quarta-feira, 18 de outubro de 2017

DEPOIS DA MEIA NOITE

Imagem retirada do site http://en.tubgit.com
Nada como uma cidade depois da meia noite pra gente descobrir um monte de coisas que estão bem na nossa cara ao longo do dia, mas que não enxergamos porque estamos atrasados pra escola, pra Universidade, para o trabalho, porque estamos cheios de compromissos e sonhos e esperanças e frustrações e dores e saudades e desejos e invenções, porque não nos permitimos nem olhar para o céu ou para os olhos de um amigo, de um amor, porque estamos sempre muito ocupados com as nossas dores pra avaliar que viver é um desafio tão intimo quanto coletivo.
Mas a madrugada te mostra muita coisa... Os postes iluminam as ruas e só as dores alheias importam, a alegria parece de vidro, mas eu que quebro ao perceber que não há fantasia alguma além dos prédios altos que ornamentam as proximidades das orlas. Porque depois da meia noite coisas que fariam tanto sentido durante o dia de repente não fazem sentido algum. Lembro de chegar a uma casa de shows na semana passada pra assistir uma noite de canções de Chico Buarque e enquanto esperava o cantor iniciar a noite e os músicos afinarem os instrumentos, sentada numa mesa ao fundo com uma amiga, acabei percebendo... O casal ao lado, sem sentido; O garçom simpático, sem sentido; O tesão explicito do garoto de 20 anos, sem sentido; Os olhares curiosos dos dois homens sentados numa mesa atrás da nossa, sem sentido. Observar é a melhor e a pior coisa que alguém pode fazer consigo.
Nada como uma cidade depois da meia noite pra gente descobrir um monte de coisas que estão bem na nossa cara ao longo do dia... E eu descobri...
Descobri que a parte mais salgada do mar é aquela na qual você não consegue chegar, porque ela é mistério. Descobri que a maior saudade que pode existir é a saudade da gente mesmo, que as flores só murcham tão rapidamente porque as maiores belezas moram no efêmero, que a minha vizinha de 77 anos nunca vai passar dos 20 e que as incertezas são certezas travestidas de medo e moral.
Descobri que viver é tão difícil quanto excitante, que a gente só se esconde dos olhares que deveriam nos intimidar mas não nos intimidam, que as reações mais verdadeiras são aquelas que não transparecem, que as ilusões são as facas que ficam guardadas no fundo das gavetas do armário de cozinha e que com o tempo vamos esquecendo de amolar.
Descobri que eu sempre vou gostar das boas histórias mal contadas, porque só elas vão atiçar a minha imaginação, descobri que os olhos do meu filho nunca para mim irão deixar de ser olhos de criança, tenha ele a idade que for. Descobri que eu sempre vou abrir o guarda-roupa na expectativa de ver aquela camisa velha do Flamengo que eu não uso nunca, porque ela me lembra de um tempo em que eu enxergava o mundo melhor.
Descobri que toda dor, medo, ódio, mágoa é menor, é sempre menor do que um único segundo de felicidade. Descobri que sempre vou achar que os salões de beleza são um saco, que sempre vou preferir havaianas a salto alto e achar que os melhores seres humanos são aqueles essencialmente imperfeitos. Descobri que as verdadeiras promiscuidades são aquelas feitas em nome da moral e dos bons costumes, e que a diretora da época do meu ginásio é uma falsa moralista do caralho.
Descobri que o moço que passa vendendo frutas todas as manhãs na rua em que mora a minha avó e que não estudou nas escolas que eu estudei, nem fez as viagens que eu fiz, nem leu os livros que eu li, nem frequentou as baladas que eu frequentei tem mais grana do que eu e boa parte dos meus amigos nesse momento e que ele é um cara tão legal, que ele merecia muito mais.
Descobri que aquela menina branquinha, cheia de sardas, que estudou comigo na 7ª série e que ficava zoando o meu cabelo cacheado, dizendo que ele era muito cheio e feio e que atrapalhava a visão dela na turma e que muitas vezes fazia eu voltar pra casa triste, não tem atualmente, e nem nunca teve um quinto da minha beleza, da minha inteligência e da minha sensibilidade, e que ela sempre soube disso.
Descobri que num mundo de tantos equívocos há paredes a serem pintadas, obras a serem concluídas, bolos a serem assados, histórias a serem contadas, vidas a iniciarem. É que o tempo continua seguindo o seu curso imaterial, é que enquanto a minha vizinha de 77 anos nunca deixar de ter 20 ainda haverá cidades em que depois da meia noite da pra gente descobrir um monte de coisas que estão bem na nossa cara ao longo do dia, mas que não enxergamos. Tiara Sousa

4 comentários:

Uma nota disse...

"Descobri que a maior saudade que pode existir é a saudade da gente mesmo", é nega...saudades de um dia voltarmos a ser o que nunca fomos, sendo tudo aquilo que sonhamos, desejando não morrer nesse mar salgado, sem garantia do gosto tão intenso de nossas vidas.

Unknown disse...

"...que a minha vizinha de 77 anos nunca vai passar dos 20 e que as incertezas são certezas travestidas de medo e moral." Toara Sousa

FODA!

Alternativo disse...

Obrigada Uma nota! Belas palavras e bela conclusão de tudo!

Alternativo disse...

Valeu por comentar Ray Silva, é isso aí, esse também é o meu trecho favorito.