quarta-feira, 14 de março de 2018

AOS QUE SABERÃO EXATAMENTE DO QUE ESTOU FALANDO


Fios de cabelo caindo pelo rosto incomodam ela. Assim como dias dinâmicos e expectativas frustradas, e o fato de que nem todo mundo sabe lidar com a dor. Ela gosta do obscuro, do inevidente, latente, subentendido, confuso, oculto, encoberto, inacessível, inexplicável, indecifrável, inabordável, intratável, de quem pinta o céu de laranja, as nuvens de amarelo e o sol de lilás, mas ela mesma não é assim. (E os incoerentes saberão exatamente do que estou falando).
Por vezes ela sente-se a coadjuvante de um dos poemas de Sylvia Plath, como a parteira que bate nos pés da protagonista de “Morning Song”, ou o anestesista que recebe as histórias de “Tulip”. Por vezes ela finalmente sente-se a protagonista, mas de um poema que Plath sequer escreveu. É que ela concebe o cotidiano como ácido, é que algumas vezes é tudo ácido, a goteira no terraço, a música no CD, o fim do dia, o inicio da noite, o presságio de um novo amor, os estilhaços de um amor antigo. É que ela quer morar dentro de uma música dos Beatles, de um conto de Osman Lins, de um soneto de Camões, de um roteiro de Almodóvar, e ela quer tanto que fica sem lar, transitando em meio a palavras que nem são suas, que sequer acomodam-na. E tentar, é só tentar, é nunca ter um lar, é ser um andarilho, um itinerante de suposições vagas de alguma coisa amarga, nostálgica e misteriosa. (E os sonhadores saberão exatamente do que estou falando).
Há dias em que tudo se esgota, a enfraquece, e então ela senta numa velha cadeira de madeira reformulando e pensando nos detalhes do rosto do último homem a quem ela se entregou, é que ela ficou olhando ele por horas enquanto ele dormia, tentando decorar cada traço, cada linha de expressão, cada detalhe facial, pra que quando ele partisse, ou ela, nada fosse esquecido, pra que como de costume ela não conseguisse arrebentar os pontos que ele costurou. (E os românticos saberão exatamente do que estou falando).
Ela foi amada por momentos distintos e homens distintos, mas nunca parecia ser amor suficiente, e desde a primeira vez tava tudo ferido, ela sangrava por sentir-se dois e nenhum, mas nunca um, nem quando ele tava dentro dela. Fazer o que, ela tem o péssimo hábito de querer salvar as pessoas delas mesmas, a família, as amigas, os amigos, o padeiro, a arquiteta, o poeta, o mendigo, o burguês, os homens por quem se apaixona. E ás vezes ela chega perto, outras vezes não, e ela sempre conclui a mesma coisa e com a mesma tristeza, que essa história de querer salvar diz mais sobre ela do que sobre qualquer outra coisa e pessoa, e é tão possível que tamanho altruísmo seja um egoísmo fantasiado, e que tentar salvar seja a forma que ela encontrou de confrontar a realidade de um mundo ao qual ela não se adapta, um mundo sem fadas madrinhas e lâmpadas mágicas. (E os inadequados saberão exatamente do que estou falando).
Ela vive para os finais, mas sabe esperar por eles, afinal não lhe agrada saber como as coisas terminam sem o processo, sem o desenvolvimento, pois sem estes, o final, ainda que feliz, não lhe basta, é sempre frustrante. É como enterrar um objeto estimado, é como maldizer teorias atemporais, é como fechar os olhos para a chuva, é como se permitir sentir depois de uma decepção. É corajoso, mas não basta. (E os céticos saberão exatamente do que estou falando).
E eu decidi escrever sobre muitas coisas, ou a escrita me decidiu, já não sei bem... Mas num tempo de 12 minutos, talvez 14, ou 16, ou de horas e dias, eu poderia fazer alguém se reconhecer nas minhas palavras, e pra mim é o que vale, é o que sempre valeu, palavras unidas que chegam a alguéns. E eu decidi escrever sobre ela, não porque ela merecia, ou porque eu precisasse, mas porque a cada momento que passando pelo corredor me deparo com o espelho, é a ela que vejo, feita e ornamentada e consagrada e invariável e tola e enraizada e entranhada e íntima e intrínseca e arraigada e estabelecida e fixa e firme e inveterada e inalterável e sólida, a minha imagem e semelhança. (E os escritores saberão exatamente do que estou falando, exatamente.). Tiara Sousa

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