segunda-feira, 6 de fevereiro de 2017

OUTRAS DORES

Imagem do site http://sentimentosdaevinha.tumblr.com/
Tenho uma dor no osso da perna direita desde os meus sete anos, e tenho uma dor ainda pior no osso da perna esquerda desde meus cinco, elas já estão aqui há tantos anos que semana passada quando elas não apareceram, senti que tava faltando alguma coisa muito importante, e não gostei. Me habituei a essas dores, porque quando eu tô sozinha, sozinha mesmo, sozinha de gente, de bicho, de TV, de internet, de livros, de músicas, de vícios, são essas dores que me fazem companhia, e elas me são tão familiares e recorrentes e antigas e espaçosas e incomodas e interessantes, que na semana que elas desapareceram eu jurei que nunca mais ia ficar assim, sozinha de tudo. É claro que era mentira.
A gente se habitua as mais inusitadas coisas, eu por exemplo me habituei a essas dores e a um monte de outras dores, algumas que doíam tanto que eu nunca identifiquei o lugar exato onde elas habitavam. Não faço ideia de como seria a vida sem dor, acho que ninguém faz, é só que as pessoas não tem o hábito de admitir isso.
Na minha infância costumava ir a feira com a minha avó, eu e a minha prima concorríamos pra decidir quem iria em determinado domingo ser a companhia dela na feira, era um programa péssimo, muita gente, muito barulho, muitos cheiros, eu detestava aquilo, mas eu queria ir todos os domingos, porque depois de fazer todas as compras dos alimentos, a minha avó usava os últimos trocados e me deixava escolher alguma coisa do armarinho da feira, geralmente eu escolhia uma presilha de cabelo ou um anel de plástico, voltávamos pra casa caminhando, com aquelas sacolas pesadas, e muito cansadas, mas sempre valia a pena por causa daquelas lembranças. Mais tarde, já adulta, eu fiquei tentando entender porque ganhar aquelas coisas era tão importante, já que dentro das possibilidades da minha família eu tinha tudo, a melhor escola, os melhores brinquedos, as melhores roupas, porque tanto sacrifício por aquelas bobagens baratas, cheguei a conclusão que não eram as lembranças, nunca foram, era o olhar da minha avó enquanto me dava elas. Muita coisa mudou desde aquele tempo, minha avó não vai mais a feira, ela tem 80 anos e sua idade já não lhe permite, eu não sou mais criança, as presilhas de cabelo saíram de moda e consequentemente dos armarinhos das feiras, e os anéis de plásticos já não cabem nos meus dedos, e todos os domingos quando a minha mãe acorda cedo pra ir à feira com a minha tia e fazer as compras da minha avó, ás exatas sete horas, eu sinto a dor de não sermos eu e a minha avó a irmos à feira, mesmo ela ainda me olhando daquele mesmo jeito cada vez que me dá algo. E esse é o tipo de dor que se um dia passasse ia me fazer uma falta imensa.
Soa um tanto destrutivo que dentre tantas coisas no mundo, os seres humanos ainda sintam falta exatamente das dores, de algumas delas pelo menos, não posso falar pelo resto da humanidade, mas as minhas dores são guardadas em caixas imaginárias junto com as suposições do que eu teria sido ou de como estaria hoje sem elas. Por isso elas fazem falta de vez em quando, e por isso gosto de tê-las por perto, é porque sem elas toda a minha formação estaria condenada ao fracasso e eu jamais seria a mesma. Provavelmente pareceria mais sábio dizer aos mais jovens que fujam das dores, das físicas e emocionais e daquelas que de tão emocionais transfiguram-se físicas, mas não é. As dores são pra ser aproveitadas, contempladas, revisitadas, impróprias. A dor do primeiro amor, e do último; Do adeus, e do até mais; A dor de inventar uma dor pra se refazer de uma ainda pior, a dor da ilusão despida e da realidade coberta, a dor de saber que nada nunca volta, e que nada nunca é como deveria ser. A dor é pra ser desfrutada, como a pele que desfruta do sol.
Essa semana a dor no osso da minha perna direita, aquela que tenho desde os sete anos, voltou. E a dor no osso da minha perna esquerda, aquela que tenho desde os cinco e que é ainda pior, também voltou. Poderia estar me lamentando, afinal nada se compara ao desprazer de uma dor reavivada, mas não, eu apenas fico aqui, sentada, usando o gel e o analgésico de sempre, porque a primeira vez que as minhas pernas doeram eu me desesperei, hoje não, hoje elas podem doer a vontade, já sei que passo por elas, que sou maior do que elas. É assim a vida... Depois que a gente passa pelas dores a primeira vez, a gente descobre que quanto maior a dor, maiores nós nos tornamos enquanto passamos por ela. E no fim das contas, nem é da falta da dor nos ossos das minhas pernas que eu tava falando, mas acho que todo mundo que já doeu assim tanto, assim com o cabelo, com os dentes, com os dedos, com a palma da mão, com os olhos, com a nuca, com a alma, já sabe, já percebeu, que definitivamente eram de outras dores que eu falava. De outras dores. Tiara Sousa

Nenhum comentário: