Ela
fez mar. A estante de Madeira velha na sala. A dor no quarto. E todos os dias
estavam noturnos. Quem já amou o vazio conhece a tristeza do até mais. O até
mais é o fim da pureza, é o começo da canção que evitamos ouvir, é a escova de
dentes que ele comprou pra deixar na casa dela, é o quanto essa escova ficou
importante, mais do que o lustre de Cristal e o livro de capa preta na última
gaveta da cômoda, a gaveta de memórias, que de repente tornou-se tão
insignificante perto da última vez que ele escovou os dentes na pia do banheiro
dela.
Ela
desenhou crianças no papel reciclável.
Ela queria era reciclar a vida. Ela queria era atravessar Avenidas
diferentes. Ela queria era querer alguém que não caminhasse como ele, alguém
que não beijasse como ele, que não fizesse amor como ele, que não tocasse como
ele, tocando o mundo inteiro enquanto tocava o corpo dela.
Ela
desistiu de tentar construir conformidades, quem se conforma não conhece o frio
que é o fim. O fim é o último sorriso de uma vida. Quem formata imagens não se
concentra, não se agarra na perna de alguém pedindo pra não partir. Como se
pede amor? Como se mendiga carinho? Como virtudes vão embora?
Ela
voltou numa praça, e se lamentos lamentam, lembrou que ali foi feliz. Eram os
mesmos bancos, e as mesmas árvores, e a mesma incredulidade dos mais velhos a
passar por ali, só ela não era a mesma. Afinal, quem é a mesma depois do depois
do depois? Quem é a mesma de antes do antes do antes?
Ela
teceu sozinha um tecido de virtudes que foram dela. Ela lembrou de um conto de
Drummond em que ele falava de amor sem citar o amor. Ela pediu o fim da guerra
a própria guerra. Ela pediu paz ao seu próprio anseio por paz. Ela quis se
virar em um dúzia pra tentar ser meia dúzia dentre as dúzias de coisas que ela
foi um dia. Ela lembrou que nunca disse a ele porque precisava dele, não era pra
trocar as lâmpadas, nem pra consertar o encanamento, ela precisava dele de um
jeito bobo, de um jeito velho, de um jeito assim meio inconseqüente e meio
firme. Ela precisava dele pra levantar todos os dias, abrir as janelas e
dizer-lhe bom dia, era só isso. Finalmente depois de tanto tempo ela pôde
entender o que sentia quando não sentia mais nada que não se materializasse em
dor. Sem ele ali, com o seu sorriso sério, e seus hábitos irritantes e seu
cabelo despenteado, o dia não começava, o dia não começava nunca. E o que ela
ia fazer sem o dia? E foi aí que ela fez mar... Fabricou ondas e ventos e sal e
água dentro do peito onde ela pensava que ele iria viver pra sempre.
Ela importou sentimentos e se permitiu errar erros dela e por ela.
E o coração dela nunca mais foi o mesmo, nunca mais fez voos tão altos, nem se
jogou pelo chão, nem se entregou aos momentos. Ela tinha medo, não de sofrer
novamente, nem de perder mais uma vez, ela tinha medo era de gostar tanto e com
todas unhas, e com todos os fios de cabelo, e com todos os poros, e com todas
as zonas erógenas do corpo e da mente. Ela tinha medo de que novamente
necessitase de alguém pra que o dia começasse. Mas isso não era amor, nunca
foi. O amor não é assim, o amor é começar o dia juntos ainda que separados por
quilometros de distancia. O amor é generoso e recíproco, ele não te enlouquece,
te acalma. Então ela fez mar, congelou todas as águas de todos os oceanos e guardou
dentro do peito, na espera e na esperança do dia em que alguém chegasse e
descongelasse seu coração gelado, pra que enfim pudessem começar dias juntos e
de mãos dadas reciclar a vida, e de mãos dadas atravessar Avenidas diferentes,
e de mãos dadas descobrirem o amor. Tiara Sousa
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