quinta-feira, 2 de novembro de 2017

LADO B

Direitos da imagem: Site Recanto das letras
Ela disse que o gosto dele ainda estava na boca dela, e eu senti dó dela, porque gostos são para ser passageiros, se não dia ou outro amargam. Ela estava triste porque até as bainhas das saias dela lembravam ele, e todas as cores eram as cores da pele dele, e ela preferia perder tempo com ele do que ter todo o tempo do mundo. A saudade que ela sentia transitava por cada osso de seu corpo... Doía crânio e maxilar e mandíbula e clavícula e escápula e costelas e úmero e esterno e coluna e ulna e rádio e ítio e carpo e metacarpo e fêmur e ísquio e púbis e patela e tíbia e fíbula e tarso e metatarso e falanges... Cada droga de osso gritava o nome dele! Ela quis chorar, mas parecia fraca, e a fraqueza muitas vezes é uma dose de whisky barato com o único propósito de afogar as mágoas, e sem propósito algum.
Ela disse que nunca amou assim... Tanto! Assim com os poros abertos e expostos, assim com as células inflamadas e com a garganta inflamada e com as articulações inflamadas e com a sensação de que o mundo inteiro pra lá da janela estava apertado para o que ela sentia. Assim de quatro e por cima e por baixo e de perto e de longe e de fora e de dentro, e de muito dentro. Ela contou as feridas dele, porque eram maiores que as dela, é que as feridas dele doíam mais nela. Ela roeu as unhas e tentou amar uma causa, uma paisagem, uma canção, mas toda causa era ele, toda paisagem era ele, toda canção era ele. E ela foi ficando menor diante da impressão de que cedo ou tarde todos na rua seriam ele. Ela diminuía diante da lembrança de uma dobrinha que ele tinha do lado esquerdo do pescoço, e quase sumia enquanto olhava o banco de madeira em que ele gostava de pôr os pés. Ela banalizava os desejos alheios e superestimava tudo o que ele tocava enquanto tocava nela.
Ela disse que via os sussurros dele; Via, porque ouvi-los nunca foi suficiente. Disse que ouvia os olhares dele; Ouvia, porque vê-los era cru demais. E às vezes ela recordava por horas que ele apertava a mão dela sempre que ela queria desistir de alguma coisa, é que alguma coisa nela tinha certeza que todas as vezes que ela quisesse desistir a mão dela iria doer um pouco de uma saudade muita, é que doer um pouco é muita coisa quando se espera ansiosamente por essa dor.
Ela disse que o que acabava com ela não era a falta da presença dele pelos móveis da casa, nem mesmo o torpor que se tornou o seu cotidiano com a distancia dele, ou o cheiro de sexo que ele espalhou pelo corpo dela e esqueceu de juntar depois. O que acabava com ela era a escova de dentes velha que ele deixou na pia do banheiro, eram os fios de cabelo dele no pente dela, era a camisa que ela comprou pra dar de presente a ele e que acabou nunca conseguindo entregar. O que acabava com ela era uma sensação insistente e recorrente de que entre o Até logo e o Mais tarde havia um fim.
Ela foi a puta dele... E a santa. Foi o sagrado... E o profano. Ela foi a mania que ele tinha estalar os dedos sempre que estava entediado, foi a risada maldosa que ele soltava cada vez que alguém usava um termo estranho pra falar de algo comum, ela foi a mentira que ele contou pra justificar um atraso na primeira em que eles foram juntos ao cinema, foi o tesão que ele guardou pra ela na última vez que eles se amaram, foi a tentativa dele de disfarçar o olhar de desejo que direcionou a mulher de biquíni que passou ao lado deles na praia. Ela foi ele. E ela foi dele. E ela não fazia ideia de como deixar de ser.
E quantas mulheres já não foram ela... E quantas vezes já não fomos ela... E por quanto tempo ainda seremos ela... Foi o que eu pensei. Tiara Sousa

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