, mas não tem problema, conto assim mesmo, aparências não me enganam, tenho certeza que você também nunca cresceu, e não foi Freud quem me explicou isso, ninguém me explicou, eu entendi... A gente nunca cresce. Tiara Sousa

sábado, 16 de setembro de 2017

BASTIDORES

Imagem retirada do site A Escotilha
É a sétima vez que tenho esse mesmo sonho, isso já tem dois meses, exatamente o mesmo sonho.
Nele eu caminho pela rua, mas a rua só existe pra mim, para o restante das pessoas ela é uma ilusão, como se fosse um cenário montado num palco de um teatro qualquer do subúrbio de uma cidade caricata em que tudo é comum. E atrás desse palco, olhos. Sem camarim, sem métrica, sem figurino, sem pintura. Neles, uma crueldade sensível, dessas que só encontram raramente e em pessoas que não importa a conjuntura familiar, já nasceram sem lar e sem rumo, ainda que dentro de um lar cheio dos melhores sentimentos e intenções.
Dessas, que são o próprio subúrbio, sem os hábitos, os modos, a liberdade despretensiosa, mas ainda assim o subúrbio, de tudo o que te disseram que era coerente ser, e ás vezes desconheço esses olhos, que são castanhos, escuros, pequenos, daqueles que num sorriso quase se fecham, ás vezes não, ás vezes esses olhos são meus.
Tento encontrar esse palco, e os olhos atrás desse palco, influenciada talvez pelos filmes da sessão da tarde que assisti na infância quase creio ser possível, imagino uma máquina do tempo que me leve ao tempo dos outros, aqueles para a qual a rua ainda é uma ilusão, aqueles que enxergam o cenário, o palco, os bastidores. Confusa, massacrada e violada pela espera de uma máquina do tempo que não chega pra me tirar dali, do meu tempo, corro sem direção, mas não há nada, então dou de encontro com um homem lindo, aos meus padrões é claro, o que lhe confere ser um tanto desleixado, com um modo incompleto de olhar, ele parece se questionar sobre alguma coisa, talvez sobre a vida, a economia ou alguma mulher desinteressante e comedida, talvez uma dessas novas feministas que saem por aí apenas de sutiã vermelho e militam em redes sociais, e só de pensar que esse tipo de mulher pode ser quem rouba os sentimentos e pensamentos dele, me calo, desisto de pedir ajuda, perco o interesse ainda verde e continuo a caminhar...
Canso, resolvo sentar num banco de cimento velho e quebrado numa praça em que crianças fingem ser crianças, como se ainda fosse possível ser só isso num mundo tão afetado e disforme, na minha cabeça uma música de Marisa Monte e uma carta que nunca escrevi, um e-mail que nunca enviei, uma paixão platônica da pré-adolescência e o “Estrangeiro” de Camus. Olho em volta e a rua continua a mesma, real, sem cenário e sem palco, e continua só existindo pra mim, e continua sendo apenas uma ilusão para todo o restante das pessoas, e então eu tento chorar, mas não consigo, e me desespero pela conclusão que o tempo não volta e que vai continuar sempre assim, tudo real.
Então acordo. Abro o notebook e num site de buscas, tento encontrar o significado desse sonho, mas não encontro, nunca encontro, nenhuma das sete vezes, o meu impulso é ficar estática, deitada na minha cama esperando despertar, com medo de levantar e ir até a rua e perceber que assim como no sonho ela é real, porque se ela for real vai deixar de existir dentro de mim, e vai fazer sentido, e coisas com sentido me atordoam. Mas não sigo meu impulso imediatamente, levanto corajosamente lembrando que os mais velhos e mais sábios costumam dizer que a gente só aprende na dor, que só na dor crescemos e somente diante dela entendemos as coisas, então decido sair, tomo banho, me visto, mas cada vez que olho pela janela o mundo é um lugar pior, e assustada acabo ficando, pensando nesse sonho repetitivo e incomodo, pensando na rua que vejo, e no cenário, no palco, nos bastidores que não encontro... Concluindo que a arte é tímida, se expressa pelos becos escuros dos subúrbios manchados de sangue e suor do povo, que o palco é a manifestação da arte, e que a arte meus caros artistas, trabalhadores, intelectuais, apreciadores... A arte é os bastidores, os olhos sem camarim, sem métrica, sem figurino, sem pintura, olhos que podem ser seus e que podem ser meus. E então compreendo tudo, sobre esse sonho que me diz que a rua é uma ilusão para todos e que apenas eu a enxergo como real. Compreendo tudo... Esse sonho que se repete é o efeito do tempo sobre mim, é que ás vezes eu acho que acordei de todos os meus sonhos, e só de achar isso, acordo de muitos deles. Tiara Sousa

sexta-feira, 10 de março de 2017

A HIPOCRISIA QUE É FICAR MAIS VELHO

Imagem do site https://www.megapixl.com
Tenho 9 anos e sou apenas mais uma garotinha esperando que o pai a ame mais que o mundo e que a mãe dê mais atenção a ela do que ao trabalho, meu penteado se resume a duas tranças horrorosas que a minha tia fez com todo carinho, acho que nunca terei a sensível capacidade de compreender como se consegue fazer coisas tão horrorosas com tanto carinho. Estou sentada assistindo aula de logaritmos numa sala de uma escola burguesa, eu sou a única preta da turma, sou a única com essa tranças horrorosas, sou a única escrevendo poesia ao invés de copiar a aula, sou a única pensando na rachadura do meu banquinho preferido que fica na cozinha da minha casa, sou definitivamente a única imaginando que os logaritmos são células cor de abobora fantasiadas de dias nublados pra desfilar numa escola de samba no carnaval, ninguém mais se parece comigo, nem por fora e nem por dentro, por isso ás vezes prefiro sentar sozinha num banco no parquinho na hora do recreio ao invés de ir brincar. Tem uns quinze minutos que eu não entendo nada do que a professora tá falando, há uns meses atrás ela e as diretoras chamaram a minha mãe pra uma conversa, disseram que eu vivia no mundo da lua, que era muito calada e pouco sociável, que eu parecia fazer questão de não me encaixar e que um acompanhamento psicológico seria de grande ajuda para o meu desenvolvimento intelectual e social, minha mãe me levou a psicóloga, depois de diversas sessões voltou a escola com um papel que dizia que tudo o que eu tinha era um QI alto e que meus problemas de sociabilidade deveriam ser superados com a contribuição didática também da instituição de ensino, bem feito pra escola, agora a professora tá tendo que me aturar, e o pior é que eu gosto da escola e gosto da professora e adoro o fato de ela ter que me aturar.
Tenho 18 anos, estou sentada num barzinho chamado Bagda Café com o meu pai e mais um monte de amigos, estou tomando uma cerveja e falando coisas engraçadas, quem diria que a menina que eu fui um dia, isolada, hoje estaria cercada de gente, sorrindo, conversando e brincando, agora esse é o meu recreio, e dessa vez eu participo da brincadeira, enquanto tiver sob o efeito do álcool eu posso ser tudo o que esperam de mim, o problema é que eu esperava outras coisas de mim. O namorado da vez também tá sentado, ele parece preocupado comigo, como se eu fosse de vidro e pudesse quebrar, mal sabe ele que eu já nasci quebrada, não tem nada em mim inteiro com exceção dos sonhos e parece que a qualquer momento eles também quebrarão, porque tenho visto tanta coisa que tá ficando difícil acreditar no mundo que eu inventei, um mundo onde a dobradiça da porta esteja em sintonia com a havaiana que esqueci no meio da sala e a sala esteja em sintonia com o roteiro do filme da sessão da tarde e a sessão da tarde esteja em sintonia com os meus desejos mais oblíquos e infantis. E que nada nunca tenha que deixar de ser exatamente como acontece na minha imaginação, um mundo perfeito, em que nenhum nó seja cego e tudo possa ser desfeito com princípios e eloquências agradáveis.
Tenho 20 e poucos anos, estou num paraíso de cidadezinha no meio do nada, encontrei um camping legal pra ficar, tenho alguma grana, muita vontade de esquecer do que era pra ser e acabou não sendo e a vista mais bonita da cidade, mas sei que não vou ficar muito tempo por aqui, meu filho tá me esperando pra crescer comigo e eu entendi desde a gravidez que pra eu crescer preciso tá perto dele também. Hoje vai ter uma balada onde todos os turistas vão estar, já me arrumei e não vou perder, fiz amizade com uma galera de Fortaleza, da Colômbia, da Dinamarca, da Alemanha e da Argentina, eles são divertidos e parecem estar tão perdidos quanto eu, já saquei que vou acabar me apaixonando por alguns deles e escolher um vai ser a parte mais difícil do meu dia, é legal quando a parte difícil do dia é a mais fácil do ano, então acho que já comecei bem, depois vou dormir numa barraca com o som dos pássaros e a vista das estrelas e do mar, aqui não tem TV, internet, jornais e nada que me afunde na realidade, somente eu, culturas diversas e a distancia efêmera de tudo, acho que não vou sair daqui a mesma, e talvez eu tome um banho de mar quando amanhecer.
Tenho 31 anos, quase 32, tem duas horas que espero o momento em que eu consiga me sentir livre sem analgésicos, ou que a inércia não me faça voltar varias vezes uma cena de filme ou seriado que eu goste só por precisar daquela sensação, passei a usar mais sutiã e vestir menos branco, abandonei o celular descarregado e trincado em algum canto da casa, conclui que não precisava mais dele quando ele me deixou no momento que eu mais precisava, discuti com uma das minhas melhores amigas antes de antes de ontem, a gente sempre discute assim umas duas ou três vezes ao ano, geralmente eu não discuto com ninguém fora do meu período de TPM, não é da minha natureza, eu acho, mas tudo bem discutir com ela, porque provavelmente ela está entre as dez pessoas mais diferentes de mim no mundo e contraditoriamente ela também está entre as dez que eu mais amo, e eu sou egoísta demais pra compreender a generosidade dela e intolerante demais pra admitir que talvez ela só quisesse ajudar. Li três livros no último mês, era pra ser cinco, dois eu desisti, assisti uns dois seriados, fumei umas trinta carteiras de cigarro, nunca mais liguei a TV, me apaixonei por alguma coisa ás 15 horas da terça-feira, e nas 7:30 hs da quarta eu já não sentia mais nada, perdi as duas chaves do carro num intervalo de dois meses, perdi as duas chaves de casa no mesmo intervalo, perdi 7 quilos, sou boa em perder, mas tá tudo no lugar, o meu quadro das três meninas de costa olhando alguma coisa que nunca vou deixar de imaginar o que é, no lugar; Os meus vestidos longos, no lugar; A minha mochila preta, no lugar; Os meus olhos e pele e saliva e vagina e orelhas e ego e coração e dedos e cérebro, no lugar... É um saco essa minha vitória tão arduamente conquistada de estar a um bom tempo sem dar o fora de mim, e tudo isso não quer dizer muita coisa, além do quanto há hipocrisia em se ficar mais velho.

Porque no decorrer da vida vamos nos transformando num resumo clichê das auto versões que deixamos pelo caminho, e não importa o quanto a gente aprenda, quebre a cara, vire jogos, ensaie modos ou se enquadre nos padrões sociais, no que esperam de nós e no que nos dizem que é ser maduros, a nossa versão principal será sempre aquela mais antiga da qual se tem lembrança. E eu ainda sou a menina de 9 anos que não consegue se encaixar, e pior, que detesta ter que se esforçar todos os dias pra se encaixar, ainda espero que o meu pai me ame mais que o mundo e que a minha mãe dê mais atenção a mim do que ao trabalho, e na única lembrança que tenho de logaritmos eles são células cor de abobora fantasiadas de dias nublados pra desfilar numa escola de samba no carnaval. Tiara Sousa

domingo, 19 de fevereiro de 2017

A TRISTEZA DE VERISSA

Imagem do Site
www.tuttartpitturasculturapoesiamusica.com
É Sábado, 18 de fevereiro de 2017, e Verissa disse que tá triste, muito triste, triste assim de um vazio imenso, melancólico, profundo, utópico, fantasioso, quase real. Eu disse a ela que tô mais fudida do que ela e comecei a recitar todos os meus problemas, ela nem estranhou a minha reação, me conhece tão bem que já espera esse tipo de coisa, sabe que eu sou presunçosa, pretensiosa, presumida, imodesta, arrogante, metida, esnobe, vaidosa, egocêntrica, enfatuada, afetada, cabotina, todos esses sinônimos, e ela sabe que mesmo na tristeza profunda melancólica vazia e chata dela eu iria dar um jeito de ser a protagonista, nem que pra isso eu tivesse que discursar minutos a fio sobre as mazelas da minha vida.
Perguntei a Verissa o motivo de tamanha tristeza, ela disse que era uma tristeza assim desmoronante, e que ela não conseguia encontrar um motivo pra ela, eu lembrei de um seriado antigo, monótono e infantil que eu assisti há uns anos e depois assisti novamente e provavelmente ainda irei assistir mais algumas vezes, porque ele filosofa e é triste e é inerente aos incomuns, então logo a questionei se não era algum seriado que ela tava assistindo, ela disse que não, e naquele momento detestei o fato de não conseguir explicar a tristeza dela mais do que detestei o fato de ela estar triste, talvez porque na minha mente insana fossem a mesma coisa, então me empenhei na missão infantil e tola de encontrar o motivo daquela tristeza, porque eu gosto de ter as respostas e porque se não as encontrasse, iria ter que admitir que num mundo de tantas guerras e fomes e dores e injustiças e corações partidos ainda existem tristezas sem motivo, e eu não queria pensar assim, porque se eu pensasse assim iria doer em mim, e eu amo detestar dores generosas.
Então depois de muito pensar e refletir longamente por uns 30 segundos, anunciei a ela que eu já sabia o que havia sido, e eram os três dias que ela estava sem me ver, que a minha ausência infame causa esse efeito nos meus amigos, e que ela ficasse melhor que logo iria me encontrar. Mas ela respondeu: kkk, e eu fiquei puta, Verissa poderia ter dito... É mesmo Tiara, deve ser saudade de ti, mas ela tinha que conseguir com três letras dizer que não era a minha ausência e ainda tirar uma onda com a minha cara, e eu pensando que os meus amigos se contorciam de saudade com a falta das minhas infinitas distorções de tudo. Mas eu não desisti tão fácil, Verissa não é de se abrir muito e se ela falou que tava triste, triste assim como uma fotografia démodé de uma artista vintage, era porque tava mesmo, e eu precisava de um porque, talvez mais que ela, afinal se eu ficasse intima da tristeza dela eu poderia sentir com ela, e quem sabe até sentir por ela, e nisso eu não tava sendo egoísta, eu acho.
Então comecei a dar minhas versões mirabolantes do que teria causado aquela tristeza, porque se não era seriado, e não era a minha ausência, tinha que ser alguma coisa. Meus palpites foram, a sociologia, ela disse que não, então falei se não seria falta de guloseimas, ela disse não, comi lasanha mais cedo, fiquei puta novamente, eu tinha comido torrada enquanto ela comia lasanha e não tava triste assim, que porra de tristeza poderia ser essa, nem perguntei se era algum cara, se não tava triste por falta de fast foods não era um homem, por mais gato, inteligente e viril que fosse que iria deixa-la assim. Minha cabeça já tava rodando, então resolvi dar conselhos do que não fazer quando se está triste, porque eu já fiquei triste assim, assim de doer na clavícula e sair nos olhos, assim de 7 a 1 em cima do Brasil em plena Copa do mundo, assim de cheirar a roupa do ex procurando pelo ex, assim de escovar os dentes querendo dormir e dirigir querendo dormir e transar querendo dormir e sorrir querendo dormir e até dormir querendo dormir, então certamente meus conselhos deveriam valer de alguma coisa, e eu comecei... Primeiro, saia, evite ficar em casa, a nossa casa é um lugar tão nosso que lá ser triste é mais fácil do que ser feliz; Segundo, não assista, ouça ou leia nada profundo, nada que te emocione, que te faça refletir; E finalmente... Terceiro, coma doces, o doce engorda, estraga os dentes, causa doenças, mas não existe nada mais eficaz do que eles nessas horas, ela disse então que já tinha feito tudo isso, mas que a tristeza continuava ali, na cabeceira da cama e na cama, na escrivaninha e na TV, no edredom e no furo no vestido velho, na saliva amarga e no amargo de tudo, e como eu tenho o hábito de visualizar todas as coisas que me dizem em cenas esdrúxulas, de repente eu pude ver a tristeza de Verissa, e mesmo eu soando assim tão insensível aos olhos comuns, eu pude senti-la por dois segundos e meio, e foram os dois segundos e meio mais abomináveis desde 1985.
Porque a tristeza de Verissa não deveria ser dela, dela não. Ela vê o mundo cor de rosa, por isso ela tem aquelas tranqueiras rosas espalhadas por todo o quarto, é a bruta mais doce que eu conheço, e ninguém no mundo é encantadora e irritadoramente mais inconstante do que ela, pois só ela sabe ser Caetano Veloso na segunda e Wesley Safadão na terça com a mesma paixão e empenho, sabe detestar gente e amar ir ao bumba meu boi, sabe acordar na sua linda casa no Calhau e dirigir até o Anel Viário pra tomar café da manhã, e quem mais além dessa moça é tão convencida a ponto de citar Freud como se estivesse citando um colega de turma, e tem milhões de partes dela que são só dela e que ela jamais vai dividir com ninguém, e gente assim não deveria ser triste nunca, nem mesmo nos sábados a noite quando todo mundo fica meio triste, nem mesmo sem motivo, nem mesmo assim.

Mas claro que eu não disse nada disso a ela, eu poderia ter dito, mas aí como iria ficar minha velha e boa fama de má, então não disse nada, liguei cinco minutos depois e perguntei se não eram gases, ela sorriu, e certamente me conhecendo como só amigas se conhecem, entendeu que aquela era a minha maneira de dizer... Conta comigo, tô aqui pra ti, eu posso ser presunçosa, pretensiosa, presumida, imodesta, arrogante, metida, esnobe, vaidosa, egocêntrica, enfatuada, afetada, cabotina, todos esses sinônimos, mas na tua tristeza eu serei sempre protagonista pelos motivos nobres, porque ela também é minha, e eu daria tudo (menos meu carro, meu notebook novo, meus vestidos acima de 200 reais, meus livros, meus CD’s, minha TV e principalmente aquela pulseira de palha que tu trouxeste da Colômbia pra mim) pra ser mesmo apenas gases e passar logo. Tiara Sousa

segunda-feira, 6 de fevereiro de 2017

OUTRAS DORES

Imagem do site http://sentimentosdaevinha.tumblr.com/
Tenho uma dor no osso da perna direita desde os meus sete anos, e tenho uma dor ainda pior no osso da perna esquerda desde meus cinco, elas já estão aqui há tantos anos que semana passada quando elas não apareceram, senti que tava faltando alguma coisa muito importante, e não gostei. Me habituei a essas dores, porque quando eu tô sozinha, sozinha mesmo, sozinha de gente, de bicho, de TV, de internet, de livros, de músicas, de vícios, são essas dores que me fazem companhia, e elas me são tão familiares e recorrentes e antigas e espaçosas e incomodas e interessantes, que na semana que elas desapareceram eu jurei que nunca mais ia ficar assim, sozinha de tudo. É claro que era mentira.
A gente se habitua as mais inusitadas coisas, eu por exemplo me habituei a essas dores e a um monte de outras dores, algumas que doíam tanto que eu nunca identifiquei o lugar exato onde elas habitavam. Não faço ideia de como seria a vida sem dor, acho que ninguém faz, é só que as pessoas não tem o hábito de admitir isso.
Na minha infância costumava ir a feira com a minha avó, eu e a minha prima concorríamos pra decidir quem iria em determinado domingo ser a companhia dela na feira, era um programa péssimo, muita gente, muito barulho, muitos cheiros, eu detestava aquilo, mas eu queria ir todos os domingos, porque depois de fazer todas as compras dos alimentos, a minha avó usava os últimos trocados e me deixava escolher alguma coisa do armarinho da feira, geralmente eu escolhia uma presilha de cabelo ou um anel de plástico, voltávamos pra casa caminhando, com aquelas sacolas pesadas, e muito cansadas, mas sempre valia a pena por causa daquelas lembranças. Mais tarde, já adulta, eu fiquei tentando entender porque ganhar aquelas coisas era tão importante, já que dentro das possibilidades da minha família eu tinha tudo, a melhor escola, os melhores brinquedos, as melhores roupas, porque tanto sacrifício por aquelas bobagens baratas, cheguei a conclusão que não eram as lembranças, nunca foram, era o olhar da minha avó enquanto me dava elas. Muita coisa mudou desde aquele tempo, minha avó não vai mais a feira, ela tem 80 anos e sua idade já não lhe permite, eu não sou mais criança, as presilhas de cabelo saíram de moda e consequentemente dos armarinhos das feiras, e os anéis de plásticos já não cabem nos meus dedos, e todos os domingos quando a minha mãe acorda cedo pra ir à feira com a minha tia e fazer as compras da minha avó, ás exatas sete horas, eu sinto a dor de não sermos eu e a minha avó a irmos à feira, mesmo ela ainda me olhando daquele mesmo jeito cada vez que me dá algo. E esse é o tipo de dor que se um dia passasse ia me fazer uma falta imensa.
Soa um tanto destrutivo que dentre tantas coisas no mundo, os seres humanos ainda sintam falta exatamente das dores, de algumas delas pelo menos, não posso falar pelo resto da humanidade, mas as minhas dores são guardadas em caixas imaginárias junto com as suposições do que eu teria sido ou de como estaria hoje sem elas. Por isso elas fazem falta de vez em quando, e por isso gosto de tê-las por perto, é porque sem elas toda a minha formação estaria condenada ao fracasso e eu jamais seria a mesma. Provavelmente pareceria mais sábio dizer aos mais jovens que fujam das dores, das físicas e emocionais e daquelas que de tão emocionais transfiguram-se físicas, mas não é. As dores são pra ser aproveitadas, contempladas, revisitadas, impróprias. A dor do primeiro amor, e do último; Do adeus, e do até mais; A dor de inventar uma dor pra se refazer de uma ainda pior, a dor da ilusão despida e da realidade coberta, a dor de saber que nada nunca volta, e que nada nunca é como deveria ser. A dor é pra ser desfrutada, como a pele que desfruta do sol.
Essa semana a dor no osso da minha perna direita, aquela que tenho desde os sete anos, voltou. E a dor no osso da minha perna esquerda, aquela que tenho desde os cinco e que é ainda pior, também voltou. Poderia estar me lamentando, afinal nada se compara ao desprazer de uma dor reavivada, mas não, eu apenas fico aqui, sentada, usando o gel e o analgésico de sempre, porque a primeira vez que as minhas pernas doeram eu me desesperei, hoje não, hoje elas podem doer a vontade, já sei que passo por elas, que sou maior do que elas. É assim a vida... Depois que a gente passa pelas dores a primeira vez, a gente descobre que quanto maior a dor, maiores nós nos tornamos enquanto passamos por ela. E no fim das contas, nem é da falta da dor nos ossos das minhas pernas que eu tava falando, mas acho que todo mundo que já doeu assim tanto, assim com o cabelo, com os dentes, com os dedos, com a palma da mão, com os olhos, com a nuca, com a alma, já sabe, já percebeu, que definitivamente eram de outras dores que eu falava. De outras dores. Tiara Sousa

segunda-feira, 30 de janeiro de 2017

#QUEMNUNCA#FODA-SE#EDAÍ

Quem raios nunca utilizou uma hashtag na vida, fez um textão no Facebook, postou algo e se arrependeu? Quem jamais transou numa barraca, dormiu numa rede ao ar livre, saiu com uma mochila por uma cidade estranha procurando um lugar barato pra dormir? Quem em nenhuma hipótese fez amor na praia ou entrou de penetra numa festa? Quem nunca tomou um porre e despertou ao lado de alguém que por acaso era o alguém certo, ou o errado? Quem nunca mandou todos os padrões de beleza inalcançáveis à merda, pôs um biquíni mínimo e expôs gorduras, estrias, flacidez e celulites numa praia lotada e ainda assim fez ao menos uns trinta homens babarem? Quem nunca beijou mais de alguém numa mesma balada, deixou o namorado de boca aberta ao ser a primeira a pedir a luz acesa, saiu por aí com os seios balançando porque sutiã aperta, transou na mesma noite que conheceu um cara ou deu uma de mocinha só pra dar uma de mocinha, deixou de guardar um segredo? Quem nunca deu uns amassos no banheiro do bar, furou uma fila, xingou um juiz de futebol, mandou alguém ir tomar no meio do seu *, passou meses sem fazer as unhas só por preguiça? Quem de modo algum contou ou sorriu com uma piada de loira, de preto, de gay, de gordo, de português? Quem nunca gargalhou com a queda de alguém, quem jamais ferrou com tudo, ou derrubou um copo cheio de suco numa mesa toda arrumada? Quem não se questionou no caso de encontrar uma mala cheia de dinheiro, se devolveria ou não? Quem nunca discutiu sabendo que estava errado e querendo parecer certo, chifrou o(a) namorado(a), vestiu uma roupa nada a ver e só se deu conta de que ela era nada a ver tempos depois olhando uma foto? Quem jamais quis aparecer? Quem nunca mentiu?
Quem em nenhuma hipótese fez ao menos metade das situações citadas acima? Quem em nenhuma hipótese julgou de maneira pública ou privada alguéns que já tenham feito algumas das situações citadas acima? Quem em nenhuma hipótese foi julgado por ter vivido alguma das situações citadas acima? QUEM?
E daí! Se a garota bela, recatada e do lar, não é tão recatada e do lar assim, se ela fala palavrões ou senta errado, ou usa saias menores do que a sua mãe aprovaria. O que importa pra quantos caras ela já deu se agora o único cara pra quem ela tá dando é você? E daí! Se o cara tem um gosto estranho pra filmes, se ele gosta de música ruim e se diverte jogando vídeo game. O que importa que ele tenha sido um galinha a vida inteira se agora ele é só seu e ainda é ótimo de cama?
Foda-se que o seu melhor amigo tenha olheiras imensas e a sua amiga do peito seja meio vadia (sim feministas da última estação, eu usei a palavra vadia). Quem nunca teve uma amiga vadia? Quem nunca foi a amiga vadia? Foda-se que fulano de tal seja insociável e cicrano seja sociável demais. Nada disso faz de alguém um sociopata, um psicopata, um intolerante, alguém impossível de conviver. Ninguém, absolutamente ninguém é uma foto de perfil na Rede Social ou apenas o que diz na Timeline. Fala sério né, tá todo mundo cansado de saber que na Rede ou na vida social a gente quer parecer mais bonito, mais inteligente, mais criativo, mais dentro dos padrões que nos encantam do que realmente somos.
Ninguém é tão interessante assim, tão admirável assim, tão culto assim, tão genial assim, exceto Chico Buarque, mas convenhamos, ninguém além de Chico Buarque é Chico Buarque.
Parem de tentar ser os detentores da sabedoria, parem de defender com unhas e dentes e moral e bons costumes o que na maior parte do tempo vocês nem praticam, parem de assumir personagens pra ser mais interessantes aos olhos de uma tribo ou outra. Eu nunca conheci ninguém que fosse uma coisa só. Ninguém é só hiponga, só alternativo, só ambientalista, só politizado, só esquerda, só direita, só MPB, só música sertaneja, só vegano, só carnívoro. A garota hiponga assiste Big Brother, e daí! O cara alternativo detesta o cheiro de maconha, e daí! O ambientalista passou as férias em Nova York, e daí! O cara politizado cansou de ler notícias e agora tá assistindo Walking Dead, e daí! A senhora de esquerda come caviar e passeia de Uber, e daí! O carinha de direita foi dar um rolé em Cuba, e daí. E DAÍ!
E daí, já saímos do Ensino Médio, acabou. Acabou essa história de minha turma, sua galera, ninguém foi uma coisa só ali, muitos de nós só estávamos fingindo, pra nos encaixarmos e pra sermos aceitos, mas já deu né, a adolescência passou, o tempo é rápido e não temos que passar a vida sendo isso e isso e pronto, todo mundo é inconstante, todo mundo muda de ideia, todos temos uma opinião diferente ainda que defendamos os mesmos ideais, se encaixar muitas vezes é se castrar e se castrar é se privar dos maiores prazeres da vida e invadir o livre arbítrio do outro. Libertem-se e libertem os outros das suas opiniões desnecessárias e preconceituosas sobre a vida deles. DELES, não suas. Como é que eu vou ensinar alguém que o preconceito é feio se eu julgo todos os dias as pessoas pelos seus gostos, aparência, preferência e estilo de vida. COMO?

Sempre achei que a igualdade morasse no fato de reconhecermos que ninguém é igual e nem tem que ser. E antes que cheguem mensagens na minha caixa de e-mail dizendo que eu passei o texto inteiro falando sobre julgamentos e isso não deixa de ser um julgamento, eu lhes pergunto... E daí? Isso não os impede de compreender essa mensagem e nem me impede de mudar de ideia amanhã e essa carapuça também me serve. Ah e antes que eu esqueça... Um Feliz 2017 a todos! #Tiara Sousa