terça-feira, 7 de junho de 2016

LEMBRANÇAS ORNAMENTAIS

Acho um tanto infame, mas devo admitir que somente lá pelas 16 horas o dia começa a fazer sentido pra mim. É aquele momento em que os raios de sol parecem não provocar tanto calor e que as obrigações (eu lido com elas, mas não muito bem) começam a perder seu status. Na terça-feira passada neste exato horário, eu saí de casa em busca de alguma coisa nova, é necessário aqui ressaltar que diferente da maioria das pessoas, eu também não lido bem com coisas novas. Vou sempre aos mesmos lugares, sento nas mesmas cadeiras, leio os mesmos autores e repito os mesmos erros. Mas naquela terça não, naquele dia em especial eu queria algo diferente pra ornamentar as minhas lembranças futuras.
Entrei no carro sem paradeiro e sabendo que onde quer que eu fosse parar não haveria ninguém esperando por mim, a sensação de não ter ninguém a sua espera é de liberdade e solidão, duas das minhas quase paixões quase correspondidas preferidas. Nos raros momentos em que tenho esses rompantes acabo parando na praia, é que quanto mais decidida a romper com os hábitos cotidianos eu estou, menos eu consigo. O medo e o comodismo sempre comandaram capítulos importantes da minha estranha biografia. Ou talvez eu acabe por costume parando na praia pelo motivo óbvio de que vivo numa cidade quase que provinciana cercada de água por todos os lados. Ou talvez seja o meu condescendente amor pelo mar. Eu gosto do vazio. O vazio me acomoda, todo o resto me soa caótico. O mar me soa vazio. Sempre o percebi assim. Mas é importante ressaltar(não, não é importante ressaltar), mas ressalto assim mesmo que nesse dia em especial eu não acabei indo parar na praia. Gastei aproximadamente um quinto do meu precioso tanque de combustível pra chegar num bairro comum que poderia facilmente ser confundido com qualquer bairro de periferia da minha cidade. Estacionei o carro próximo a uma pracinha que embora me recordasse uma imensidão de coisas, fosse pelo visual abandonado e simplório, fosse pelo olfato, sentido que embora prejudicado por anos de dependência de nicotina ainda é o que mais me provoca lembranças e impressões, nunca havia estado ali. Um lugar novo e contraditoriamente encharcado de melancolia. Sentei num banco degradado da praça e passei aproximadamente uma hora ali, vendo pessoas, coisas e comportamentos, tentando compreender realidades submissas, histórias diferentes, peles marcadas, honras roubadas, conhecimentos exibidos e ignorâncias expostas. Tentando compreender talvez algumas coisas sobre mim, como o porque de eu ter saído com o vestido estampado e não com o short jeans naquele dia, ou o porque de eu ser alguém tão pouco sociável e simpática, ou então o porque de cem por cento do mundo que me cerca não atender as minhas expectativas sonhadoras e infantis. Ou talvez tentando apenas compreender as últimas notícias dos jornais, uma presidenta colocada num processo de impeachment por corruptos abraçados por boa parte da população, uma adolescente estuprada por mais de 30 homens acalentados por uma gente cruel que ao invés de debater a monstruosidade dos estupradores, gastam seu tempo julgando a exposição ao perigo em que a vítima se colocou, ou ate mesmo julgando a própria vitima.
E enquanto as crianças corriam pela praça, e os adolescentes declaravam suas paixões, considerando eterno o que só poderia mesmo existir no efêmero, e que os adultos apressados passavam com as suas compras do mercado, eu ali, tentando enxergar os motivos de um mundo tão cruel e pior, tentando conviver com o fato de ser parte dele.
Até o momento em que algo desfez meu superior desânimo e minha resistente distração, um homem de uns setenta e poucos anos, passou pela praça numa tranquilidade quase que inaceitável para o resto do mundo, aparentando nenhuma pressa, levantou a cabeça, suspendeu os olhos e por dois ou três minutos olhou para o céu, depois abaixou a cabeça, sorriu e voltou a caminhar. Não sei quem é esse senhor, seu nome, endereço, profissão ou estado civil, e nem mesmo troquei uma única palavra com ele, mas mesmo o desconhecendo nunca obtive de alguém como obtive dele uma resposta tão absolutamente satisfatória a um questionamento... Não faço ideia se ele olhou para o céu num ato de fé, de contemplação ou de qualquer outro motivo, mas se dentre tantas coisas ele parou e olhou e sorriu, ainda devem haver sensibilidades se sobressaindo a friezas, juras de amor vencendo duelos com juras de ódio, sofrimentos desaparecidos por momentos de alegria. Se aos setenta anos um senhor pode parar tudo o que está fazendo (ainda que o que esteja fazendo seja nada demais) para olhar para o céu, deve certamente existir um motivo pra naquela tarde eu trajar um vestido estampado ao invés de um short jeans, pra ser alguém tão pouco sociável e simpática, ou pra cem por cento do mundo que me cerca não atender as minhas expectativas sonhadoras e infantis.
Porque se ele pode olhar para o céu e sentir-se feliz somente por isso, talvez o mundo não seja por fim um lugar povoado por gente tão cruel, talvez eu apenas nunca antes tivesse sentado no banco certo, da praça certa, do bairro certo. Ou Talvez simplesmente eu, nós, só nunca antes tivéssemos olhado para o lugar certo. Foi essa a resposta ao meu questionamento, um questionamento nunca dito antes em voz alta, mas por tantas vezes gritado em silêncio. Depois levantei entrei no carro e saí. Não faço ideia de que bairro era aquele e nem como consegui encontrar o caminho de volta. Só sei que no dia seguinte acordei ás 7 da manhã como de costume, mas foi diferente, de repente me dei conta que mesmo tão cedo, o dia já fazia todo sentido pra mim.  Então tomei banho, me arrumei e saí, dessa vez sabendo exatamente para onde iria e que haveriam pessoas esperando por mim. Tiara Sousa


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