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Imagem do site http://sentimentosdaevinha.tumblr.com/ |
Tenho
uma dor no osso da perna direita desde os meus sete anos, e tenho uma dor ainda
pior no osso da perna esquerda desde meus cinco, elas já estão aqui há tantos
anos que semana passada quando elas não apareceram, senti que tava faltando
alguma coisa muito importante, e não gostei. Me habituei a essas dores, porque
quando eu tô sozinha, sozinha mesmo, sozinha de gente, de bicho, de TV, de
internet, de livros, de músicas, de vícios, são essas dores que me fazem
companhia, e elas me são tão familiares e recorrentes e antigas e espaçosas e
incomodas e interessantes, que na semana que elas desapareceram eu jurei que
nunca mais ia ficar assim, sozinha de tudo. É claro que era mentira.
A
gente se habitua as mais inusitadas coisas, eu por exemplo me habituei a essas
dores e a um monte de outras dores, algumas que doíam tanto que eu nunca
identifiquei o lugar exato onde elas habitavam. Não faço ideia de como seria a
vida sem dor, acho que ninguém faz, é só que as pessoas não tem o hábito de admitir
isso.
Na
minha infância costumava ir a feira com a minha avó, eu e a minha prima
concorríamos pra decidir quem iria em determinado domingo ser a companhia dela
na feira, era um programa péssimo, muita gente, muito barulho, muitos cheiros,
eu detestava aquilo, mas eu queria ir todos os domingos, porque depois de fazer
todas as compras dos alimentos, a minha avó usava os últimos trocados e me
deixava escolher alguma coisa do armarinho da feira, geralmente eu escolhia uma
presilha de cabelo ou um anel de plástico, voltávamos pra casa caminhando, com
aquelas sacolas pesadas, e muito cansadas, mas sempre valia a pena por causa
daquelas lembranças. Mais tarde, já adulta, eu fiquei tentando entender porque
ganhar aquelas coisas era tão importante, já que dentro das possibilidades da
minha família eu tinha tudo, a melhor escola, os melhores brinquedos, as
melhores roupas, porque tanto sacrifício por aquelas bobagens baratas, cheguei
a conclusão que não eram as lembranças, nunca foram, era o olhar da minha avó enquanto
me dava elas. Muita coisa mudou desde aquele tempo, minha avó não vai mais a
feira, ela tem 80 anos e sua idade já não lhe permite, eu não sou mais criança,
as presilhas de cabelo saíram de moda e consequentemente dos armarinhos das
feiras, e os anéis de plásticos já não cabem nos meus dedos, e todos os
domingos quando a minha mãe acorda cedo pra ir à feira com a minha tia e fazer
as compras da minha avó, ás exatas sete horas, eu sinto a dor de não sermos eu e a minha avó a irmos à feira, mesmo ela ainda me olhando daquele mesmo jeito cada
vez que me dá algo. E esse é o tipo de dor que se um dia passasse ia me fazer
uma falta imensa.
Soa
um tanto destrutivo que dentre tantas coisas no mundo, os seres humanos ainda
sintam falta exatamente das dores, de algumas delas pelo menos, não posso falar
pelo resto da humanidade, mas as minhas dores são guardadas em caixas
imaginárias junto com as suposições do que eu teria sido ou de como estaria
hoje sem elas. Por isso elas fazem falta de vez em quando, e por isso gosto de
tê-las por perto, é porque sem elas toda a minha formação estaria condenada ao
fracasso e eu jamais seria a mesma. Provavelmente pareceria mais sábio dizer
aos mais jovens que fujam das dores, das físicas e emocionais e daquelas que de
tão emocionais transfiguram-se físicas, mas não é. As dores são pra ser
aproveitadas, contempladas, revisitadas, impróprias. A dor do primeiro amor, e
do último; Do adeus, e do até mais; A dor de inventar uma dor pra se refazer de
uma ainda pior, a dor da ilusão despida e da realidade coberta, a dor de saber
que nada nunca volta, e que nada nunca é como deveria ser. A dor é pra ser
desfrutada, como a pele que desfruta do sol.
Essa semana a dor no
osso da minha perna direita, aquela que tenho desde os sete anos, voltou. E a
dor no osso da minha perna esquerda, aquela que tenho desde os cinco e que é
ainda pior, também voltou. Poderia estar me lamentando, afinal nada se compara
ao desprazer de uma dor reavivada, mas não, eu apenas fico aqui, sentada,
usando o gel e o analgésico de sempre, porque a primeira vez que as minhas
pernas doeram eu me desesperei, hoje não, hoje elas podem doer a vontade, já
sei que passo por elas, que sou maior do que elas. É assim a vida... Depois que
a gente passa pelas dores a primeira vez, a gente descobre que quanto maior a
dor, maiores nós nos tornamos enquanto passamos por ela. E no fim das contas,
nem é da falta da dor nos ossos das minhas pernas que eu tava falando, mas acho
que todo mundo que já doeu assim tanto, assim com o cabelo, com os dentes, com
os dedos, com a palma da mão, com os olhos, com a nuca, com a alma, já sabe, já
percebeu, que definitivamente eram de outras dores que eu falava. De outras
dores. Tiara Sousa
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