domingo, 24 de agosto de 2014

POLTRONA FORA DO LUGAR

Direitos da imagem: Janela de cima
Eu estava terminando uma matéria e ainda tinha que preparar a aula da semana, não tomo café, então decidi fazer um chocolate quente, que também não é algo que eu tenha o hábito de tomar em casa, mas é bom se surpreender, ainda que com coisas pequenas e que soam até como insignificantes. Fiquei ali, tomando aquele chocolate e pensando em alguma coisa boa pra escrever, mas eu havia tido um sonho tão estranho na noite passada, era como uma recordação, nele eu era beijada por um homem do passado, com quem vivi uma dessas histórias românticas e trágicas, difíceis e dolorosas, tristes e bonitas, das quais a gente nunca sai inteira, ou nobre como entrou, e há muito não pensava nele desse modo. Não conseguia me concentrar, alguns sonhos te levam para um lugar melhor e você desperta penoso da realidade, outros trazem de volta coisas que preferia esquecer, e que já julgava ter esquecido há tempos, são como visitas indesejadas. Comecei a olhar em volta, eu tirei a poltrona amarela com detalhes pretos do meu quarto, e pela primeira vez em um mês senti falta daquele móvel, não uma falta qualquer, do tipo que se sente de um momento alegre, de um livro ou de um filme, uma falta maior e inesperada, do tipo que invade cada pensamento e torna a ansiedade uma intimidade com o tempo. Acho que sentir falta de certas coisas não é muito saudável, mentalmente saudável, tanta coisa pra sentir falta, um passado inteiro de sentimentalismo caro, meia dúzia de rapazes encantadores e tragicomédias pra recordar e tudo que me causa transtorno e melancolia é um sonho e a droga daquela poltrona onde há anos eu não sentava nem pra fumar um cigarro.
Terminei o chocolate, finalmente terminei a matéria, comecei a preparar a aula e dei uma pausa, lembrei do tal sonho e a lembrança me causou inquietação, peguei a chave do carro e saí, saí pra chegar a algum lugar, eu não fazia ideia. Quando dei por mim, estava estacionando na praia, estava sentando na areia, estava esperando o pôr do sol, esperar pelo nascer do sol é quase poético, quase lírico, quase alegre, no entanto esperar ele se pôr é como celebrar uma paisagem sabendo que no fim ela morrerá, é sepultar uma beleza.  E por isso, eu sempre lamento quando o sol se põe, mas não ali, nem naquele dia, o mar ficou comigo e me fez companhia, olhei para o lado, um rapaz vestia uma camisa listrada e olhava para o mar, e nos olhos dele não tinha nenhuma paixão, ele notou que eu estava olhando e sorriu, tentando disfarçar, tentando não disfarçar, pensei em fazer uma feição séria e virar o rosto, mas não fiz, sorri também, ele estava se sentindo desejado e estava gostando, quem sou eu pra acabar com o que ele sentia, já acabaram tantas vezes com o que eu sentia, e eram sentimentos mais nobres, e eu nem sei se me recuperei. Levantei depressa, antes da situação ficar intima ou constrangedora ou bela demais que eu não esquecesse no próximo semáforo no caminho de volta. Sentei num barzinho, pedi uma água de coco, lembrei de um outro tempo, em que teria pedido vodka com limonada e teria ligado pra alguém me fazer companhia, só pra eu não sentir a dor do meu silencio. Me senti feliz pelo tempo presente, por ter aprendido e superado algumas coisas na vida, por ser mais eu agora do que jamais fora antes. Paguei a água de coco, entrei no carro e parti, não me partir em pedaços, não pensei nos meus medos, não lembrei dos sorrisos efêmeros que já foram meus, não lamentei o tempo perdido, não me julguei, nem julguei as paisagens que já deixei de contemplar, apenas voltei pra casa, arrastei a poltrona de volta para o meu quarto, sentei nela, acendi um cigarro e terminei de preparar a minha aula.
Algumas coisas tem que mudar, tem que sair do lugar e serem substituídas, outras não, tem que ser iguais para sempre, que nos causar as mesmas sensações e nos proporcionar o mesmo comodismo, incomodo e necessário, porque o tempo passa, nós não, nós mudamos e transformamos algumas coisas, mas a essência é sempre a mesma, naquele dia ou dez anos antes, eu ainda não viraria o rosto para o rapaz que sorria se sentindo desejado, eu ainda gostaria que ele fosse pra casa achando que encantou alguém.
Por fim, terminei o cigarro, terminei a aula, levantei da poltrona e a arrastei de volta para fora do meu quarto, eu só precisava me despedir, saber se despedir é tão importante e relevante quanto deixar certas coisas e sentimentos irem. Finalmente entendi o sonho, era como uma despedida que nunca aconteceu como deveria, com a missão de eliminar qualquer trauma, ou mágoa, ou medo que essa história tivesse deixado. Era um beijo de adeus. Espero que ele também esteja bem, que ele também seja feliz, que também tenha aprendido a se despedir dos móveis antigos esquecidos pelos cômodos da casa. Tiara Sousa 

2 comentários:

Uma nota disse...

Que texto foi esse?!
Arrepios, são as únicas coisas que consigo sentir e descrever agora!! Muito bom...
"estava esperando o pôr do sol, esperar pelo nascer do sol é quase poético, quase lírico, quase alegre, no entanto esperar ele se pôr é como celebrar uma paisagem sabendo que no fim ela morrerá, é sepultar uma beleza"
Acho que sou uma coveira..que ama sepultar sóis por aí!!
abraços!!!

Alternativo disse...

Linda essa frase com que tu encerras esse comentário! Valeu mesmo, sempre, Que bom que arrepiou, que bom que emocionou!