segunda-feira, 30 de setembro de 2019

TORTA


Imagem do site https://pt.wahooart.com/
Outro dia uma amiga me ligou querendo conversar, marcamos em 15 minutos na padaria do João Paulo. É, eu sei, rápido, mas é que quando uma amiga te liga do nada, no meio da tarde e diz preciso conversar, você vai, porque a merda tá feita, tá tudo um caos, é o fim do mundo, ela não tá legal. Entrei no carro e saí, estacionei na porta da Padaria, já ela colocou o carro dentro do estacionamento e ao sair e se deparar comigo ainda dentro do carro, fez sinal pra eu descer. Eu ia descer, ia mesmo, eu fui lá pra isso né, mas aí eu me dei conta que esqueci um pequeno detalhe, pequeno mesmo, quase insignificante, esqueci que estava descalça e que dentro do carro não tinha um sapato sequer, uma havaiana, nem mesmo uma Ipanema, nem aquele chinelo de 10 contos que tá vendendo como água na Rua Grande. Fiz sinal pra ela vir até o carro e quando ela chegou e eu contei caímos na gargalhada... Afinal, que mulher de 34 anos, com um filho adolescente, com contas a pagar e cheia de plano de aula pra fazer e de coreografia pra criar sai de casa descalça? Eu né. Resolvemos o problema indo conversar num barzinho lá perto, lá dava pra descer descalça sem ser o assunto do lugar.
Ela contou o que estava passando, conversamos, tomamos uma coca cola, na realidade eu tomei, fumamos uns cigarros, tá bom vai, na realidade só eu fumei, e depois da conversa cheguei em casa pensando sobre umas coisas que fazia um tempão que eu não pensava. Lembrei que ás vezes acho que o mundo inteiro é o meu quintal, e tenho o hábito de chegar nos lugares inventando que são todos meus. Eu gosto de sair pelo mundo fazendo de conta que toda rua é a minha casa, só que isso sempre me dá a impressão de que toda agonia é minha e de que toda dor é minha e de que todo medo é meu. E eu sempre me sinto sozinha, eu sempre me sinto sozinha nas minhas fantasias.
Lembrei que quando olho em volta, vejo um lugar repleto de pessoas e vazio de tanta coisa importante, então eu danço, eu danço sozinha pelas mulheres nas esquinas, pelas crianças nos semáforos, pelos olhos que parecem me ver sem me enxergar, e ás vezes eu fico com medo da luz do sol, e da minha própria ingratidão diante das árvores no parque ao fundo da rua em que moro. Desfalecendo a minha própria margem, navegando onde nem tem mais mares, esperando a Amazônia sumir com todos nós. E eu me sinto sozinha, eu sempre me sinto sozinha nas minhas formas. É que ao chegar num lugar cheio observo as pessoas, e me parece que pra elas é fácil viver em seus corpos, em suas mentes, com aquela empatia, simpatia, extroversão, popularidade, adaptação, e isso me dá a impressão que ninguém pode me ler, que eu fui escrita numa língua velha e esquecida e que não existem traduções para as palavras que me formam. E eu sempre me sinto sozinha, eu sempre me sinto sozinha em lugares cheios.
Vocês já se sentiram assim? Deslocados? Como se não soubessem viver no século 21? Desamparados pelas suas próprias sedes, brutalmente presos as suas próprias fomes? Cercados por 8 bilhões de pessoas e solitários em seus modos equivocados e suas linhas sinuosas? Olhando um mundo que ninguém parece ver? Contidos em movimentos que nem fizeram ainda? Amedrontados pela possibilidade de serem vocês pelo resto da vida, tão incompletos e inacabados? Eu já. Enquanto dançava sozinha no meu quintal.
Às vezes penso que tá todo mundo tão perdido que até me sinto acompanhada. Como se nem sempre tudo fosse tão caótico e sublime. As pessoas só acordam e tomam banho e escovam os dentes e saem pra trabalhar... As pessoas só chegam em casa e leem ou assistem algo e fazem sexo e vão dormir... E no dia seguinte tudo se repete e ninguém mais se interessa se tá tudo bem mesmo com as pessoas para as quais perguntam se tá tudo bem. E os muros estão cada vez mais altos. E ninguém mais se olha nos olhos. Falta a gente se enxergar, se encontrar, se perceber, falta a gente aceitar a subversão que é ser... Humano, entender que a poesia de existir está no fato de muitas vezes a pele implorar o que a alma rejeita. Falta olhar para o lado e ver que tudo é construção, porque vendo isso desse modo nós não iremos mais nos sentir tão sozinhos. Falta a gente ver que tá todo mundo um pouco torto, mesmo aqueles que só saem de casa calçados.
É assim que eu me sinto a maior parte do tempo... Torta. E eu lembrei disso depois daquela conversa com a minha amiga. Lembrei disso, porque se ninguém chegar e se ninguém reparar no quanto eu sou incrível, no quanto as minhas dores me construíram, no quanto eu cresci enquanto escrevia crônicas no meu quarto, eu sei que vou ficar bem, que tudo bem eu me sentir torta ás vezes, tudo bem se uma das suas melhores amigas se sentir torta ás vezes. Torta foi como a crítica classificou a obra mais famosa, fascinante e de uma beleza ímpar e nada óbvia de Picasso, aquela que todo mundo demorou um tempão pra entender que era um recesso do que a gente não aguenta mais ser e do que a gente quer ser, na minha opinião esse recesso é quem realmente a gente é.
Quanto a minha amiga... Não se preocupem, ela vai ficar bem... Sonhei a noite passada que ela vai morar num lugar que tem quintal e quando tiver tudo um caos, ela vai fazer de conta que o mundo inteiro é o quintal dela e vai dançar sozinha pelas mulheres nas esquinas, pelas crianças nos semáforos e pelos olhos que parecem vê-la sem enxergá-la. Tiara Sousa

terça-feira, 3 de setembro de 2019

CÉU DA MADRE DEUS

Imagem do site Youtube

Da porta pra dentro, éramos uma ciência exata. Do lado de fora, uma ciência humana. E era como matar o tempo, gostar de você, era como me procurar na multidão, como explicar a chuva. Nunca era.
Ainda assim permiti que você atravessasse os meus sentimentos e conceitos e laços e crenças, que me virasse do avesso, quando eu sempre fui o avesso.  E você nunca me perguntou porque dentre tantos caras que tem por aí e que poderiam me oferecer mais, mais do que o caos, eu fiquei logo com você. Você também nunca me perguntou... Porque Esquerda e não Direita? Porque noite e não dia? Porque vestido e não calça? Porque mar e não montanha? Porque escrita e não falada? Porque Arte? Você nunca me perguntou nada e eu também nunca disse, e mesmo assim eu me entreguei aos nossos silêncios. É que eu achava que você entendia que eu sou livre sem ser óbvia, tão diferente das muitas mulheres que povoaram a tua cama. É que eu achava que você sabia quem eu era, mas você não sabia, não fazia ideia, e nunca realmente quis saber.
É que você não estava aqui quando ladrões invadiram a minha casa, quando um trovão me assustou no meio da noite, quando eu percebi que as pessoas mais importantes poderiam me ferir, quando eu estava tão cansada que dormi com a roupa que cheguei do trabalho, quando eu comemorei por um texto meu bater recorde de visualizações. E agora, que as nossas cordas vocais não se entendem, que as nossas dores saem na mão no meio da rua, que as nossas vontades tem vontades diferentes, e a tua ideia de “nós” pra mim é um bueiro descoberto na maior favela da cidade... Você diz que quer o meu melhor, diz que sente a minha falta, que me ama, que precisa me ver... Mas é tarde, o céu da Madre Deus já ficou cinza.
É que você não estava aqui quando eu fiquei triste com alguma bobagem cotidiana, quando eu não fazia ideia de como resolver um problema, quando senti alegria, quando senti medo, quando fiquei puta da vida com a vida, quando meu filho foi ficando mais independente e senti saudade de quando ele precisava de mim pra tudo. E agora, que você dá meia volta e eu volta e meia, que o asfalto esquenta enquanto a gente esfria, e chove de novembro a novembro enquanto te esqueço, você me procura, corre atrás de mim, toca a minha campainha ansioso, liga pra todos os nossos conhecidos a minha procura... Mas é tarde, o céu da Madre Deus já ficou cinza.
É que você não estava aqui quando eu tive dor de cólica, quando eu tive crise alérgica e fui parar no hospital, quando assisti um filme que achei o máximo e quis passar horas falando sobre isso, quando terminei de ler um livro que me deixou uma semana me sentindo estranha, quando eu não sabia como ser adulta e tive que saber porque o tempo não para. E agora, que as tuas mentiras não me cabem mais e a tua verdade me fere profundamente, e eu desconfio que te fira ainda mais e você só esconda e finja pra si mesmo que se acostumou com essa merda toda, você diz que pensa em mim, que sempre me respeitou, envia mensagens, grita meu nome no meio da rua... Mas é tarde, o céu da Madre Deus já ficou cinza.
É que você não estava aqui na noite em que saí e o céu da Madre Deus era o céu mais lindo do mundo todo e eu queria que você olhasse pra entender que ainda dava tempo de consertar os erros da vida, pra entender que ainda dava pra ser forte e lutar por um amanhã mais digno e melhor. E doeu, a presença da tua ausência maquiada pelas tuas palavras falsas e tuas aparições vazias, e eu não quero mais. Não sou mais uma peça no teu jogo de tabuleiro, não espero mais ansiosamente a tua visita, não tenho mais curiosidade sobre a tua vida, não sobra mais nenhum tipo de admiração em relação a você. Tudo o que era estampa, desbotou. E até murcharam as rosas que você nunca me deu. Mas é tarde, muito tarde... Porque uma noite dessas fui a Madre Deus e ao olhar pra cima, estava ali apenas eu e o céu mais lindo da cidade, tão azul e triste e iluminado que eu podia sentir a vida passear pela minha pele, e eu lembrei da pergunta que você nunca me fez... Afinal, porque dentre tantos caras que tem por aí e que poderiam me oferecer mais, mais do que o caos, eu fiquei logo com você. E eu quis tanto que você estivesse ali e pudesse sentir a vida como eu estava sentindo, porque então você teria a resposta sem que eu precisasse dizer uma palavra, você entenderia que eu via em você o que nem mesmo você via, eu via aquele momento em que o mar acalma e só se pode escutar os barulhos das ondas se houver silencio e atenção, eu via o mais tarde, o daqui pouco, o amanhã, só que mais uma vez você não estava lá, porque você nunca estava lá pra mim, e agora nem mesmo eu vejo o que via. É realmente tarde, o céu da Madre Deus já ficou cinza. Tiara Sousa