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Ela
disse que o gosto dele ainda estava na boca dela, e eu senti dó dela, porque
gostos são para ser passageiros, se não dia ou outro amargam. Ela estava triste
porque até as bainhas das saias dela lembravam ele, e todas as cores eram as
cores da pele dele, e ela preferia perder tempo com ele do que ter todo o tempo
do mundo. A saudade que ela sentia transitava por cada osso de seu corpo...
Doía crânio e maxilar e mandíbula e clavícula e escápula e costelas e úmero e
esterno e coluna e ulna e rádio e ítio e carpo e metacarpo e fêmur e ísquio e
púbis e patela e tíbia e fíbula e tarso e metatarso e falanges... Cada droga de
osso gritava o nome dele! Ela quis chorar, mas parecia fraca, e a fraqueza
muitas vezes é uma dose de whisky barato com o único propósito de afogar as
mágoas, e sem propósito algum.
Ela
disse que nunca amou assim... Tanto! Assim com os poros abertos e expostos,
assim com as células inflamadas e com a garganta inflamada e com as
articulações inflamadas e com a sensação de que o mundo inteiro pra lá da
janela estava apertado para o que ela sentia. Assim de quatro e por cima e por
baixo e de perto e de longe e de fora e de dentro, e de muito dentro. Ela
contou as feridas dele, porque eram maiores que as dela, é que as feridas dele
doíam mais nela. Ela roeu as unhas e tentou amar uma causa, uma paisagem, uma
canção, mas toda causa era ele, toda paisagem era ele, toda canção era ele. E
ela foi ficando menor diante da impressão de que cedo ou tarde todos na rua
seriam ele. Ela diminuía diante da lembrança de uma dobrinha que ele tinha do
lado esquerdo do pescoço, e quase sumia enquanto olhava o banco de madeira em
que ele gostava de pôr os pés. Ela banalizava os desejos alheios e
superestimava tudo o que ele tocava enquanto tocava nela.
Ela
disse que via os sussurros dele; Via, porque ouvi-los nunca foi suficiente.
Disse que ouvia os olhares dele; Ouvia, porque vê-los era cru demais. E às
vezes ela recordava por horas que ele apertava a mão dela sempre que ela queria
desistir de alguma coisa, é que alguma coisa nela tinha certeza que todas as
vezes que ela quisesse desistir a mão dela iria doer um pouco de uma saudade
muita, é que doer um pouco é muita coisa quando se espera ansiosamente por essa
dor.
Ela
disse que o que acabava com ela não era a falta da presença dele pelos móveis da
casa, nem mesmo o torpor que se tornou o seu cotidiano com a distancia dele, ou
o cheiro de sexo que ele espalhou pelo corpo dela e esqueceu de juntar depois.
O que acabava com ela era a escova de dentes velha que ele deixou na pia do
banheiro, eram os fios de cabelo dele no pente dela, era a camisa que ela
comprou pra dar de presente a ele e que acabou nunca conseguindo entregar. O
que acabava com ela era uma sensação insistente e recorrente de que entre o Até
logo e o Mais tarde havia um fim.
Ela
foi a puta dele... E a santa. Foi o sagrado... E o profano. Ela foi a mania que
ele tinha estalar os dedos sempre que estava entediado, foi a risada maldosa
que ele soltava cada vez que alguém usava um termo estranho pra falar de algo
comum, ela foi a mentira que ele contou pra justificar um atraso na primeira em
que eles foram juntos ao cinema, foi o tesão que ele guardou pra ela na última
vez que eles se amaram, foi a tentativa dele de disfarçar o olhar de desejo que
direcionou a mulher de biquíni que passou ao lado deles na praia. Ela foi ele.
E ela foi dele. E ela não fazia ideia de como deixar de ser.
E
quantas mulheres já não foram ela... E quantas vezes já não fomos ela... E por
quanto tempo ainda seremos ela... Foi o que eu pensei. Tiara Sousa
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