domingo, 17 de agosto de 2014

ESTÚPIDO CÚPIDO

A todos os leitores que enviaram mensagens e e-mails ou falaram da ausência de novos textos, peço que perdoem essa autora, que por problemas pessoais perdeu a inspiração por uns meses e aviso que o Blog Alternativo está de volta! Mais romântico, mais ousado e mais sínico, se é que me entendem. Aproveitem!


No começo era assim, ele me olhava com aquela cara desconfiada, de quem não sabia como ficar sério, eu o olhava com aquela cara safada, de mulher apaixonada, de quem tava doida pra dar, e como era o começo, era bonito, e tudo de incompatível acabava se encaixando e encantando, de um jeito ou de outro.
Mas o tempo passou, e se o tempo fosse um deus, seria o deus da realidade, aquele que torna o desnecessário, fundamental, e o fundamental, irrelevante. E então, o sexo deixou de ser novidade, ainda era muito bom, mas já tava longe de ser tudo, o meu guarda roupas intimo deixou de surpreendê-lo, assim como a minha língua e as minhas mãos curiosas e desacatadas, então ele passou a me ver como eu realmente era, alguém que precisava de mais que alimentos, água e ar pra sobreviver, de mais que roupas coloridas e livros de poetas mortos pra se alegrar, de mais que beijos mornos e cotidianos frustrantes e óbvios pra se inspirar. Só a minha cara de mulher apaixonada continuava a mesma, logo numa altura daquelas, em que ele já tinha percebido que eu não era pra ele, que eu tinha um passado, maus modos, péssimos hábitos e que a minha única lingerie vermelha tava ficando velha.
Era inevitável, ele foi ficando cada vez mais ciumento e inseguro, passou a vida inteira escutando do pai e tios e primos e amigos idiotas e machistas que mulheres como eu não eram confiáveis, então por fim, ele me enviou um SMS marcando um encontro, ninguém com a cabeça no lugar e que me conheça minimamente marca nada comigo por SMS, todo mundo sabe que eu não sou boa com tecnologias e que acho fria esse tipo de comunicação. Foi só eu ler aquela mensagem, tão inapropriadamente impessoal pra saber que ele pretendia terminar comigo naquele jantar.
Respondi por SMS: - Ok, nos vemos lá, até! E então comecei a pensar no que poderia fazer pra que ele desistisse. Fui até uma dessas lojas que só vendem roupas que eu não usaria e comprei um vestido brega e angelical, combinei sapato e bolsa, coisa que nunca faço, penteei o cabelo, fiz as unhas, passei batom, coisas que nunca faço, e fui ao encontro dele.
Enquanto ia até o tal restaurante, pensei no que iria dizer, ia dizer que não tinha como apagar os babacas encantadores por quem já fui apaixonada, nem os porres que tomei ao som de Wando nos botecos da cidade, mas que eles eram passado, que pretendia escrever coisas mais sérias, ir ao salão de beleza de vez em quando, usar pen drive ao invés de CDs, cruzar as pernas como fazem as boas moças, comer salada, me vestir melhor, pentear o cabelo e deixar que ele tomasse a iniciativa ao invés de me jogar em cima dele sempre que desse na telha. E assim fui por todo o caminho, ensaiando as minhas falas, compondo a minha personagem.
Quando finalmente cheguei ao restaurante, ele já estava sentado, lindo, sério, encantador, sexy como sempre. Percebi nos olhos dele a surpresa e o encantamento ao me ver fantasiada de mulher comportada e requintada, com aquela roupa e cabelo e maquiagem e unhas e sorriso. Beijei o rosto dele, e disse que iria até o banheiro e que por enquanto ele poderia ir escolhendo os nossos pratos, ele ficou ainda mais surpreso, num dia normal eu jamais deixaria um homem escolher a minha comida.
Na volta do banheiro, olhei bem pra ele, minha nossa, pensei, não posso perder um homem desse. Ele parecia mudo, perdido em pensamentos, supus estar estático diante da dúvida do que fazer ao me ver tão diferente, tão empenhada em me encaixar no ideal dele de mulher. Ficamos lá, ele perdido entre a vontade de fugir e de ficar, eu perdida entre a minha produção e os olhos dele. O garçom trouxe os pratos, nós jantamos, ele disse que eu estava linda e que tinha algo pra me falar, mas que já não sabia se queria ou se devia, eu pensei em atropelar tudo e dizer o que eu tinha ensaiado, mas não consegui dizer nada, porque ele tocou o meu antebraço e eu senti arrepios em lugares que nem sabia que existiam.
Terminamos o jantar, saímos do restaurante, eu sorri pra ele e ele sorriu de volta e nem mil SMSs diriam mais que os nossos sorrisos disseram naquele momento, então ele me beijou, e por segundos eu consegui ver sentido no mundo inteiro, coisa que pouco havia acontecido. Me convidou pra dormir na casa dele, eu aceitei como de costume, chegando lá esperei que ele tomasse a iniciativa, como quem espera uma carta de alguém que já se foi, e tive uma das melhores noites da minha vida, não tinha mais a novidade, nem a surpresa, mas ainda tinha ele, e eu tava mesmo apaixonada.
Pela manhã, acordei cedo, preparei o café da manhã, nunca acordo cedo, nunca tomo café da manhã, mas eu tava tentando mesmo mudar, depois tomei banho, coloquei o vestido da noite anterior, já que eu não tinha outra roupa lá, me mirei no espelho, quase não me reconheci... Quem era aquela mulher do outro lado? Por que eu me sentia tão vazia e solitária se tinha conseguido exatamente o que eu queria? Minutos depois ele acordou, tomamos o café, e ele falou a verdade, disse que na noite anterior pretendia terminar o que tínhamos, mas que pôde ver que eu estava mudando e que ainda tínhamos chances, e que estava apaixonado por mim, e que gostava de quem eu estava me tornando, e que estava muito feliz com isso.
Eu olhei em volta, e olhei pra ele, lindo como sempre, depois olhei pra mim naquela roupa, e falei, quase sem pensar: - Desculpa, eu não sou essa mulher, nunca fui e não importa o quanto eu me esforce, nunca serei. Peguei a bolsa na mesa, beijei a testa dele, e saí, com uma dor emocional tão grande que parecia que o meu corpo inteiro ia quebrar, saí, antes que ele me dissesse com todas as palavras e vírgulas e pontos que se eu não era a mulher que ele precisava, eu não era pra ele.
Passou algum tempo sem que eu o visse, até outro dia, quando nos encontramos na sala de espera de um dentista, ele estava com a nova namorada, ela se vestia bem, era linda, magra e artificial como uma dessas modelos de capa de revista, combinava bolsa e sapatos, usava maquiagem e tinha os cabelos mais lindos que já vi, cruzava as pernas e parecia uma dessas moças que nunca tomaram um porre na vida e que vão a igreja todos os domingos, acho que por um instante, breve e estúpido, desejei ser como ela. Ele me cumprimentou, me olhou da cabeça aos pés com desejo, como quem olha uma coisa que já foi dele, como quem guarda as recordações no lugar certo (debaixo da calça), eu não, eu guardo no coração. Depois nos apresentou, disse, essa é a minha namorada, referindo-se a ela, e depois disse, essa é uma velha amiga, referindo-se a mim. Saí de lá me sentindo o “cocô do cavalo do bandido”.
Quando cheguei em casa, lembrei porque não tinha dado certo, é porque eu já sou tudo o que consigo ser, e ser comum me entedia, e o meu passado é parte fundamental de quem eu sou, e acho salão de beleza um saco, e que tudo fora isso me soa aprisionável, e eu aprecio a liberdade como os pássaros às suas asas. Depois pensei... Dane-se! Eu sou mais eu que qualquer projeto de “santa na rua, puta na cama” que tem por aí, e deve mesmo ter algum cara encantador pra gostar de mim do jeito que eu sou, um que se um dia acabar por qualquer motivo, lembre de nós com carinho e fome, e tenha culhões pra me apresentar pra atual namorada como alguém por quem foi apaixonado um dia. E se esse cara não existir... Foda-se! Ainda tenho meus cigarros e uns trinta DVDs de comédias românticas americanas pra me fazerem companhia, além de saber uns palavrões bem legais pra dizer pra esse estúpido cúpido do século XXI. Tiara Sousa

5 comentários:

Unknown disse...

Perfeito. Voltou com tudo. Louco e romântico!!!!!

Uma nota disse...

"Desculpa, eu não sou essa mulher, nunca fui e não importa o quanto eu me esforce, nunca serei." Sou eu mesma....hehe..arrasou nega...louca como nunca, poeta como sempre!!!
abraços!!!

Alternativo disse...

Obrigada Isolda. Mais louco que romântico, creio, rsrs

Alternativo disse...

Obrigada Arthur. Os seus textos também são muito bons!

Alternativo disse...

Gracias Uma nota! Adorei o "kouca como nunca, poeta como sempre", rsrs