Finalmente
entendi o que me move, e o que me move não é a Primavera, nem o Verão, nem o
Outono, nem o Inverno, o que me move é a promessa de uma Primavera, é a
promessa de um Verão, é a promessa de um Outono, é a promessa de um Inverno, é
a paixão. Por isso gosto mais da ideia de alguém do que de alguém de fato, e
nunca mais ousei desmontar as minhas formas, estou a margem de mim, sorrio das
superfícies. Mas nem sempre foi assim...
Aos
9 anos eu fui levada pela primeira vez a psicóloga. As diretoras da escola não
me compreendiam. As professoras não me compreendiam. Os meus colegas de turma
não me compreendiam. Nem a droga do meu cachorro me compreendia. Tava todo
mundo querendo que alguém desse um sinal de como lidar comigo, alguém que
falava com os bibelôs bregas e ridículos da estante da sala da minha avó, mas
que não olhava nos olhos de ninguém por mais de cinco segundos, e cuja a
conversa mais longa que conseguia estabelecer com um ser humano que não fosse
do convívio cotidiano era Oi. E não,
não tô julgando todo mundo por querer me mandar pra terapia, eu era estranha
mesmo, eu gostava de gente comum, de passeios comuns, de filmes comuns e livros
comuns, mas mesmo assim eu era estranha pra caralho. Eu andava meio que
saltando, meu cabelo não combinava comigo, o meu corpo não combinava comigo, a
minha farda amarela de abelhinha era tão exótica que chegava perto, mas ainda
assim não combinava comigo.
A
equipe pedagógica da escola achava mesmo que eu era retardada, já a minha mãe
achava que eu iria mudar o mundo, coitada, eu tava cagando e andando pra o
mundo, eu já tinha o meu mundo, ele era só meu e nele não cabia 98% da face da
Terra (é que sempre achei tudo tão cruel
por aqui). A minha professora passou a dormir depois das onze pensando em
diagnósticos pra mim, o meu cachorro meio que me suportava (e eu amava ele), as minhas tias só queriam que eu crescesse logo e
honrasse a educação cara e sacrificada que eu recebia ficando rica, bem
sucedida e prática, mas no fundo mesmo sem entender muito sobre mim elas sabiam
que isso seria difícil (pra dizer o
mínimo), e eu, bem, eu queria aquele sorvete self service que vendia na
Lobras, e ainda quero, mas a Lobras faliu há mais de uma década.
Eu
não era triste, nem doce, nem competitiva, nem parceira, nem altiva, nem
prática, eu era estranha, puta merda gente, eu era a criança mais estranha da
escola, a mais estranha da rua, a mais estranha da casa, eu conseguia falar
sobre paranormalidade e nuances rítmicas enquanto penteava Barbies ridiculamente
loiras, altas e magras, como é que alguém com menos de 1,50m (se é que algum dia eu tive menos de 1, 50m)
poderia ser tão contraditória, terapia era pouco pra mim.
Depois
de um tempo, de muita terapia, e de um monte de teste chato, a tal psicóloga fez
um apanhado sobre a minha personalidade (oh
mulher tapada, eu não era nada daquilo que ela dizia, eu só era estranha mesmo),
e entregou um papel a minha mãe com resultados de testes afirmando que eu tinha
um Q.I bem alto, a minha mãe deu saltos de alegria e passou aquele papel na
cara de meia escola, de meia rua, de meia casa, de meia São Luís, tadinha, como
quem dizia... - Eu sempre soube, minha
filha é genial. O problema é que pra minha mãe toda criança que sabia falar
paralelepípedo era um gênio, e como eu não sabia resolver uma expressão
numérica sequer, mas tinha um vocabulário digno de gente grande, lia muito e
escrevia sobre os fusos horários sem horários e sem fusos e toda essa baboseira
poética desde os 5 anos, e claro, tinha o DNA dela, ela realmente acreditava nisso.
Ela jamais, jamais admitiria que no fundo da minha inteligência, da minha
solidão, da minha mania de me desfazer de realidades a todo segundo, da minha
incapacidade de lidar com a praticidade das coisas, da minha insociabilidade e
nata falta de simpatia só tinha uma pessoinha, um “serumaninho”, uma coisinha
estranha pra caralho, que mesmo sendo intelectualmente extravagante, sempre foi
emocionalmente limitada, sempre soube amar, mas nunca soube dizer que amava sem
combinar as palavras quase que misticamente de forma genérica e literária.
Vinte
e quatro anos depois de ter pisado pela primeira vez no consultório daquela
psicóloga eu me aprendi, assimilo a confusão que sou, mais do que isso, eu
quero a confusão. Sou disforme não porque calo, mas porque as minhas formas
gritam.
E a cada estranho no mundo,
desejo que se aprendam assim, que liguem um foda-se pra essa moda toda, pra
todo esse caos e existam onde se sentirem mais confortáveis, seja num ritual,
num mal, num conto, numa crônica, num poema, num orgasmo, num ato, num método,
numa canção, num amor, numa igreja ou de quatro num quarto de motel, pois a sua
estranheza há de caber em algum lugar. E eu ainda sou a mais estranha da
escola, a mais estranha da rua, a mais estranha da casa, puta merda gente, continuo
estranha pra caralho, só que hoje tenho a consciência de que a minha estranheza
é compacta e sempre foi, cabe num documento de Word, numa pagina de um site, na
última crônica que publiquei, cabe aqui e cabe em mim, afinal, não trata-se de
como estou, trata-se de quem sou. E eu sempre fui estranha porque o mundo
sempre me estranhou, o problema nunca foi eu ser quem sou, o problema sempre
foi quem sou não caber no entendimento limitado e ignorante de boa parte das
pessoas. E é por isso que espero que estranhos como eu me leiam, se leiam e
permitam-se serem lidos. Tiara Sousa
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