terça-feira, 22 de maio de 2018

PÁGINA 77

Imagem do site Pixabay
A minha pretensão, desde cedo, era passar pela vida intacta, como quem percorre um caminho conhecido ou como quem só viaja com um mapa em mãos. Eu queria saber dos segredos antes, conhecer os limites das dores, as sinuosidades das linhas. Fui atrás dos conceitos, das teorias, observei cada comportamento, cada distração, na esperança que me fosse revelado um algo de constante na humanidade. Mas não consegui, nunca consegui. A vida não é óbvia nem por um segundo, não há roteiro. Ela apenas acontece e dilacera.
Cheguei a pizzaria por volta das 20 hs, já eram 20h12 e nem sinal da minha pizza chegar. Eu estava entediada desde as 17 hs, tinha tentado ficar em casa ao invés de ir enriquecer dono de pizzaria, mas me frustrei com um livro na página 77, porque ali aconteceu algo que eu não suportei. O que mais gosto nos livros é isso, se algo te frustra você fecha e segue a sua existência intolerante, egoísta e mesquinha sem o livro reclamar uma linha sequer.
Os olhos castanhos da garçonete grávida me incomodaram, os olhos castanhos da menina de trança da mesa ao lado me incomodaram, os olhos castanhos do rapaz que fazia as entregas me incomodaram. Olhos castanhos sempre me incomodam. Talvez por isso meu antepenúltimo namorado tivesse os olhos pretos, e o meu penúltimo os olhos verdes e o meu último, azuis. É que passo tanto tempo pensando em tudo e em todos que só penso em mim, e me incomoda o fato de crer que toda a dor do mundo só pode caber na beleza comum e estranha de olhos castanhos. E os meus são tão castanhos que ás vezes ardem.
Eu precisava matar o tempo. Tem gente que coleciona horas, dias, fases, eu prefiro enforcar o tempo em praça publica antes que ele me enforque, antes que eu perceba que enquanto ele passa não são apenas as minhas células que vão morrendo, ou o meu colágeno que vai diminuindo, mas a minha memória toda se despe e me atravessa como uma faca, eu prefiro agarrar a porra da faca. Então fiz algo que sempre faço quando quero matar o tempo, há quem nesses momentos leia Nicholas Sparks, quem fique no celular, quem veja as últimas noticias, eu observo as pessoas em volta, porque acho que ali moram todas as histórias de Sparks, todos os passatempos dos celulares, e cabem ali todas as noticias. E já aconteceu de eu observar as pessoas a minha volta e até me encantar por elas, mas na maioria das vezes eu me arrependo da minha condição humana e saio latindo para as poucas flores que ainda encontram-se pela cidade.
Na mesa a frente da minha rapazes debatiam seus relacionamentos, é tão raro flagrar homens em conversas assim que decidi observá-los, eles falavam de mulheres que passaram pelas suas vidas e enquanto eles falavam eu recordava de experiências vividas, de homens passados, de dores insuportáveis que suportei, e me dei conta que já fui todas essas mulheres pra todos esses caras, já quis mais do que deveria, já odiei tanto que era somente amor, já sumi dos meus olhos, já me entreguei inteira e saí despedaçada,  já lutei por causas perdidas e já fui uma causa perdida, já fui exaustivamente conquistada, já fui extremamente mau amada, já me apaixonei pela ideia de alguém, já gostei tanto que tive medo que ele escorresse pelos meus dedos e por que eu tinha medo todos os meus vazios eram ele. E enquanto me encontrava em cada uma das mulheres daquela conversa, um dos rapazes ali sentados começou a narrar as ousadias românticas que a sua ex fez por ele, enquanto o ouvia me dei conta que nunca, nenhuma ousadia minha jamais foi por homem algum, foi sempre por amor a mim, eu nunca gostei de nenhum deles como gosto de mim, mesmo quando cada objeto insignificante da minha mesa de cabeceira era uma paixão, era porque eu tava completa e perdidamente apaixonada, e se queria muito, era porque a solidão me desconstruía, e se pensava muito era porque estava entediada, e se ansiava muito era porque ardia de desejo e se não era mais, eu não queria mais. Não queria porque ninguém nunca me amou como eu, nunca me desejou, me rejeitou, me decepcionou como eu, o que vinha do outro era sempre insípido comparado ao que vinha de mim e pra mim. Sou eu a pessoa mais capaz de tirar e triturar e exterminar e apanhar e recolher e retirar e tomar e desviar e dissuadir e arrancar e abduzir e arrebatar e desenraizar e expulsar e extrair e puxar e remover e sacar a minha paz. A ex de quem o rapaz da mesa a frente falava não cometeu aqueles atos desesperadamente românticos por ele, ela os cometeu por estar perdida e completamente apaixonada por si mesma.

Gostei, mas detestei gostar da coerência masculina naqueles rapazes, detesto o fato de eles acharem que tudo tá normal, que tá tudo certo e que cada coisa tá no seu devido lugar. Detesto, porque sabia que quando eles chegassem em casa sentariam no sofá, e que eu ao chegar em casa iria mudar o sofá de lugar pela quinta vez só esse mês. Detesto, porque tenho a mania de pensar que a tampa da minha panela sou eu, que a minha outra metade sou eu, que o meu príncipe encantado num cavalo branco sou eu, e porque tenho o que a minha vó chama de “essa mania feia”, pra me amar tem que me suportar um pouco, tem que se ferir um pouco, tem que se pisar um pouco, tem que saber sonhar em horário comercial. Detesto, porque eu só queria uma pizza metade bacon, metade frango com catupiry e não consegui nem por alguns minutos ser a mulher que senta, come uma pizza e vai embora achando tudo natural. Eu tinha que abominar tudo ao meu redor e chegar em casa com o estomago cheio e os olhos castanhos vazios, sem coragem de abrir uma droga de livro e continuar a minha leitura, porque na página 77 percebi que a protagonista não conseguiria passar pela vida intacta, como quem percorre um caminho conhecido ou como quem só viaja com um mapa em mãos. Tiara Sousa

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