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Eu podia ver os ponteiros do relógio passeando,
podia ver as datas dos calendários desaparecendo, podia ver o sol se pondo e nascendo
e se pondo outra vez. Eu podia enxergar as mudanças na minha pele, podia ouvir
os sons dos meus ossos ficarem mais óbvios, e a minha volta os móveis
envelhecendo, as roupas ficando gastas, os fios de cabelo branco da minha avó
ficando cada vez mais brancos, e os momentos se tornarem cada vez mais
previsíveis. Eu podia sentir mesmo em completo silencio, mesmo sem movimentar uma
parte do meu corpo, eu podia sentir todos os meus 34 anos existindo pela
primeira vez. Sempre pela primeira vez.
Os calendários, os relógios e até mesmo a luz do
sol entrando pela janela, e toda e qualquer maneira de medir o tempo já não
fazem mais sentido, porque os dias não terminam mais, eles se esvaem, se
esvaziam como balões de festa, se desconstroem.
Hoje chove, e talvez por ser o dia do meu
aniversário, talvez por nem todos esses anos terem sido capazes de curar meu
egocentrismo, eu observo a chuva e acho que ela só existe pra mim, pra me
lembrar que há uma tímida elegância em comemorar um nascimento. Não que algum
dia a minha relação com o tempo tenha sido o que pode se chamar de cordial, mas
é que enquanto observo a chuva travo dilemas...
Afinal, quando deixamos de crescer e passamos a envelhecer?
Quando nos conformamos com a realidade? Quando aceitamos o trágico? Quando nos
adaptamos? Quando as páginas desse romance épico que chamamos de vida deixam de
ser devastadoras e sublimes, numa mesma dose? Quando tudo em volta dos nossos
corpos desacelera e a gente passa a sentir as nossas próprias pulsações? Será que
algum dia, será que realmente algum dia a gente deixou de ter 8, 11, 15, 17,
23, 28 anos? Até quando, até que idade, até qual tempo, semana, mês, ano, década
século ou milênio a gente vai continuar sentindo e amando e odiando e doendo pela
primeira vez? Quando haverá uma segunda vez? Se enquanto células morrem, linhas
de expressão surgem, fios de cabelo embranquecem, colágenos se limitam, nenhuma
dor é igual a outra, nenhum orgasmo é igual ao outro, nenhum beijo, nenhum
toque, nem mesmo o branco de uma folha de papel é igual ao outro, se por mais previsíveis
que as coisas se tornem nós sempre vivenciamos elas de um modo único e pela
primeira vez.
É dia 12 de março de 2019, o dia amanhece, eu me
levanto, vou até a cômoda em busca de uma toalha, e as gavetas rangem sons que desconheço,
como se a lembrança fosse uma velha conhecida, como se todas as almas
estivessem condenadas a existir na madeira de lei utilizada na construção
daquela cômoda, como se eu enganasse os espaços vazios da casa para permanecerem
vazios, como se toda falta de alguma coisa não concreta durasse o tempo íntimo
de uma eternidade. É dia 12 de março de 2019, eu completo 34 anos, e tudo o que
sei é que amanhã as gavetas da cômoda irão ranger sons que desconheço, que por
mais que se pareçam, nunca haverá sons exatamente iguais, nunca haverá outro 12
de março de 2019, nunca haverá uma segunda vez. Tiara Sousa
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