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Outro
dia uma amiga me ligou querendo conversar, marcamos em 15 minutos na padaria do
João Paulo. É, eu sei, rápido, mas é que quando uma amiga te liga do nada, no
meio da tarde e diz preciso conversar, você vai, porque a merda tá feita, tá
tudo um caos, é o fim do mundo, ela não tá legal. Entrei no carro e saí,
estacionei na porta da Padaria, já ela colocou o carro dentro do estacionamento
e ao sair e se deparar comigo ainda dentro do carro, fez sinal pra eu descer. Eu
ia descer, ia mesmo, eu fui lá pra isso né, mas aí eu me dei conta que esqueci
um pequeno detalhe, pequeno mesmo, quase insignificante, esqueci que estava
descalça e que dentro do carro não tinha um sapato sequer, uma havaiana, nem
mesmo uma Ipanema, nem aquele chinelo de 10 contos que tá vendendo como água na
Rua Grande. Fiz sinal pra ela vir até o carro e quando ela chegou e eu contei
caímos na gargalhada... Afinal, que mulher de 34 anos, com um filho
adolescente, com contas a pagar e cheia de plano de aula pra fazer e de
coreografia pra criar sai de casa descalça? Eu né. Resolvemos o problema indo
conversar num barzinho lá perto, lá dava pra descer descalça sem ser o assunto
do lugar.
Ela
contou o que estava passando, conversamos, tomamos uma coca cola, na realidade
eu tomei, fumamos uns cigarros, tá bom vai, na realidade só eu fumei, e depois
da conversa cheguei em casa pensando sobre umas coisas que fazia um tempão que
eu não pensava. Lembrei que ás vezes acho que o mundo inteiro é o meu quintal, e
tenho o hábito de chegar nos lugares inventando que são todos meus. Eu gosto de
sair pelo mundo fazendo de conta que toda rua é a minha casa, só que isso
sempre me dá a impressão de que toda agonia é minha e de que toda dor é minha e
de que todo medo é meu. E eu sempre me sinto sozinha, eu sempre me sinto
sozinha nas minhas fantasias.
Lembrei
que quando olho em volta, vejo um lugar repleto de pessoas e vazio de tanta
coisa importante, então eu danço, eu danço sozinha pelas mulheres nas esquinas,
pelas crianças nos semáforos, pelos olhos que parecem me ver sem me enxergar, e
ás vezes eu fico com medo da luz do sol, e da minha própria ingratidão diante
das árvores no parque ao fundo da rua em que moro. Desfalecendo a minha própria
margem, navegando onde nem tem mais mares, esperando a Amazônia sumir com todos
nós. E eu me sinto sozinha, eu sempre me sinto sozinha nas minhas formas. É que
ao chegar num lugar cheio observo as pessoas, e me parece que pra elas é fácil
viver em seus corpos, em suas mentes, com aquela empatia, simpatia,
extroversão, popularidade, adaptação, e isso me dá a impressão que ninguém pode
me ler, que eu fui escrita numa língua velha e esquecida e que não existem
traduções para as palavras que me formam. E eu sempre me sinto sozinha, eu
sempre me sinto sozinha em lugares cheios.
Vocês
já se sentiram assim? Deslocados? Como se não soubessem viver no século 21? Desamparados
pelas suas próprias sedes, brutalmente presos as suas próprias fomes? Cercados
por 8 bilhões de pessoas e solitários em seus modos equivocados e suas linhas
sinuosas? Olhando um mundo que ninguém parece ver? Contidos em movimentos que
nem fizeram ainda? Amedrontados pela possibilidade de serem vocês pelo resto da
vida, tão incompletos e inacabados? Eu já. Enquanto dançava sozinha no meu quintal.
Às
vezes penso que tá todo mundo tão perdido que até me sinto acompanhada. Como se
nem sempre tudo fosse tão caótico e sublime. As pessoas só acordam e tomam
banho e escovam os dentes e saem pra trabalhar... As pessoas só chegam em casa
e leem ou assistem algo e fazem sexo e vão dormir... E no dia seguinte tudo se
repete e ninguém mais se interessa se tá tudo bem mesmo com as pessoas para as
quais perguntam se tá tudo bem. E os muros estão cada vez mais altos. E ninguém
mais se olha nos olhos. Falta a gente se enxergar, se encontrar, se perceber,
falta a gente aceitar a subversão que é ser... Humano, entender que a poesia de
existir está no fato de muitas vezes a pele implorar o que a alma rejeita. Falta
olhar para o lado e ver que tudo é construção, porque vendo isso desse modo nós
não iremos mais nos sentir tão sozinhos. Falta a gente ver que tá todo mundo um
pouco torto, mesmo aqueles que só saem de casa calçados.
É
assim que eu me sinto a maior parte do tempo... Torta. E eu lembrei disso
depois daquela conversa com a minha amiga. Lembrei disso, porque se ninguém
chegar e se ninguém reparar no quanto eu sou incrível, no quanto as minhas
dores me construíram, no quanto eu cresci enquanto escrevia crônicas no meu
quarto, eu sei que vou ficar bem, que tudo bem eu me sentir torta ás vezes, tudo
bem se uma das suas melhores amigas se sentir torta ás vezes. Torta foi como a
crítica classificou a obra mais famosa, fascinante e de uma beleza ímpar e nada
óbvia de Picasso, aquela que todo mundo demorou um tempão pra entender que era
um recesso do que a gente não aguenta mais ser e do que a gente quer ser, na
minha opinião esse recesso é quem realmente a gente é.
Quanto a minha amiga...
Não se preocupem, ela vai ficar bem... Sonhei a noite passada que ela vai morar
num lugar que tem quintal e quando tiver tudo um caos, ela vai fazer de conta
que o mundo inteiro é o quintal dela e vai dançar sozinha pelas mulheres nas
esquinas, pelas crianças nos semáforos e pelos olhos que parecem vê-la sem enxergá-la.
Tiara Sousa