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A
minha pretensão, desde cedo, era passar pela vida intacta, como quem percorre
um caminho conhecido ou como quem só viaja com um mapa em mãos. Eu queria saber
dos segredos antes, conhecer os limites das dores, as sinuosidades das linhas.
Fui atrás dos conceitos, das teorias, observei cada comportamento, cada
distração, na esperança que me fosse revelado um algo de constante na
humanidade. Mas não consegui, nunca consegui. A vida não é óbvia nem por um
segundo, não há roteiro. Ela apenas acontece e dilacera.
Cheguei
a pizzaria por volta das 20 hs, já eram 20h12 e nem sinal da minha pizza
chegar. Eu estava entediada desde as 17 hs, tinha tentado ficar em casa ao
invés de ir enriquecer dono de pizzaria, mas me frustrei com um livro na página
77, porque ali aconteceu algo que eu não suportei. O que mais gosto nos livros
é isso, se algo te frustra você fecha e segue a sua existência intolerante,
egoísta e mesquinha sem o livro reclamar uma linha sequer.
Os
olhos castanhos da garçonete grávida me incomodaram, os olhos castanhos da
menina de trança da mesa ao lado me incomodaram, os olhos castanhos do rapaz
que fazia as entregas me incomodaram. Olhos castanhos sempre me incomodam.
Talvez por isso meu antepenúltimo namorado tivesse os olhos pretos, e o meu
penúltimo os olhos verdes e o meu último, azuis. É que passo tanto tempo
pensando em tudo e em todos que só penso em mim, e me incomoda o fato de crer
que toda a dor do mundo só pode caber na beleza comum e estranha de olhos
castanhos. E os meus são tão castanhos que ás vezes ardem.
Eu
precisava matar o tempo. Tem gente que coleciona horas, dias, fases, eu prefiro
enforcar o tempo em praça publica antes que ele me enforque, antes que eu
perceba que enquanto ele passa não são apenas as minhas células que vão
morrendo, ou o meu colágeno que vai diminuindo, mas a minha memória toda se
despe e me atravessa como uma faca, eu prefiro agarrar a porra da faca. Então
fiz algo que sempre faço quando quero matar o tempo, há quem nesses momentos
leia Nicholas Sparks, quem fique no celular, quem veja as últimas noticias, eu
observo as pessoas em volta, porque acho que ali moram todas as histórias de
Sparks, todos os passatempos dos celulares, e cabem ali todas as noticias. E já
aconteceu de eu observar as pessoas a minha volta e até me encantar por elas,
mas na maioria das vezes eu me arrependo da minha condição humana e saio
latindo para as poucas flores que ainda encontram-se pela cidade.
Na
mesa a frente da minha rapazes debatiam seus relacionamentos, é tão raro
flagrar homens em conversas assim que decidi observá-los, eles falavam de
mulheres que passaram pelas suas vidas e enquanto eles falavam eu recordava de
experiências vividas, de homens passados, de dores insuportáveis que suportei,
e me dei conta que já fui todas essas mulheres pra todos esses caras, já quis
mais do que deveria, já odiei tanto que era somente amor, já sumi dos meus
olhos, já me entreguei inteira e saí despedaçada, já lutei por causas perdidas e já fui uma
causa perdida, já fui exaustivamente conquistada, já fui extremamente mau
amada, já me apaixonei pela ideia de alguém, já gostei tanto que tive medo que
ele escorresse pelos meus dedos e por que eu tinha medo todos os meus vazios eram
ele. E enquanto me encontrava em cada uma das mulheres daquela conversa, um dos
rapazes ali sentados começou a narrar as ousadias românticas que a sua ex fez
por ele, enquanto o ouvia me dei conta que nunca, nenhuma ousadia minha jamais
foi por homem algum, foi sempre por amor a mim, eu nunca gostei de nenhum deles
como gosto de mim, mesmo quando cada objeto insignificante da minha mesa de
cabeceira era uma paixão, era porque eu tava completa e perdidamente
apaixonada, e se queria muito, era porque a solidão me desconstruía, e se pensava
muito era porque estava entediada, e se ansiava muito era porque ardia de
desejo e se não era mais, eu não queria mais. Não queria porque ninguém nunca
me amou como eu, nunca me desejou, me rejeitou, me decepcionou como eu, o que
vinha do outro era sempre insípido comparado ao que vinha de mim e pra mim. Sou
eu a pessoa mais capaz de tirar e triturar e exterminar e apanhar e recolher e retirar e tomar e desviar e dissuadir
e arrancar e abduzir e arrebatar e desenraizar e expulsar e extrair e puxar e
remover e sacar a minha paz. A ex de quem o rapaz da mesa a frente
falava não cometeu aqueles atos desesperadamente românticos por ele, ela os
cometeu por estar perdida e completamente apaixonada por si mesma.
Gostei,
mas detestei gostar da coerência masculina naqueles rapazes, detesto o fato de
eles acharem que tudo tá normal, que tá tudo certo e que cada coisa tá no seu
devido lugar. Detesto, porque sabia que quando eles chegassem em casa sentariam
no sofá, e que eu ao chegar em casa iria mudar o sofá de lugar pela quinta vez
só esse mês. Detesto, porque tenho a mania de pensar que a tampa da minha
panela sou eu, que a minha outra metade sou eu, que o meu príncipe encantado
num cavalo branco sou eu, e porque tenho o que a minha vó chama de “essa mania
feia”, pra me amar tem que me suportar um pouco, tem que se ferir um pouco, tem
que se pisar um pouco, tem que saber sonhar em horário comercial. Detesto,
porque eu só queria uma pizza metade bacon, metade frango com catupiry e não
consegui nem por alguns minutos ser a mulher que senta, come uma pizza e vai
embora achando tudo natural. Eu tinha que abominar tudo ao meu redor e chegar
em casa com o estomago cheio e os olhos castanhos vazios, sem coragem de abrir
uma droga de livro e continuar a minha leitura, porque na página 77 percebi que
a protagonista não conseguiria passar pela vida intacta, como quem percorre um
caminho conhecido ou como quem só viaja com um mapa em mãos. Tiara Sousa
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