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Imagem retirada do site A Escotilha |
É
a sétima vez que tenho esse mesmo sonho, isso já tem dois meses, exatamente o
mesmo sonho.
Nele
eu caminho pela rua, mas a rua só existe pra mim, para o restante das pessoas
ela é uma ilusão, como se fosse um cenário montado num palco de um teatro
qualquer do subúrbio de uma cidade caricata em que tudo é comum. E atrás desse
palco, olhos. Sem camarim, sem métrica, sem figurino, sem pintura. Neles, uma crueldade
sensível, dessas que só encontram raramente e em pessoas que não importa a
conjuntura familiar, já nasceram sem lar e sem rumo, ainda que dentro de um lar
cheio dos melhores sentimentos e intenções.
Dessas,
que são o próprio subúrbio, sem os hábitos, os modos, a liberdade despretensiosa,
mas ainda assim o subúrbio, de tudo o que te disseram que era coerente ser, e
ás vezes desconheço esses olhos, que são castanhos, escuros, pequenos, daqueles
que num sorriso quase se fecham, ás vezes não, ás vezes esses olhos são meus.
Tento
encontrar esse palco, e os olhos atrás desse palco, influenciada talvez pelos
filmes da sessão da tarde que assisti na infância quase creio ser possível,
imagino uma máquina do tempo que me leve ao tempo dos outros, aqueles para a
qual a rua ainda é uma ilusão, aqueles que enxergam o cenário, o palco, os
bastidores. Confusa, massacrada e violada pela espera de uma máquina do tempo
que não chega pra me tirar dali, do meu tempo, corro sem direção, mas não há nada,
então dou de encontro com um homem lindo, aos meus padrões é claro, o que lhe
confere ser um tanto desleixado, com um modo incompleto de olhar, ele parece se
questionar sobre alguma coisa, talvez sobre a vida, a economia ou alguma mulher
desinteressante e comedida, talvez uma dessas novas feministas que saem por aí
apenas de sutiã vermelho e militam em redes sociais, e só de pensar que esse
tipo de mulher pode ser quem rouba os sentimentos e pensamentos dele, me calo,
desisto de pedir ajuda, perco o interesse ainda verde e continuo a caminhar...
Canso,
resolvo sentar num banco de cimento velho e quebrado numa praça em que crianças
fingem ser crianças, como se ainda fosse possível ser só isso num mundo tão
afetado e disforme, na minha cabeça uma música de Marisa Monte e uma carta que
nunca escrevi, um e-mail que nunca enviei, uma paixão platônica da pré-adolescência
e o “Estrangeiro” de Camus. Olho em volta e a rua continua a mesma, real, sem cenário
e sem palco, e continua só existindo pra mim, e continua sendo apenas uma
ilusão para todo o restante das pessoas, e então eu tento chorar, mas não
consigo, e me desespero pela conclusão que o tempo não volta e que vai
continuar sempre assim, tudo real.
Então acordo. Abro o
notebook e num site de buscas, tento encontrar o significado desse sonho, mas
não encontro, nunca encontro, nenhuma das sete vezes, o meu impulso é ficar
estática, deitada na minha cama esperando despertar, com medo de levantar e ir
até a rua e perceber que assim como no sonho ela é real, porque se ela for real
vai deixar de existir dentro de mim, e vai fazer sentido, e coisas com sentido
me atordoam. Mas não sigo meu impulso imediatamente, levanto corajosamente
lembrando que os mais velhos e mais sábios costumam dizer que a gente só
aprende na dor, que só na dor crescemos e somente diante dela entendemos as
coisas, então decido sair, tomo banho, me visto, mas cada vez que olho pela
janela o mundo é um lugar pior, e assustada acabo ficando, pensando nesse sonho
repetitivo e incomodo, pensando na rua que vejo, e no cenário, no palco, nos
bastidores que não encontro... Concluindo que a arte é tímida, se expressa
pelos becos escuros dos subúrbios manchados de sangue e suor do povo, que o palco
é a manifestação da arte, e que a arte meus caros artistas, trabalhadores,
intelectuais, apreciadores... A arte é os bastidores, os olhos sem camarim, sem
métrica, sem figurino, sem pintura, olhos que podem ser seus e que podem ser
meus. E então compreendo tudo, sobre esse sonho que me diz que a rua é uma
ilusão para todos e que apenas eu a enxergo como real. Compreendo tudo... Esse
sonho que se repete é o efeito do tempo sobre mim, é que ás vezes eu acho que acordei
de todos os meus sonhos, e só de achar isso, acordo de muitos deles. Tiara Sousa
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