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Da
porta pra dentro, éramos uma ciência exata. Do lado de fora, uma ciência
humana. E era como matar o tempo, gostar de você, era como me procurar na
multidão, como explicar a chuva. Nunca era.
Ainda
assim permiti que você atravessasse os meus sentimentos e conceitos e laços e
crenças, que me virasse do avesso, quando eu sempre fui o avesso. E você nunca me perguntou porque dentre
tantos caras que tem por aí e que poderiam me oferecer mais, mais do que o
caos, eu fiquei logo com você. Você também nunca me perguntou... Porque
Esquerda e não Direita? Porque noite e não dia? Porque vestido e não calça?
Porque mar e não montanha? Porque escrita e não falada? Porque Arte? Você nunca
me perguntou nada e eu também nunca disse, e mesmo assim eu me entreguei aos nossos
silêncios. É que eu achava que você entendia que eu sou livre sem ser óbvia,
tão diferente das muitas mulheres que povoaram a tua cama. É que eu achava que
você sabia quem eu era, mas você não sabia, não fazia ideia, e nunca realmente
quis saber.
É
que você não estava aqui quando ladrões invadiram a minha casa, quando um
trovão me assustou no meio da noite, quando eu percebi que as pessoas mais
importantes poderiam me ferir, quando eu estava tão cansada que dormi com a
roupa que cheguei do trabalho, quando eu comemorei por um texto meu bater
recorde de visualizações. E agora, que as nossas cordas vocais não se entendem,
que as nossas dores saem na mão no meio da rua, que as nossas vontades tem
vontades diferentes, e a tua ideia de “nós” pra mim é um bueiro descoberto na
maior favela da cidade... Você diz que quer o meu melhor, diz que sente a minha
falta, que me ama, que precisa me ver... Mas é tarde, o céu da Madre Deus já
ficou cinza.
É
que você não estava aqui quando eu fiquei triste com alguma bobagem cotidiana,
quando eu não fazia ideia de como resolver um problema, quando senti alegria,
quando senti medo, quando fiquei puta da vida com a vida, quando meu filho foi
ficando mais independente e senti saudade de quando ele precisava de mim pra
tudo. E agora, que você dá meia volta e eu volta e meia, que o asfalto esquenta
enquanto a gente esfria, e chove de novembro a novembro enquanto te esqueço,
você me procura, corre atrás de mim, toca a minha campainha ansioso, liga pra
todos os nossos conhecidos a minha procura... Mas é tarde, o céu da Madre Deus
já ficou cinza.
É
que você não estava aqui quando eu tive dor de cólica, quando eu tive crise
alérgica e fui parar no hospital, quando assisti um filme que achei o máximo e
quis passar horas falando sobre isso, quando terminei de ler um livro que me
deixou uma semana me sentindo estranha, quando eu não sabia como ser adulta e
tive que saber porque o tempo não para. E agora, que as tuas mentiras não me
cabem mais e a tua verdade me fere profundamente, e eu desconfio que te fira
ainda mais e você só esconda e finja pra si mesmo que se acostumou com essa
merda toda, você diz que pensa em mim, que sempre me respeitou, envia
mensagens, grita meu nome no meio da rua... Mas é tarde, o céu da Madre Deus já
ficou cinza.
É
que você não estava aqui na noite em que saí e o céu da Madre Deus era o céu
mais lindo do mundo todo e eu queria que você olhasse pra entender que ainda
dava tempo de consertar os erros da vida, pra entender que ainda dava pra ser
forte e lutar por um amanhã mais digno e melhor. E doeu, a presença da tua
ausência maquiada pelas tuas palavras falsas e tuas aparições vazias, e eu não
quero mais. Não sou mais uma peça no teu jogo de tabuleiro, não espero mais
ansiosamente a tua visita, não tenho mais curiosidade sobre a tua vida, não
sobra mais nenhum tipo de admiração em relação a você. Tudo o que era estampa,
desbotou. E até murcharam as rosas que você nunca me deu. Mas é tarde, muito
tarde... Porque uma noite dessas fui a Madre Deus e ao olhar pra cima, estava
ali apenas eu e o céu mais lindo da cidade, tão azul e triste e iluminado que
eu podia sentir a vida passear pela minha pele, e eu lembrei da pergunta que
você nunca me fez... Afinal, porque dentre tantos caras que tem por aí e que
poderiam me oferecer mais, mais do que o caos, eu fiquei logo com você. E eu
quis tanto que você estivesse ali e pudesse sentir a vida como eu estava
sentindo, porque então você teria a resposta sem que eu precisasse dizer uma
palavra, você entenderia que eu via em você o que nem mesmo você via, eu via
aquele momento em que o mar acalma e só se pode escutar os barulhos das ondas
se houver silencio e atenção, eu via o mais tarde, o daqui pouco, o amanhã, só
que mais uma vez você não estava lá, porque você nunca estava lá pra mim, e
agora nem mesmo eu vejo o que via. É realmente tarde, o céu da Madre Deus já
ficou cinza. Tiara Sousa
2 comentários:
Hoje é que quase uma data como o natal... com toda sua hipocrisia, toda sua invenção e maravilha, sua verdade e seu fardo...
Hoje é o dia de muita reflexão por se tratar do meu aniversário...e sempre me pergunto se estou livre, se estou evoluindo, se estou existindo de fato...
Esse texto é uma das doses mais forte em que minha reflexão traga hoje nesta data.
Pois é difícil admitir que perdemos muitos céus azuis quando resolvemos tornar a verdade a parte de nós que mais fere quem nos ama, quem nos amou.
Espero profundamente que a fonte dessa inspiração de hoje se renove e esteja de fato livre dos absurdos, evoluindo para finalmente existir ou vice versa.
Parabéns pelo texto, pela profundidade sempre, Tiara!
Sempre me emociona. 💚
Entendeu bem o texto moça. Obrigada pelas palavras e Feliz Aniversário!
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