terça-feira, 10 de outubro de 2017

UM TEXTO SOBRE VOCÊ

Imagem do Site silviarita
Me dei conta que já escrevi alguns textos para você, mas que nunca escrevi um texto sobre você (o que não é natural, já que eu escrevo sobre o cotidiano mais do que sobre qualquer outra coisa, e você durante muitos anos foi parte do meu cotidiano), então lá vai...
Você não sabe amar. Não sabe. Nunca em todos os seus anos de vida você chegou perto de saber amar. Porque o amor não é só aquele papo de você é minha, de comedia romântica, de declaração, de crise de ciúmes, de ouvir uma musica e pensar, de assistir um filme e lembrar, de ficar namorando as fotos antigas, isso eu sei que você já viveu, todos vivemos. Amor é sobretudo aquele outro papo de... Toma cuidado, olha ao atravessar a rua, deixa uma sobra desse olhar pra eu poder seguir com segurança, briga comigo porque se importa, vê como eu tô sendo ridículo e me aceita mesmo assim. Essa coisa que a gente é capaz de sentir por um filho, por uma mãe, por um irmão, por um amigo. Mas você desconhece tudo isso, você não sabe e nem nunca soube amar. Mesmo assim você me amou, eu sei, pode acreditar.
Eu lembro que nós fazíamos de conta, você me olhava torto e eu entendia as suas neuroses, você me aconselhava e eu corria as minhas carnes, o meu corpo doía e a sua alma sempre machucada por conta de alguma cena que eu escrevia pra você viver. E você tentava me dizer o que fazer ás vezes. Como eu julgava o fato de você não perceber o mundo que eu queria compor e mesmo assim precisar de mim! Os tijolos da sua casa pareciam frios e o meu espelho velho me dizia nada. Era difícil ser eu, e ás vezes eu tinha a impressão que só você entendia isso, porque ser você também era muito difícil. Você ás vezes cuidava de mim, às vezes enchia o saco e caia fora, depois ligava e os seus telefonemas me entrertiam e me consumiam, era difícil qualquer um nos entender, era fácil a gente se entender.
Lembro que nós fazíamos que éramos infames, é que eu já sabia que quando você contava de mim pra alguma mulher, ela seria importante, e eu do seu lado dizendo ao namorado da vez que tava com uma amiga, eu tinha medo de dizer que era um amigo e ele não compreender que o que tínhamos era fora do corpo, que no que tínhamos não existia corpo. Você me contava o seu dia, eu analisava os perigos, éramos crianças em corpos de adultos quando você me buscava pra irmos tomar banho de mar nos dias 31, só porque eu achava que esse era o dia certo, e eu também sempre achei tão bonito o fato de você nunca ter questionado isso.
Lembro que você sorria pra mim, tinha medo de me tocar e eu não entender, e eu não entenderia mesmo. Você me dizia que eu tinha que maneirar nas palavras, e o que você queria dizer mesmo era “toma cuidado, as pessoas julgam tudo, elas irão julgar as suas palavras mais sinceras”, e eu te achava tão sensível que as vezes era eu quem chorava. E você contava das mulheres, dos amores mal resolvidos, parecia inseguro e eu dizia o quanto você era bonito, mas você nunca acreditava. Você tinha paciência para os meus porres, minhas musicas velhas e mornas e até as minhas amigas mais comuns. Eu não, eu só tinha paciência pra você, e olhe lá, ás vezes eu queria escapar. Eu julgava os seus amigos, tentava ser amiga das suas paixões, mas elas me abominavam só por eu ser eu, elas entendiam melhor do que você a importância de uma amizade. Você escondia os nossos telefonemas dos seus casos, eu escondia os nossos lanches dos meus, a gente se despedia e eu ficava entre os meus livros, as minhas novelas, as minhas crônicas e um carinha qualquer, você ouvia reggaes e fazia de conta que tava tudo bem, e amava alguma mulher que te deixava louco.
Mas muita coisa aconteceu e a gente se partiu, porque ainda que com idades tão próximas, eu preciso crescer e você precisa rejuvenescer, eu preciso jantar á luz de velas e receber flores e você precisa de um bom hambúrguer com batatas fritas e de um Heavy Metal. Se partiu porque a gente precisa conhecer outros mundos e eu preciso assimilar decepções que sejam minhas, e só minhas, e você precisa aceitar o mundo dos outros. Se partiu porque você colava na escola enquanto eu colecionava papéis de cartas, porque eu me acho o máximo e você se distorce e consequentemente acaba distorcendo as pessoas, e se ferra com isso, porque muitas vezes você está certo com as suas análises, mas isso não as torna menos cruéis, e nem significa que você está sempre certo. E o mesmo serve pra mim, só que em doses femininas e poéticas.
A gente se partiu porque você se habituou aos fins, aos pontos finais, e eu tentei te mostrar as reticências, mas você tem medo de ter medo, e eu, eu sou intima dos meus medos. Se partiu porque você é alheio a encantos, eles te assustam, porque você é um papel pardo em meio a um monte de papéis laminados, porque eu extravio e você absorve, e não faz ideia do quanto suas aventuras estão distantes de tornar-se a transgressão que você tanto precisa. E eu não, eu já nasci transgredindo.
A gente se partiu porque você gosta de ser machucado, gosta de se perder em meio a aparências, gosta, mesmo abominando tudo isso, e eu também. Se partiu porque a solidão te aterroriza e eu gosto de solidão, de olhares que despem, de gente inconstante, e você teme tudo isso. Se partiu porque você constrói fábricas para os seus sentimentos e eu derrubo castelos para os meus, porque na maioria das vezes você trepa pra poder se apaixonar, e eu na maioria das vezes me apaixono pra poder trepar, porque você suporta sonhos e eu suporto realidades, porque você ignora visitas e eu as expulso, porque você late e é mordido, porque você teme não ser amado como é e apesar dos erros que comete e eu me habituei a ser amada assim. A gente se partiu porque além de todas as nossas já citadas compatibilidades e incompatibilidades aconteceu uma grande amizade que você reduziu a mais uma de suas análises.
Eu nunca escrevi sobre você porque em meio a tantos caras que já protagonizaram as minhas crônicas mais sentidas, líricas, sensuais e poéticas você não se encaixa, esses caras me tiveram nos braços, nos lábios, nos corpos, me fizeram delirar de apaixonada e sentimentalizar cada gesto e atitude, mas nenhum desses caras chegou perto de me conhecer inteiramente, e você não, você era bem mais importante, você era o cara a quem eu contei das minhas viagens e com quem eu fiz viagens, a quem eu falei dos meus romances, e das dificuldades e felicidades da minha vida, você era o cara pra quem eu torcia pra que encontrasse a mulher mais massa de todas e que por ela fosse correspondido e respeitado, a quem eu seria a madrinha de casamento e os filhos me chamariam de tia, e isso era tão grande e tão desprovido de qualquer impureza que não cabia em mais um texto semanal. Mas hoje, depois de tantos textos eu finalmente escrevi sobre você, não porque você tenha deixado de ser esse cara, não é isso, mas porque só hoje me dei conta do quanto a gente se partiu. Só hoje acordei com um cinzeiro cheio de pontas de cigarros do meu lado e percebi que nenhum desses cigarros foi fumado enquanto eu conversava com você. Tiara Sousa

2 comentários:

Uma nota disse...

"E eu não, eu já nasci transgredindo"
Cara tu é muito foda...!!!!

Alternativo disse...

Obrigada pelo muito foda moça! Esse é um texto especial e fui realista em cada palavra.