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Ela
costumava ler Silvia Plath quando ficava muito triste, pra lembrar que
existiram saudades maiores, tristezas maiores, gente mais triste. E quando estava
alegre se entregava a Fernando Pessoa e seus heterônimos, porque ele tinha o
dom de descobrir estampas em tecidos beges, e ela gostava disso, mas fazia
meses que ela não lia nada deles. E era a pele que doía.
Era
menos difícil quando ele partia, não era fácil, mas era menos difícil, ela só
precisava sentar na cama, pegar o notebook, abrir um energético e acender um
cigarro, e as palavras vinham... pois ainda que lhe tirassem tudo, no fim ela ainda
tinha as histórias, os sentimentos, o dom de ler o mundo como poucos, as
linearidades, os comportamentos, as sugestões, as dores, o que estava trancado
em cadeado. Ela entendia do ser humano mesmo conservando uma certa ingenuidade
sobre o mesmo, e por isso se sentia solitária. Era como ser uma bailarina que
não tinha pra quem dançar. Ela podia ler tanta gente, mas quase ninguém podia
ler ela, porque havia em cada poro de seu corpo uma dor escondida, e ainda
assim ela quase nunca se desesperava.
Mas
ele sempre voltava, como os pássaros ao fim do inverno, ele sempre voltava, e
no fim do dia ela não entendia se isso era só a vida seguindo seu curso, ou se
isso era ela permitindo que ele lhe tirasse mais um pouco. Então um dia, ela já
havia perdido tantas partes, que dessa vez foi ela a mandá-lo partir, e quando
ele tentava voltar, ela o mandava partir mais um pouco, deixando entre eles uma
distância segura, onde só caberia mesmo o silêncio.
Pra
ela manter-se distante dele era como a fome. Ou a sede. Doía tanto, mas tanto, até
ela esquecer que doía, porque sem a pele dele ali ela esquecia que tinha pele,
e sem o corpo dele ali ela esquecia que tinha corpo, e sem o cheiro dele ali
ela esquecia que tinha cheiro, e sem o som da voz dele ali ela esquecia que
tinha voz. E doía a ponto de viver dentro dela torna-se inóspito, só que pra ela
viver fora dela era como deixar de ser ela, era perder a identidade. Era como
calar um grito. Não era calar, era sufocar. E isso bastou pra ela deixar de
acreditar nas coisas que escrevia e perder as palavras, a ponto de não conseguir
escrever mais nada, tropeçando na própria afronta, no próprio ego. Tornando-se um
livro de capa magnífica cheio de páginas em branco, pois sem as palavras não
lhe sobrava nada de inconsistente, além da saudade.
E
a saudade é como o silêncio, porque não há saudade sem apreço pelo que está
distante ou se perdeu, e ainda que a perda soe como uma escolha, nunca é. Afinal,
pra que preencher um espaço vazio se o vazio ainda estiver ali? E não, não
deveria haver nada de errado com o silencio. Não deveria. E só que ela já tinha
perdido demais.
Ela
deixou de observar a mágica entre os olhares, trabalhou, cumpriu horários,
datas, compromissos, deixou de julgar superficialidades porque passou a se
comportar superficialmente, chegou tão perto de se adequar a multidão que por
fora estava tudo bem e por dentro quase morria de dor sem sequer se dar conta
que estava doendo. Olhou em volta e de repente soava igual a todo mundo, mas
ser diferente era e sempre foi o que a manteve sã. E então desabou. Fugiu pra
onde sempre fugia quando nada sobrava, pra clausura, porque pra viver, ah, pra
viver tem que ter coragem, e ela que sempre apreciou o silêncio, teve medo
dele, porque sem as palavras ele não lhe servia de nada.
Até
que numa quarta-feira qualquer, enquanto ela dobrava os seus shorts jeans, o
barulho dos ensaios de uma escola de samba cujo a sede localiza-se na rua do
fundo de sua casa invadiram, assediaram, corromperam o silêncio do seu closed,
lhe parecia um barulho insuportável. Tentou ler, ver um filme, ouvir uma
música, mas não dava pra fazer nada com o som daquela bateria por toda a casa,
ela xingou, esbravejou, mas o barulho ainda estava ali, então se deu conta que
se ela gritasse em meio aquele som estridente ninguém poderia ouvir. Deitou no
chão do seu closed e gritou, gritou pelo fim do romance, pelo fim da inocência,
pelo fim da paz, pelo fim da ilusão, por todos os desejos e medos e ausências e
tons. Gritou pelo fim do silêncio, pelo fim do silêncio, PELO FIM DO SILÊNCIO!
E tendo o grito abafado pelo som da bateria da escola de samba, ela começou a
sentir um alivio imenso, e finalmente, chorou. Chorou voltando a se sentir
aquela que é inadequada, que lê o mundo e a humanidade como poucos, que sente-se
desconfortável na multidão, que nunca está completamente à vontade em lugar
algum que não numa folha de papel ou documento de word, e que julga
superficialidades, pois é estranha, insociável e solitária como uma bailarina que
não tem pra quem dançar.
Sentou
na cama, pegou o notebook, abriu um energético, acendeu um cigarro e as
palavras vieram. E depois de meses de silêncio, escreveu. Ela escreveu sobre
uma mulher que ao fazer o certo e pedir para alguém partir se partiu ao meio,
tornando-se um livro de capa magnifica que se desaprendeu pra reaprender a
preencher as suas páginas. Ela escreveu sobre ela e sobre como era o fim do silêncio.
Feliz 2019 a todos os leitores, o Alternativo voltou! Tiara Sousa
3 comentários:
"Deitou no chão do seu closed e gritou, [...]por todos os desejos e medos e ausências e tons."
Phodaaaaaaa...sou fã mesmo... ainda bem que voltou!!! abraços!!!
Mulher pelo amordi! Tô aqui toda impactada! Que bom que voltou!
Obrigada pelos comentários moças!
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