“És um senhor tão bonito;
Quanto a cara do meu filho.
Tempo, tempo, tempo... Vou te fazer um pedido.”
Caetano Veloso
Verissa
muda as flores de lugar, as flores que ela não tem. Caminha pela sala, tá
pensando em não pensar em nada, ela odeia pensar demais sobre pensar demais,
ela queria era que a casa engolisse ela e tenta decidir se está de mau humor ou
bom humor, se usa o batom cor de rosa ou o vermelho berrante, se pinta as unhas
de verde ou de lilás. Acaba percebendo que não tá nem aí pras unhas, nem pra
cor do batom, nem pro tom azul acinzentado do céu. Senta á mesa e come alguma
sobra de comida natureba que a irmã fez, é um daqueles dias em que ela sente
culpa até de ser alguém que come carne, o celular chama, devem ser uma das
amigas loucas e tristes e alegres e tolas e fortes que nem ela procurando algum
motivo na rua pra conseguir dormir depois, ou então deve ser um daqueles
carinhas meio bonitos, meio inteligentes, e cheio de defeitos que ela mesma faz
questão de colocar em seus indevidos lugares. Ela queria era que a casa
engolisse ela, e que as crianças na África sorrissem como os seus sobrinhos,
ela não vai atender o celular, ela vai é cantarolar aquela música estranha de
Marisa Monte enquanto chora e sorri por algum motivo óbvio que não vai querer
compartilhar com ninguém.
Viviane
dirigi, ela sempre dirigi pra onde tem companhias, esse negócio de silencio faz
muito barulho, esse negócio de clausura é coisa de quem se ama pouco, essa
história de solidão é pra quem é pouco realista. Ela quer é ficar fora de casa,
porque em casa é tudo muito normal e ela não aguenta mais isso, ela já foi a
menina do interior, ela já foi a esposa, ainda é comum, mas gosta mesmo é de
gente incomum, ela quer é fazer amor a beira mar e amar amores impossíveis e
usar saias curtas e fazer de conta que tá tudo bem do jeito que está. Aprendeu mesmo
a fazer de conta, passou tanto tempo fazendo de conta que estava tudo bem que
hoje até ela acredita, menos quando fica só, por isso ela não gosta de ficar
só, por isso ela prefere que a casa esteja arrumada e limpa e vazia dela,
porque já tem um tempo que tá tão cheia que sente o vazio de tudo. E só ela
sabe que felicidade é encontrar a blusa certa pra sua altura e corpo, a música
errada pro seu momento e algum texto curto que diga tudo o que ela tá sentindo
e não se pareça nada com o que ela vive. Ela tem medo, medo de tudo voltar a
ser como era, medo de tudo nunca voltar a ser como era, medo de ser tão ela que
nunca mais seja ela, e dividida entre dois mundos publica fotos nas redes
sociais onde ela tá sempre sorrindo, porque as maiores dores são impublicáveis e
efêmeras e não merecem atenção.
Verissa
fala do rapaz que usa palavras bonitas com ela, ele nunca tá por perto, mas ela
sempre esbarra com ele, e ninguém tem que entender isso, só ela. Viviane fala
do homem do presente, porque passado é coisa de quem não tem consciência que o
tempo tá passando, ela nunca teve tanto apreço e nem tanto medo do tempo.
Eu
viro os olhos, eu sempre viro os olhos, e finjo não perceber a dor delas,
preciso transparecer uma certa frieza e uma certa distancia pra poder dormir em
paz ainda que seja as 4 da manhã e com o cinzeiro cheio de pontas de cigarro.
Viviane
é uma realista que sabe sonhar. Verissa queria sentir como a menina do filme. Eu
queria tomar um porre, mas não posso. E só por isso acho que elas são mais livres
do que eu, porque elas nem fazem isso, mas podem, elas podem sair numa sexta
feira e beber todas, e essa coisa pequena é a diferença entre a prisão e a
liberdade, e tem um monte de grades a minha volta, invisíveis aos olhos mais
atentos, e eu tô sempre presa. Eu sou a sonhadora, assisto filmes e leio livros
não apenas por passatempo ou prazer ou exercício intelectual, mas somente
porque a vida me assusta e os dias mais alegres me soam entediantes.
Verissa muda as
flores de lugar, as flores que ela não tem. Viviane dirigi, ela sempre dirigi
pra onde tem companhias. Eu queria mesmo era encher a cara e falar besteiras e
fazer amizades e sorrir e dançar e cantar e existir uma existência extrovertida
e simpática até às 5 da manhã, mas eu não posso, e só por isso acho que elas são
mais alegres do que eu, eu que tenho lapsos de memória, atenção altamente prejudicada,
pouca agilidade em resolver coisas simples, e tenho elas, as moças que
caminharam comigo o ano inteiro e que podem tomar um porre quando quiserem, mas
ao invés disso, sentam comigo no chão da casa de Verissa e falam tolices e não
tolices até ás 2 da madrugada, e embora eu saiba que elas se entretenham e se
divirtam e se curem de dores e mazelas tanto quanto eu nesses momentos, ainda
acho (mesmo quando quero tritura-las e esgana-las e discutimos) que elas são as
moças mais lindas do mundo só por estarem ali, e fico bem por pensar que elas
sejam mais livres e mais alegres que eu. Se eu acreditasse em Deus, enviaria
uma carta a ele dizendo essas coisas e pedindo que ele guardasse um lugar bem
bonito no céu pra cada uma delas, um lugar onde Verissa pudesse ter todos os
tipos de flores imaginárias que quisesse e onde Viviane nunca ficasse só, nem
quando estivesse só. Mas como a minha fé se resume ao tempo... “um senhor tão
bonito quanto a cara do meu filho”, ofereço apenas um sóbrio brinde ás meninas
por tantos anos de amizade, mas sobretudo pelos últimos quatro anos, e pelos
últimos 365 dias, e pelas últimas horas, e pelo último segundo, em que não pude tomar um porre, mas tive companhia pra sonhar. Tiara Sousa
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