Quando
a cidade termina há algumas casas numa estrada de terra. Por algum motivo que
finjo desconhecer, tudo muda, da minha capacidade de sentir até as tecnologias
dos aparelhos eletrônicos, mudam as estações, o ano, o mês, o dia, mudam as
redes sociais da moda, a capacidade dos celulares, surgem novos conceitos,
reescrevem velhos romances, mas aquelas casinhas, naquela estrada de terra
continuam feitas de barro e areia e taipa, com alguns metros quadrados de
largura e comprimento, e eu nunca soube quem mora ali.
Tem
alguma coisa diferente, desde que o ópio deixou de ser um hábito social as
pessoas passaram a busca-lo nos espaços vazios dos seus corações, e o mais
triste, o mais triste de tudo o que é triste é que encontraram.
Vou
até a pia do banheiro, ligo a torneira, molho as mãos, mas é o rosto que lavo,
miro o espelho, lavo o rosto novamente, miro o espelho uma vez mais, e outra, e
outra, e outra... Mas nada mudou, os meus olhos ainda são os mais tristes que
vi nas últimas horas.
A
tristeza é uma filha da puta, não é a puta, a puta não é mais nada desde que se
deitou pela primeira vez com alguém por dinheiro. A filha da puta é que é
julgada e condenada antes mesmo de sair do útero, e se a tristeza tivesse uma
forma humana, certamente seria a dela.
Caminho
pela rua, gostaria de saber para onde estou indo, mas já não sou a mesma de
ontem e sou aquela do ano passado, que foi ontem. E ser aquela é sempre mais
doloroso do que ser essa, porque aquela é o que fui pela primeira vez e que não
serei pela última.
A
tristeza é uma ordinária, que intimida qualquer esperança e cria qualquer fé,
que simula crenças até que elas pareçam reais em cada aspecto da sua
irrealidade, não quer companhia, quer súditos, é rainha em sua crueldade e
diverte-se com a desgraça alheia, não tem moral nem bons costumes, furta
sorrisos e assombra sonhos.
O
tempo é como um ressaca de whisky baleado, sei disso, porque há tempos que não
espero sentir dores, aprendi a tomar analgésicos e a fugir antes mesmo de
senti-las, e tantas vezes não é suficiente. Os anos nos ensinam a temer desde
gentilezas até a maneira familiar com que os móveis estão dispostos em casa, eu
sempre acabo mudando todos de lugar, só os meus sapatos velhos é que permanecem
embaixo da minha cama, a espera dos meus pés, e de mais caminhos.
A
tristeza é o fim da música, é o fim da rua, é fim da fase, é fim da frase, é o
falso começo. É a conspiração, é a vaidade, é a impressão de que se é superior,
é a dobradiça da porta que dá para o quintal mas não para a rua, é o soluço
guardado, é o fardo, é um fardo, é a constatação, a fuga do crime nunca
cometido, mas temido, é nunca caber-se em si de tanta dor.
Feliz
Ano Novo! Que os seus sonhos se realizem, que as suas paixões sejam
correspondidas, que as suas contas estejam cheias, suas mesas fartas e suas
saúdes ótimas. E que vocês possam ir aos domingos na igreja para agradecer por
suas felicidades e pedirem por si e pelos seus, e que cada vez que chegarem em
casa continuem erroneamente sentindo-se superiores aos homens boêmios nos
botequins.
Feliz
Ano Novo! Que o Brasil ganhe a Copa e ganhe as guerras, é tudo por isso mesmo
não é? Uma questão de território. Que vocês tenham sempre tempo de se acharem
muito cultos e inteligentes e conhecedores, enquanto são ignorantes o
suficiente para supor que os textos políticos, filosóficos e sociais que leem os
tornam mais sábios que a lavadora num povoado do Piauí.
Feliz
Ano Novo! Que vocês continuem a comer bem e a votar em interesse próprio, que
continuem a se importar demais consigo mesmos e a nunca admitirem um erro ou um
equivoco, que não ouçam, e façam tipo pra parecerem melhores do que são, sem
nunca dar-se conta que fazer tipo é coisa pra quem se gosta pouco. Que mintam e
traiam e iludam e comovam com a mesma singeleza com que beijam a testa de
alguém. Que se cubram de joias, e roupas caras, e regalias pra esconderem a
humanidade que supõem os fazerem fraquejar, que permaneçam submetendo as
pessoas as suas crueldades travestidas de sinceridades.
Feliz
Ano Novo! Que as suas capacidades de fazerem sexo sem nenhuma estima permaneçam
intactas, e que vocês nunca percebam que essa falta de estima os atingem
também. Que seus olhos continuem a contemplar as mais belas paisagens e as suas
cegueiras continuem imperceptíveis para os que lhe rodeiam como é para os que
passam por vocês.
A
tristeza é pior do que estar a sete palmos da terra, é nunca estar onde se
está, e não somente, mas também por isso, diferente dos meus olhos, eu nem
estou triste hoje, que hoje é o dia 1º de Janeiro, e a minha obrigação é achar
tudo lindo, enquanto na rua atrás da minha um garoto é torturado pelo pai, e a
mãe é tão mais filha da puta do que própria tristeza que sente, que deita-se
todas as noites ao lado desse homem, o chama “bem”, e abre as pernas para ele
sempre que ele quer.
Portanto...
Feliz Ano Novo! Peço perdão pela lucidez melancólica de considerar cada
diversão dessas datas festivas de fim de ano, solitárias como a esperança que
carregam. Espero que vocês nunca se deem conta que quando a cidade termina há
algumas casas numa estrada de terra, e que enquanto tudo muda elas continuam
feitas de barro e areia e taipa, e que mesmo que vocês as percebam um dia,
continuem sem saber quem mora ali. É essa a minha maneira de dizer que lhes
desejo Alegria! Alegria! Tiara Sousa
4 comentários:
UAU. Esse texto incomoda, perturba e é genial exatamente por isso. Voltou bem!
Obrigada!!! A intenção é exatamente essa, perturbar e incomodar, essa é uma forma de tomar consciência, uma dose cavalar de realidade.
Sem palavras....."alegria... alegria"!!!
Genial..!
Uau! Obrigada Uma nota só!
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