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Tenho
9 anos e sou apenas mais uma garotinha esperando que o pai a ame mais que o
mundo e que a mãe dê mais atenção a ela do que ao trabalho, meu penteado se
resume a duas tranças horrorosas que a minha tia fez com todo carinho, acho que
nunca terei a sensível capacidade de compreender como se consegue fazer coisas
tão horrorosas com tanto carinho. Estou sentada assistindo aula de logaritmos
numa sala de uma escola burguesa, eu sou a única preta da turma, sou a única
com essa tranças horrorosas, sou a única escrevendo poesia ao invés de copiar a
aula, sou a única pensando na rachadura do meu banquinho preferido que fica na
cozinha da minha casa, sou definitivamente a única imaginando que os logaritmos
são células cor de abobora fantasiadas de dias nublados pra desfilar numa
escola de samba no carnaval, ninguém mais se parece comigo, nem por fora e nem
por dentro, por isso ás vezes prefiro sentar sozinha num banco no parquinho na
hora do recreio ao invés de ir brincar. Tem uns quinze minutos que eu não
entendo nada do que a professora tá falando, há uns meses atrás ela e as
diretoras chamaram a minha mãe pra uma conversa, disseram que eu vivia no mundo
da lua, que era muito calada e pouco sociável, que eu parecia fazer questão de
não me encaixar e que um acompanhamento psicológico seria de grande ajuda para
o meu desenvolvimento intelectual e social, minha mãe me levou a psicóloga, depois
de diversas sessões voltou a escola com um papel que dizia que tudo o que eu
tinha era um QI alto e que meus problemas de sociabilidade deveriam ser superados
com a contribuição didática também da instituição de ensino, bem feito pra
escola, agora a professora tá tendo que me aturar, e o pior é que eu gosto da
escola e gosto da professora e adoro o fato de ela ter que me aturar.
Tenho 18 anos, estou sentada num barzinho chamado
Bagda Café com o meu pai e mais um monte de amigos, estou tomando uma cerveja
e falando coisas engraçadas, quem diria que a menina que eu fui um dia,
isolada, hoje estaria cercada de gente, sorrindo, conversando e brincando, agora
esse é o meu recreio, e dessa vez eu participo da brincadeira, enquanto tiver sob
o efeito do álcool eu posso ser tudo o que esperam de mim, o problema é que eu
esperava outras coisas de mim. O namorado da vez também tá sentado, ele parece
preocupado comigo, como se eu fosse de vidro e pudesse quebrar, mal sabe ele
que eu já nasci quebrada, não tem nada em mim inteiro com exceção dos sonhos e
parece que a qualquer momento eles também quebrarão, porque tenho visto tanta
coisa que tá ficando difícil acreditar no mundo que eu inventei, um mundo onde
a dobradiça da porta esteja em sintonia com a havaiana que esqueci no meio da
sala e a sala esteja em sintonia com o roteiro do filme da sessão da tarde e a
sessão da tarde esteja em sintonia com os meus desejos mais oblíquos e infantis.
E que nada nunca tenha que deixar de ser exatamente como acontece na minha
imaginação, um mundo perfeito, em que nenhum nó seja cego e tudo possa ser
desfeito com princípios e eloquências agradáveis.
Tenho 20 e poucos anos, estou num paraíso de
cidadezinha no meio do nada, encontrei um camping legal pra ficar, tenho alguma
grana, muita vontade de esquecer do que era pra ser e acabou não sendo e a
vista mais bonita da cidade, mas sei que não vou ficar muito tempo por aqui,
meu filho tá me esperando pra crescer comigo e eu entendi desde a gravidez que
pra eu crescer preciso tá perto dele também. Hoje vai ter uma balada onde todos
os turistas vão estar, já me arrumei e não vou perder, fiz amizade com uma
galera de Fortaleza, da Colômbia, da Dinamarca, da Alemanha e da Argentina,
eles são divertidos e parecem estar tão perdidos quanto eu, já saquei que vou
acabar me apaixonando por alguns deles e escolher um vai ser a parte mais
difícil do meu dia, é legal quando a parte difícil do dia é a mais fácil do
ano, então acho que já comecei bem, depois vou dormir numa barraca com o som
dos pássaros e a vista das estrelas e do mar, aqui não tem TV, internet,
jornais e nada que me afunde na realidade, somente eu, culturas diversas e a
distancia efêmera de tudo, acho que não vou sair daqui a mesma, e talvez eu
tome um banho de mar quando amanhecer.
Tenho
31 anos, quase 32, tem duas horas que espero o momento em que eu consiga me sentir livre sem
analgésicos, ou que a inércia não me faça voltar varias vezes uma cena de filme
ou seriado que eu goste só por precisar daquela sensação, passei a usar mais sutiã e vestir menos
branco, abandonei o celular descarregado e trincado em algum canto da casa,
conclui que não precisava mais dele quando ele me deixou no momento que eu mais
precisava, discuti com uma das minhas melhores amigas antes de antes de ontem,
a gente sempre discute assim umas duas ou três vezes ao ano, geralmente eu não
discuto com ninguém fora do meu período de TPM, não é da minha natureza, eu
acho, mas tudo bem discutir com ela, porque provavelmente ela está entre as dez
pessoas mais diferentes de mim no mundo e contraditoriamente ela também está
entre as dez que eu mais amo, e eu sou egoísta demais pra compreender a
generosidade dela e intolerante demais pra admitir que talvez ela só quisesse
ajudar. Li três livros no último mês, era pra ser cinco, dois eu desisti,
assisti uns dois seriados, fumei umas trinta carteiras de cigarro, nunca mais
liguei a TV, me apaixonei por alguma coisa ás 15 horas da terça-feira, e nas
7:30 hs da quarta eu já não sentia mais nada, perdi as duas chaves do carro num
intervalo de dois meses, perdi as duas chaves de casa no mesmo intervalo, perdi
7 quilos, sou boa em perder, mas tá tudo no lugar, o meu quadro das três
meninas de costa olhando alguma coisa que nunca vou deixar de imaginar o que é,
no lugar; Os meus vestidos longos, no lugar; A minha mochila preta, no lugar;
Os meus olhos e pele e saliva e vagina e orelhas e ego e coração e dedos e cérebro,
no lugar... É um saco essa minha vitória tão arduamente conquistada de estar a
um bom tempo sem dar o fora de mim, e tudo isso não quer dizer muita coisa,
além do quanto há hipocrisia em se ficar mais velho.
Porque no decorrer da vida vamos nos transformando
num resumo clichê das auto versões que deixamos pelo caminho, e não importa o
quanto a gente aprenda, quebre a cara, vire jogos, ensaie modos ou se enquadre
nos padrões sociais, no que esperam de nós e no que nos dizem que é ser maduros,
a nossa versão principal será sempre aquela mais antiga da qual se tem
lembrança. E eu ainda sou a menina de 9 anos que não consegue se encaixar, e
pior, que detesta ter que se esforçar todos os dias pra se encaixar, ainda
espero que
o meu pai me ame mais que o mundo e que a minha mãe dê mais atenção a mim do
que ao trabalho, e na única lembrança que tenho de logaritmos eles são células
cor de abobora fantasiadas de dias nublados pra desfilar numa escola de samba
no carnaval. Tiara Sousa
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