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Imagem do site Correio Brasiliense |
Era
um lugar tão cheio, mas tão cheio, que eu conseguia sentir a linha do vazio que
passava pela clavícula do homem de terno e ia até o cotovelo rosado da garota
de All Star. Lembro de sorrir pra disfarçar o meu incomodo pequeno burguês por
gente pequeno burguesa, e por gente burguesa, e por gente quase burguesa, e por
gente que combinava sapato com bolsa e tênis com relógio. É que eu preferia
gente descolada, o que era no mínimo preocupante, pois preferir gente descolada
quando na realidade nem mesmo eu era descolada é como começar a amar a chuva no
fim da chuva, é tardio, infantil e inapropriado. Eu usava sandálias rasteiras e
saias coloridas e achava que o mundo inteiro tinha que cair aos meus pés, mas
não tinha, eu era só uma garotinha tola com medo de altura e de infinitos, que
tinha duas unhas encravadas, meia dúzia de acnes e tendência a Transtorno
Obsessivo Compulsivo. Eu tinha só 14 anos e era a primeira vez que passava
o Réveillon longe de casa, tava na casa da avó de uma amiga da escola, uma casa
tão grande e tão bonita e tão cheia de móveis caros que fazia o mundo parecer
muito mais superficial do que realmente é. Nunca esqueci desse Réveillon, era a
chegada do tão esperado século XXI, e a única coisa que eu queria era um
analgésico.
Agora
é tudo diferente, exceto o meu cabelo crespo cacheado, que continua demorando a
crescer e dando o maior trabalho pra desembaraçar, é que entre o cacho número 2
e o cacho 5.325 tem a exata dor da primeira vez em que eu não consegui chorar
um fim, aquele dia foi estranho, porque eu pensava que sempre seria fácil
lamentar como uma menina a perda que só cabe a uma mulher. Eu moro numa casa
que não é de campo, que não tem um banco suspenso de madeira de lei, que não tem
uma sala cheia de “livros e discos e nada mais”, eu conserto a minha alma
sozinha entre um trecho Hamlet e um capítulo de Dawson’s Creek, e vez ou outra
as rãs vem me visitar, parece que elas sabem que eu tenho mais medo delas do
que de altura, de portas abertas e de cadeiras viradas no sentido contrário da
rua.
Agora
é tudo diferente, exceto o asfalto da rua detrás da casa da minha avó, que
continua esburacado e excessivamente quente, mesmo na época de chuva ainda dá
pra fritar um ovo nele, se aquele asfalto falasse, creio que falaria do mundo
com uma propriedade que nunca coube em jornais e na literatura. O século XXI
chegou a maior idade, seus dezoito anos já proclamados de regras e utopias
desfeitas, já eu, tô com trinta e dois, e o meu Alter Ego tem milhares de
visualizações semanais, os meus pais passaram dos sessenta e eu resolvo os meus
problemas com cigarro, coca cola e relaxante muscular. Meu coração continua insólito,
se contrapõe ao gosto impreciso das precisões, paredes e sinônimos me oprimem,
eu nunca cancelo compromissos, mas também não os assumo, sou hipócrita ao falar
de amor, porque o que amo nunca coube em palavras.
Agora
é tudo diferente, exceto os meus olhos que insistem em flanar pelos dias tortos
de dúvidas e alvoroços, é que desde o inicio achei o Século XXI invulgar,
porque nele parece que o amor está sempre entre o ultrajante e o démodé, há
muita formalidade nas informalidades e eu me atrevo entre mesmo assim amar as
folhas secas das arvores velhas que esqueceram de derrubar. Vivi a maior parte
da minha vida no século XXI, mas ainda não me acostumei com ele, ainda não
entendi porque tem grades na minha casa, na escola em que meu filho estuda, na
Universidade que frequento, ainda não entendi porque tem grades no tesão das
mulheres, no modo como elas se sentam, como elas cuidam da casa e da família,
ainda não entendi porque tem grades nos sentimentos, nas letras das músicas,
nos Best Sellers, ainda não entendi as grades das mentes das pessoas, ainda não
entendi as prisões de máxima segurança e invisíveis que povoam as mais diversas
realidades. Não entendi, porque só sei sorrir enquanto sou livre, grades me
amputam, são como o esgoto estourado na rua mais alegre da periferia, como o
menino morto por um bala perdida num confronto entre policia e traficante em
alguma comunidade do Rio de Janeiro, como o meu povo preto que em sua maioria não
teve as mesmas oportunidades que eu, como as mulheres abusadas e estupradas e
agredidas e sós, mesmo acompanhadas, como os desfalques públicos e os privados,
como a realidade assustadora e a ilusão incoerente. São como se auto abortar.
São como a dor.
Agora
é Janeiro de 2018 e eu continuo esperando Janeiro de 2001. Continuo sentindo a
linha do vazio que passa pela clavícula do homem de terno e vai até o cotovelo
rosado da garota de All Star. Continuo sentindo todas as linhas de todos os
vazios. Continuo sentindo... Feliz 2018 a todos os meus leitores, gente que
assim como eu continua esperando 2001, esperando que finalmente esse século comece
e que permita a todos serem livres, ainda que livres para escolherem as suas
prisões. Tiara Sousa