sábado, 2 de julho de 2016

CABARÉ DE SONETOS

A cidade me tortura. Vejo em volta e de repente estou num cabaré de sonetos e todas as dores na rua se oferecem pra doer em mim. Acho que é isso que as pessoas por aí chamam de tristeza, e eu, que por tantas vezes já fui tão triste, nunca realmente tinha sido triste assim, com a pele ressecada de erotismo e fé.
Está tudo tão vago. Ainda bem que já fiz as compras, eu quase perdi o tesão pelo dia seguinte na semana passada, tenho tão pouco tempo e tanta gente pra amar depois do pôr do sol, antes que a vida soe ainda mais efêmera e eu me encontre dentro de um dialogo cênico entre atenienses e espartanos, sem saber por quem dialogar ou até mesmo com quem.
Gostaria de ter um manual de mim, mas sempre achei difícil me estabelecer onde todos costumam se estabelecer. Já fiz de tudo pra ser todos, mas ser todos é algo tão humano que demonstra desumanidades, e isso me coloca do lado desconfortável de fora. Sou detestável por isso? Não. Não se julga uma cronista pelos primeiros parágrafos. Sou detestável por outras milhares de coisas, mas não por amar com tanto conteúdo uma forma rasa, e nem pela enxurrada de tristeza pela falta de alguém que nunca me prometeu nada.
Estou triste. Ponto. Sentada em algum lugar entre o joelho dele e os meus desencantos. As mãos hábeis dele atravessam a minha lucidez e parece até incompetência minha não ser feliz nem por um segundo, nem por um único, incógnito, frio, feroz, mísero segundo. -
Estou triste. Ponto-. Perdida entre a minha mania de estalar os dedos e o modo como ele corta as unhas, com tanta vaidade que faz cada unha ser miseravelmente um lamento profundamente oco de uma sociedade que se curva aos julgamentos moralistas e estéticos do senso comum. E nós aqui, existindo entre a ilusão do sexo sem alma e a alma sem alma aos quais tanta alma transpiram. Aqui, entre o paladar dele e a minha vontade de ser amada junto com todos os meus defeitos, infantilidades, neuroses e contestações.
Estou triste. Ponto. É- que a intercessão do meu odor de cigarros e do perfume barato dele eram nauseantes formas de eu me sentir acompanhada e dele se sentir incomum. Ao meu lado ele caminhava reticente de tudo o que não conhecia e julgava mal e eu caminhava ao lado dele cortejada pela ironia de uma união contraditória. E enquanto caminhávamos juntos o gozo dele era o meu recato original.
Estou triste. Ponto. Porque a tristeza ocupa meus dias banais e a alegria sempre me soou ignorante. Porque de todos os corpos que já uniram-se ao meu, só o dele,  proletário dos corpos, tem o sabor agridoce e agressivo da passividade. E eu só consigo existir no vão do suor dele e das minhas lágrimas.
Estou triste. Ponto. Poderia enumerar um milhão de razões pra isso e nenhuma teria cabimento, pois pra caber nos lugares por onde eu ando tem que romper com estruturas fictícias e sangrar fossas. Tem que cortar nossa sombra ao lado esquerdo da cama, aquele contrário de onde ficava o abajur vermelho, coberta por um lado dele que eu criei e acreditei. Um lado metade fantasia, metade loucura.
Estou triste. Ponto. Onde eu começava ele não alcançava, o fim sempre esteve ali, entre nossos beijos intempestivos, nossos lençóis descartáveis e a imensa muralha que separava o meu eu rústico do eu dele lapidado. O único lar que tivemos, que ousamos ter, foram nossos corpos nus de roupas, de medidas, de promessas, de constrangimentos, de eternos.
Estou triste. Ponto. E estar triste é estar trancada no corpo dele, no cotovelo rosado, nos olhos claros, no antebraço perfeito e me sucumbir de lembranças pessimistas do que eu tive até dizer chega. Eu disse: Chega! Mas o motivo, o verdadeiro motivo nunca chegou.
Estou triste. Ponto. Porque o lugar onde sentávamos pra conversar é hoje um aglomerado de pedras onde defecam os pombos e a cama em que ele fingia me dominar enquanto eu fingia ser dominada é apenas um móvel refugiado dos princípios que um dia me sobraram e hoje me escapam. E eu caminho por um beco escuro que oprime os planos que não nos atrevemos a fazer com os desejos que deixamos de conter.
Estou triste. Ponto. Nada é tão soberano que não caiba numa folha de papel. Pedi que ele guardasse os seus sentimentos mais teóricos para outras mulheres mais práticas, previsíveis, tolas e encantadoras do que eu. E ele guardou. E eu nunca o perdoei por ter me obedecido. E pra onde olho as dores se oferecem pra doer em mim, como num cabaré de sonetos, e eu as aceito, como num cabaré de sonetos, e elas doem latejantes, como num cabaré de sonetos, e acho mesmo que é isso que as pessoas por aí chamam de tristeza. A cidade me tortura e eu estou triste. Ponto. Ponto. Ponto... Tiara Sousa