Quis
ser a musa dos poetas, aqueles amores não correspondidos, aquele andar sinuoso
em misto comportado, aqueles cabelos ondulados e leves no meio da costa. Aquela
que sorria com o vento e paralisava os homens nos bares no fim de tarde, e provocava
os idosos nas praças a jogar dominó. Pensei em ser a musa dos poetas,
libidinosa de tanta pureza, pura de tanto libido. Mas de tão poetisa, nunca
fui.
Fui
a garota dos bares a sorrir dos próprios destemperos e cantarolar pela boemia,
fui o discurso dos padres sem sol, sem lar, sem gosto e com todos os apelos do
mundo na pele ressecada de desejos contidos. Eu fui cada coisa que escrevi, só
por gostar da dor alheia.
Fui
o travesti na esquina, seminu, semicru, semideus, a espera de nada, nada de
carinho, nada de humano, nada de fé. Fui a pele marcada pelo sol, pela lida,
pelo descaso. Fui a barriga d’água da criança que não sabe sorrir. Fui o preto
da favela, os olhos pretos, cabelos pretos, sonhos pretos. Fui a senhora
lavando roupas na beira do rio, contando histórias de mãe d’água pros netos
esquecerem a fome, mas não se esquece a fome, e ela finge não saber. Fui o
flanelinha que esqueceu de vigiar os carros porque viu uma mulher bonita e bem
vestida atravessar a rua sozinha e se perdeu na visão do que nunca será dele.
Fui o esgoto estourado na rua mais alegre da cidade, porque alegria é poder
ouvir e respirar. Fui o gordo de duzentos quilos que a todo instante é criticado
por quem tem o peso da maledicência, fui a espera do telefonema do dia seguinte
do sexo vazio. Fui o nordestino retratado e insultado nas redes sociais por quem
.não aprendeu a perder, e só por isso nunca, nunca fui a musa de nenhum poeta.
Sonhos
são tolos, pensei, mas retrucaram-me que não, sonhos não são tolos, e por fim
acabei aceitando, sonhos são conscientes. Mas, afinal, onde mora a consciência diante
de tudo?
Acabei
sendo a musa dos sonhos eróticos do rapaz mais lírico da cidade, aquela que
cheirava a flores mesmo quando suava agonias, aquela que sangrava romantismo
mesmo quando praticava travessuras.
Aceitei
por fim a minha condição de musa dos sonhos eróticos, porque talvez e só talvez
nos sonhos eróticos eu não seja essa moça tímida de sorriso aberto, nem
carregue tantas dores alheias pelas células vivas do meu corpo, nem construa
frases remoendo feridas como seria nos poemas. Nos sonhos eróticos, talvez o
meu calor defina e sobressaia os meus olhos tristes, e a minha boca envie
recados alegres para o mundo inteiro, talvez ali eu ainda seja a menina que
nunca sofreu uma decepção na vida e que creia em príncipes tal qual os das
histórias bonitas. Talvez em toda a ação erótica dos sonhos eróticos eu
apresente as virtudes e as virtudes me apresentem enquanto um, finalmente, ser
livre.
Mas quem diria ainda
deixaria por dizer, sentimentos se confundem e sonhos são somente sonhos,
porque aqui, no mundo real é a mesma coisa de ontem, o mesmo sol e o mesmo
acaso, os mesmos telefonemas e os mesmos amigos, o mesmo calor e simbioses. Só
que algumas coisas se perderam, e tem muita gente vazia por aí, muita gente que
não sabe saber de tudo sempre e fala o que não devia por que pensa que sabe de
tudo e usa uma sinceridade vazia só pra magoar os outros, gente que me faz
acordar com medo todos os dias. E eu aqui, entre o céu e o infinito, caminhando
de pantufas por esses chãos de vidro enquanto sozinha povôo os sonhos eróticos
do rapaz mais lírico da cidade e erotizo a realidade turva de rapazes que nunca
serão líricos como ele, porque só ele se conhece tão pouco a ponto de
necessitar de mim como seu inconsciente e porque só ele me conhece tanto a
ponto de saber que mesmo quando sou a musa sensual dos seus sonhos mais físicos
eu não deixo de ser cada coisa que escrevi, só por gostar da dor alheia. Tiara
Sousa
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